Acesso à página inicial.

Artes - Letras - Ciências
Suplemento do n.º 261 do "Litoral"
Outubro de 1959, Ano I, n.º 2
págs. 24 e 23

 

BIBLIOTECA MUNICIPAL

Apontamento de LUÍSA DACOSTA


UM dia (quem sabe se morta até!) terei saudades destas horas tranquilas, passadas na biblioteca.

Que curiosa humanidade aqui vem! Investigadores circunspectos, que o pessoal cumprimenta reverente, estudantes que se namoram, olhos nos olhos, por cima dos compêndios, rapazinhos de calção curto à procura de aventuras desmedidas, ou do manual que ensina a melhor maneira de tratar pombos, professorinhas ávidas da nomeação no Diário do Governo, soldados, polícias... quanta gente!

Desenho de AMÂNDIO SILVA

A sala dá sobre o claustro e o pátio — canteirinhos de buxo, cortados à garçonne, no meio o chafariz de carrancas dum granito já lodoso e verdinhento. No parapeito das janelas, abertas à tarde de verão, as pombas arrulham, catam-se, namoram-se e beijam-se, descaradas, longamente a intervalos. Mas na sala, de paredes recobertas por uma sabedoria antiga, de estranha nomenclatura, impressa em ouro velho e carmesim, nas lombadas grossas das encadernações, há um peso de silêncio, de concentração atenta, e de paz, onde sabe bem mergulhar. E, no entanto, nunca, antes da presença dela, eu me tinha apercebido de que alguém pudesse frequentar uma biblioteca, como outros frequentam a igreja, apenas para sentir a santidade do local.

A primeira vez que a vi, de costas, uma magreza envolta no vestido de sedinha estampada, uma écharpe pelos ombros, os pés nus metidos nuns sapatos cambados, confundia-a com um fantasma mórbido e romântico, pois distintamente a ouvi requisitar «A freira no subterrâneo», de Camilo. Afinal, era uma mulher da vida. E chocou-me a certeza, quando lhe vi o rosto amargo, ensombrado por uma franja (provocante?), que a tornava dum patético adolescente e quadrava mal com o seu corpo de prostituta gasta.

Vinha todos os dias, ao fim da tarde. E, a coberto de Camilo, confundia-se com os leitores vulgares. Mas, na verdade, pouco lia. Isolada, na mesa do fundo, depois de percorridas duas ou três folhas, ficava-se absorta, um sorriso de beatitude nos lábios, soberbamente alheia, a mantilha descaída indiferente ao arrulhar insistente dos pombos que continuavam o seu jogo amoroso. Posso afirmar que não reparava no que se passava à sua volta. Não a interessavam nem as roídas encadernações de estranhos títulos — LE TRAITÉ DES DROGUES, SYNOPSI UNIVERS, PHARMACOP DE LEMERY —, nem as trancinhas miúdas, da cabeça que lhe ficava em frente, nem o bigode sedutor e cinematográfico do empregado. Recolhida, como sob uma imensa nave sombria, purificava-se apenas da vida, gasta nos actos maquinais dum amor sórdido e mal remunerado. Logo que voltasse às ruas, donde tinha vindo, não poderia evitar a insistência grosseira dos soldados, a graçola obscena dum bêbado, os convites. Porém, ali, no silêncio da biblioteca, a sua dignidade humana refazia-se, /página 23/ inteira. E, diante da moldura dourada e barroca do imenso retrato daquele rei, sem púrpuras, já constitucional, como se estivesse diante dum sacrário, imperturbada pelos arrulhas das pombas, insistentes, longos, mugidos, como um cio avolumado e inadiável — que pensaria?

Nunca o saberei. Mas não poderei esquecê-la. Nem a ela, nem ao seu mistério. Nem a nenhum dos outros. Aquele ourives, leitor assíduo e atento que usava óculos na ponta do nariz como um relojoeiro, o cigano, porte altivo de homem livre, impressionante no seu luto de camisa preta, apesar das calças rotas, que lhe punham a nu a carne morena e azeitona. Estas paredes, os azulejos conventuais, o pátio e o claustro, esta paz, ficarão para sempre comigo.

E o arrulho mugido dos pombas? Também. Também me lembrarei dele.

Luísa Dacosta


O homem e o animal

O que distingue o animal do homem é a razão que aquele não tem — diz-se.

A vida, sob o aspecto nascimento, é animal, portanto irracional, aparentemente. Mas não é ela também realidade, e portanto Verdade?

Pode opor-se a Razão à Verdade?

A menos que seja, por sua vez, loucura!

Charles Campreux — a propósito do «Repouso do Guerreiro», romance de Christiane Rochefort

 

Tragédia e Comédia: conceitos e realizações  A última Aventura de Júlio Verne Pequeno Romance de um Rio João Afonso de Aveiro acompanhou Diogo de Azambuja à Costa da Mina?   Poesia versus / versos Poemas Dois Inéditos de Jaime Magalhães Lima Prolegómenos da História d'Arte 12 Unidades sobre o País de Gales Uma Perdida no Céu (conto) Crítica Biblioteca Municipal Fac-símiles

 

Página anterior Página inicial Página seguinte

Reprodução fac-similada desta página.