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Artes - Letras - Ciências
Suplemento do n.º 261 do "Litoral"
Outubro de 1959, Ano I, n.º 2
págs. 19 e 20

 

Uma PERDIDA no CÉU

Um conto de

FREDERICO DE MOURA

 

Desenho de ZÉ PENICHEIRO

A Senhora Maria da Loiça serviu o Dr. Novais durante quarenta anos. Foi lá para casa ainda no tempo da Senhora que Deus haja, com trinta anos apenas, matou-se uma vida inteira a chegar lenha ao lume para não deixar esfriar o comer ao patrão e, quando este enviuvou, foi quem lhe valeu. Aturou-lhe o mau génio da idade, friccionou-lhe o reumatismo, aplicou-lhe as cataplasmas na bronquite, lavou-o, remendou-o e até o pôs em limpo muitas vezes quando a apoplexia o deixou imobilizado na cama, nos últimos três anos em que viveu.

O certo é que, embora o velho não tivesse muito de seu, podia muito bem ter disposto as coisas de modo a não deixar a Senhora Maria da Loiça a pedir por portas. Mas não esboçou um gesto nesse sentido e o resultado foi que, apenas fechou o olho, os sobrinhos caíram-lhe em casa como um bando de corvos a dividir o espólio e até jogaram a pancada por causa das partilhas.

E aí ficou a Senhora Maria da Loiça de mãos a abanar, só, com setenta anos e pico, já sem servir para nada, mas encarando a situação como a coisa mais natural deste mundo. Se quis o bocado para a boca, não teve remédio senão esgravatá-lo e foi por isso que teve de botar mão do negócio da loiça vidrada que todos os sábados vendia no mercado semanal e que, ao cabo, e ao resto, o povo lhe veio a grudar ao nome.

A Almerinda, por caridade, deu-lhe um canto e uma tarimba para ela dormir a sua noite e rezar o seu terço e, com o pouco que vinha do comércio dos barros, punha-lhe a mesa e com fartura.

A Almerinda era padeira, fabricava uma boroa bem cozida e cheirosa que aglutinava vasta freguesia e nas horas vagas fazia a sua tolice — que lá assente dos cascos nunca fora. E daí a existência de três filhos agarrados à saia — cada qual de seu pai diferente — que ela criou àqueles peitos, fartos como sacas de pão, e a quem trazia sempre asseados até meterem raiva às vizinhas.

Cachopa de coração tão amplo que não podia ver misérias à sua roda sem dividir ao meio o pão que tinha, era ao mesmo tempo tão pronta para as solicitações da carne que às vezes dava escândalo no beco — e do graúdo. Mas trabalhadora e limpa como não havia! E bonita! Um cabelo que fazia inveja às madamas mais empertigadas e uma pele aparentada com o cetim que fazia morder de inveja as mocinhas de boa cepa!

Recolheu a Senhora Maria da Loiça com a simplicidade de quem pratica uma obrigação de rotina e, se é certo que toda a gente tinha pela velha criada muito respeito, a verdade é que ninguém a acoitou senão a Almerinda.

Toda a gente da Vila salientava a acção da rapariga, mas ninguém veio trazer uma ajuda que se visse à pobreza que escancarava, de par em par, as portas à pobreza. Muitas palavras almofadaram a situação aflitiva da serviçal sem arrimo, mas atitudes concretas só as tomou a pobre padeira, que, aliás, a moral da terra tinha quase em regime de gafaria.

Os setenta anos e pico da velha criada tinham os seus achaques e nunca para eles faltou o chazinho de cidreira dado com muito bons modos, nem o caldo, muito bem apuradinho, servido a hora certa. E sempre que, pela noite velha, a bronquite lhe abria o peito numa tosse pegajosa e funda, a voz da rapariga aparecia a perguntar:

 

— A Senhora Maria quer que lhe arranje alguma coisinha quente? De uma vez, porém, as coisas complicaram-se. Uma falta de ar, de fazer aflição a quem via, esgazeava os olhos da velha numa exoftalmia proeminente /página 20/ e as pernas estavam inchadas como urcas. A Vila inteira a foi ver e, manda a verdade que se diga, ninguém apareceu sem a sua franguita para os caldos ou sem o seu apaparico de malguinhas de marmelada ou de meios quilos de açúcar branco. E todos saíam do quarto com a impressão de que a pobre mulherzinha estava chegada ao seu fim.

Durante quarenta anos fora a Senhora Maria da Loiça quem tomara conta dos recados para o velho facultativo ir ver os doentes e quem segurava todos os fedelhos para receberem a vacina e para se conformarem com os pontos, largos e desapiedados, na rachadela da cabeça. Sempre trouxera de bom grado a caneca de água para o chelique do consultório e o bolo doce para sossegar o menino rezingão. Todos lhe deviam uma canastra de favores e quase todos se lembravam agora dos serviços recebidos. Um corrupio de gente se estabeleceu para casa da Almerinda e todos puderam verificar como a doente estava bem tratada e limpinha. A dobra do lençol parecia engomada e, na brancura da fronha, a cabeça, penteada a preceito, parecia coberta de prata velha. De tal modo, que até o Padre — que olhava sempre de soslaio para a rapariga por causa das suas tropelias contra o sexto Mandamento — não teve remédio senão render-se perante aquele poço sem fundo de caridade: — A Misericórdia de Deus é infinita!...

Quando parecia que nada mais havia a fazer, quando todos aguardavam que a Senhora Maria, depois de ungida, entregasse a alma ao Criador, os pingos que o médico novo tinha receitado começaram a dar de si. E aquele coração, que há setenta e tal anos zangalhava, deu em arrebitar de tal modo que, no sábado seguinte, já a velha criada retomava o seu negócio no mercado ante o pasmo dos feirantes.

Aquela velhice sem família lá ia seguindo o seu trajecto, apoiada nos cuidados de quem não tinha nenhuma obrigação de os dar, quando sucedeu uma desgraça. Há três dias que a Almerinda ficara de cama dando mostras de grande sofrimento e contorcendo-se, de espaço o espaço, com dores que pareciam ser lancinantes e que não permitiam abafar um grito estridente, de vez em quando. Tinha a pele esmaecida como um papel, e obstinadamente recusava que lhe chamassem o Doutor. Que não senhor, que aquilo havia de passar e que não falassem mais em chamar médico.

Quem vinha amiudadas vezes era o curandeiro da Choca, figura sinistra e adunca, com cara de bruxa, mãos negras e arqueadas como garras, que dava mostras de muito apreensiva. Mais dois dias se passaram no meio daquela luta angustiosa, sempre envolvidos num nevoeiro espesso de segredos, ao fim dos quais apareceram na face exangue e desbotada da rapariga duas maçãs rosadas, a mostrarem a febre aos olhos da Senhora Maria da Loiça.

— Ó mulher, eu vou-te chamar o Doutor!

Uma voz já um pouco diluída e defraudada da convicção anterior, ainda disse que não, mas com tanta debilidade, com tanta astenia, que não foi capaz de imobilizar ninguém. E o médico veio mesmo e por um triz que não chegava apenas para verificar o óbito.

O que se passou dentro do quarto ninguém o viu, nem ouviu, e apenas quando se abriu a porta se apanharam umas palavras despernadas: — Tolices... estes estupores destas bruxas... o caso agora é com as autoridades. Tinha-se juntado gente, que interrogava o clínico com certa ansiedade: — Então a cachopinha, Senhor Doutor? — A cachopinha está perdida! Desta vez paga cara a cabeçada!...

A Senhora Maria da Loiça refugiou-se então num pranto que não tinha fim, com os garotos à roda, muito chegados. Os seus olhos, despolidos e quase cegos, desfizeram-se em lágrimas. E do fundo desse choro, silencioso e puro, só uma frase aflorava de vez em quando:

— Está no Céu, o seu lugar é no Céu!

E depois de vencer uns soluços, que lhe entaramelavam a fala, elevava a sua voz, roufenha e granulosa, quanto podia, para inquirir das carpideiras:

— Se ela lá não está, quem há-de estar?

FREDERICO DE MOURA

 

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