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A Senhora Maria da Loiça serviu o Dr.
Novais durante quarenta anos. Foi lá para casa ainda no tempo da Senhora
que Deus haja, com trinta anos apenas, matou-se uma vida inteira a
chegar lenha ao lume para não deixar esfriar o comer ao patrão e, quando
este enviuvou, foi quem lhe valeu. Aturou-lhe o mau génio da idade,
friccionou-lhe o reumatismo, aplicou-lhe as cataplasmas na bronquite,
lavou-o, remendou-o e até o pôs em limpo muitas vezes quando a apoplexia
o deixou imobilizado na cama, nos últimos três anos em que viveu.
O certo é que, embora o velho não
tivesse muito de seu, podia muito bem ter disposto as coisas de modo a
não deixar a Senhora Maria da Loiça a pedir por portas. Mas não esboçou
um gesto nesse sentido e o resultado foi que, apenas fechou o olho, os
sobrinhos caíram-lhe em casa como um bando de corvos a dividir o espólio
e até jogaram a pancada por causa das partilhas.
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E aí ficou a Senhora Maria da Loiça de
mãos a abanar, só, com setenta anos e pico, já sem servir para nada, mas
encarando a situação como a coisa mais natural deste mundo. Se quis o
bocado para a boca, não teve remédio senão esgravatá-lo e foi por isso
que teve de botar mão do negócio da loiça vidrada que todos os sábados
vendia no mercado semanal e que, ao cabo, e ao resto, o povo lhe veio a
grudar ao nome.
A Almerinda, por caridade, deu-lhe um
canto e uma tarimba para ela dormir a sua noite e rezar o seu terço e,
com o pouco que vinha do comércio dos barros, punha-lhe a mesa e com
fartura.
A Almerinda era padeira, fabricava uma
boroa bem cozida e cheirosa que aglutinava vasta freguesia e nas horas
vagas fazia a sua tolice — que lá assente dos cascos nunca fora. E daí a
existência de três filhos agarrados à saia — cada qual de seu pai
diferente — que ela criou àqueles peitos, fartos como sacas de pão, e a
quem trazia sempre asseados até meterem raiva às vizinhas.
Cachopa de coração tão amplo que não
podia ver misérias à sua roda sem dividir ao meio o pão que tinha, era
ao mesmo tempo tão pronta para as solicitações da carne que às vezes
dava escândalo no beco — e do graúdo. Mas trabalhadora e limpa como não
havia! E bonita! Um cabelo que fazia inveja às madamas mais empertigadas
e uma pele aparentada com o cetim que fazia morder de inveja as mocinhas
de boa cepa!
Recolheu a Senhora Maria da Loiça com a
simplicidade de quem pratica uma obrigação de rotina e, se é certo que
toda a gente tinha pela velha criada muito respeito, a verdade é que
ninguém a acoitou senão a Almerinda.
Toda a gente da Vila salientava a acção
da rapariga, mas ninguém veio trazer uma ajuda que se visse à pobreza
que escancarava, de par em par, as portas à pobreza. Muitas palavras
almofadaram a situação aflitiva da serviçal sem arrimo, mas atitudes
concretas só as tomou a pobre padeira, que, aliás, a moral da terra
tinha quase em regime de gafaria.
Os setenta anos e pico da velha criada
tinham os seus achaques e nunca para eles faltou o chazinho de cidreira
dado com muito bons modos, nem o caldo, muito bem apuradinho, servido a
hora certa. E sempre que, pela noite velha, a bronquite lhe abria o
peito numa tosse pegajosa e funda, a voz da rapariga aparecia a
perguntar:
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— A Senhora Maria quer que lhe arranje
alguma coisinha quente? De uma vez, porém, as coisas complicaram-se. Uma
falta de ar, de fazer aflição a quem via, esgazeava os olhos da velha
numa exoftalmia proeminente /página
20/ e as pernas estavam inchadas como urcas. A Vila inteira a foi
ver e, manda a verdade que se diga, ninguém apareceu sem a sua franguita
para os caldos ou sem o seu apaparico de malguinhas de marmelada ou de
meios quilos de açúcar branco. E todos saíam do quarto com a impressão
de que a pobre mulherzinha estava chegada ao seu fim.
Durante quarenta anos fora a Senhora
Maria da Loiça quem tomara conta dos recados para o velho facultativo ir
ver os doentes e quem segurava todos os fedelhos para receberem a vacina
e para se conformarem com os pontos, largos e desapiedados, na rachadela
da cabeça. Sempre trouxera de bom grado a caneca de água para o chelique
do consultório e o bolo doce para sossegar o menino rezingão. Todos lhe
deviam uma canastra de favores e quase todos se lembravam agora dos
serviços recebidos. Um corrupio de gente se estabeleceu para casa da
Almerinda e todos puderam verificar como a doente estava bem tratada e
limpinha. A dobra do lençol parecia engomada e, na brancura da fronha, a
cabeça, penteada a preceito, parecia coberta de prata velha. De tal
modo, que até o Padre — que olhava sempre de soslaio para a rapariga por
causa das suas tropelias contra o sexto Mandamento — não teve remédio
senão render-se perante aquele poço sem fundo de caridade: — A
Misericórdia de Deus é infinita!...
Quando parecia que nada mais havia a
fazer, quando todos aguardavam que a Senhora Maria, depois de ungida,
entregasse a alma ao Criador, os pingos que o médico novo tinha
receitado começaram a dar de si. E aquele coração, que há setenta e tal
anos zangalhava, deu em arrebitar de tal modo que, no sábado seguinte,
já a velha criada retomava o seu negócio no mercado ante o pasmo dos
feirantes.
Aquela velhice sem família lá ia
seguindo o seu trajecto, apoiada nos cuidados de quem não tinha nenhuma
obrigação de os dar, quando sucedeu uma desgraça. Há três dias que a
Almerinda ficara de cama dando mostras de grande sofrimento e
contorcendo-se, de espaço o espaço, com dores que pareciam ser
lancinantes e que não permitiam abafar um grito estridente, de vez em
quando. Tinha a pele esmaecida como um papel, e obstinadamente recusava
que lhe chamassem o Doutor. Que não senhor, que aquilo havia de passar e
que não falassem mais em chamar médico.
Quem vinha amiudadas vezes era o
curandeiro da Choca, figura sinistra e adunca, com cara de bruxa, mãos
negras e arqueadas como garras, que dava mostras de muito apreensiva.
Mais dois dias se passaram no meio daquela luta angustiosa, sempre
envolvidos num nevoeiro espesso de segredos, ao fim dos quais apareceram
na face exangue e desbotada da rapariga duas maçãs rosadas, a mostrarem
a febre aos olhos da Senhora Maria da Loiça.
— Ó mulher, eu vou-te chamar o Doutor!
Uma voz já um pouco diluída e defraudada
da convicção anterior, ainda disse que não, mas com tanta debilidade,
com tanta astenia, que não foi capaz de imobilizar ninguém. E o médico
veio mesmo e por um triz que não chegava apenas para verificar o óbito.
O que se passou dentro do quarto ninguém
o viu, nem ouviu, e apenas quando se abriu a porta se apanharam umas
palavras despernadas: — Tolices... estes estupores destas bruxas... o
caso agora é com as autoridades. Tinha-se juntado gente, que interrogava
o clínico com certa ansiedade: — Então a cachopinha, Senhor Doutor? — A
cachopinha está perdida! Desta vez paga cara a cabeçada!...
A Senhora Maria da Loiça refugiou-se
então num pranto que não tinha fim, com os garotos à roda, muito
chegados. Os seus olhos, despolidos e quase cegos, desfizeram-se em
lágrimas. E do fundo desse choro, silencioso e puro, só uma frase
aflorava de vez em quando:
— Está no Céu, o seu lugar é no Céu!
E depois de vencer uns soluços, que lhe
entaramelavam a fala, elevava a sua voz, roufenha e granulosa, quanto
podia, para inquirir das carpideiras:
— Se ela lá não está, quem há-de estar?
FREDERICO DE MOURA |