UM dia (quem sabe se morta até!) terei
saudades destas horas tranquilas, passadas na biblioteca.
Que curiosa humanidade aqui vem!
Investigadores circunspectos, que o pessoal cumprimenta reverente,
estudantes que se namoram, olhos nos olhos, por cima dos compêndios,
rapazinhos de calção curto à procura de aventuras desmedidas, ou do
manual que ensina a melhor maneira de tratar pombos, professorinhas
ávidas da nomeação no Diário do Governo, soldados, polícias... quanta
gente!
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A sala dá sobre o claustro e o pátio —
canteirinhos de buxo, cortados à garçonne, no meio o chafariz
de carrancas dum granito já lodoso e verdinhento. No parapeito das
janelas, abertas à tarde de verão, as pombas arrulham, catam-se,
namoram-se e beijam-se, descaradas, longamente a intervalos. Mas na
sala, de paredes recobertas por uma sabedoria antiga, de estranha
nomenclatura, impressa em ouro velho e carmesim, nas lombadas
grossas das encadernações, há um peso de silêncio, de concentração
atenta, e de paz, onde sabe bem mergulhar. E, no entanto, nunca,
antes da presença dela, eu me tinha apercebido de que alguém pudesse
frequentar uma biblioteca, como outros frequentam a igreja, apenas
para sentir a santidade do local.
A primeira vez que a vi, de costas, uma
magreza envolta no vestido de sedinha estampada, uma écharpe
pelos ombros, os pés nus metidos nuns sapatos cambados, confundia-a com
um fantasma mórbido e romântico, pois distintamente a ouvi requisitar
«A freira no subterrâneo», de Camilo. Afinal, era uma mulher da vida. E
chocou-me a certeza, quando lhe vi o rosto amargo, ensombrado por uma
franja (provocante?), que a tornava dum patético adolescente e quadrava
mal com o seu corpo de prostituta gasta. |
Vinha todos os dias, ao fim da tarde. E,
a coberto de Camilo, confundia-se com os leitores vulgares. Mas, na
verdade, pouco lia. Isolada, na mesa do fundo, depois de percorridas
duas ou três folhas, ficava-se absorta, um sorriso de beatitude nos
lábios, soberbamente alheia, a mantilha descaída indiferente ao
arrulhar insistente dos pombos que continuavam o seu jogo amoroso.
Posso afirmar que não reparava no que se passava à sua volta. Não a
interessavam nem as roídas encadernações de estranhos títulos — LE
TRAITÉ DES DROGUES, SYNOPSI UNIVERS, PHARMACOP DE LEMERY —, nem as
trancinhas miúdas, da cabeça que lhe ficava em frente, nem o bigode
sedutor e cinematográfico do empregado. Recolhida, como sob uma
imensa nave sombria, purificava-se apenas da vida, gasta nos actos
maquinais dum amor sórdido e mal remunerado. Logo que voltasse às ruas,
donde tinha vindo, não poderia evitar a insistência grosseira dos
soldados, a graçola obscena dum bêbado, os convites. Porém, ali, no
silêncio da biblioteca, a sua dignidade humana refazia-se, /página
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retrato daquele rei, sem púrpuras, já constitucional, como se estivesse
diante dum sacrário, imperturbada pelos arrulhas das pombas,
insistentes, longos, mugidos, como um cio avolumado e inadiável — que
pensaria?
Nunca o saberei. Mas não poderei
esquecê-la. Nem a ela, nem ao seu mistério. Nem a nenhum dos outros.
Aquele ourives, leitor assíduo e atento que usava óculos na ponta do
nariz como um relojoeiro, o cigano, porte altivo de homem livre,
impressionante no seu luto de camisa preta, apesar das calças rotas, que
lhe punham a nu a carne morena e azeitona. Estas paredes, os azulejos
conventuais, o pátio e o claustro, esta paz, ficarão para sempre
comigo.
E o arrulho mugido dos pombas? Também.
Também me lembrarei dele.
Luísa Dacosta
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O homem e o animal |
O que distingue o animal do homem é a
razão que aquele não tem — diz-se.
A vida, sob o aspecto nascimento, é
animal, portanto irracional, aparentemente. Mas não é ela também
realidade, e portanto Verdade?
Pode opor-se a Razão à Verdade?
A menos que seja, por sua vez, loucura!
Charles Campreux — a propósito do
«Repouso do Guerreiro», romance de Christiane Rochefort |