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Artes - Letras - Ciências
Suplemento do n.º 261 do "Litoral"
Outubro de 1959, Ano I, n.º 2
pág. 5

 

ENTRE dois rochedos lisos, no cimo dumas moitas verdejantes e perfumadas, a cheirar a restos de Natureza, nasceu um rio de águas infantis, borbulhando no fundo de uma cova mourisca. O riozinho, logo na nascente, alimentava raízes de poejos, espargos e agriões, escorregando por uma floresta de ervas rasteiras, num fio de prata que serpenteava, murmurante, pelos degraus de uma terra de piçarrão. Quando o veio de água eterna chegava aos prados, só por um instante corria ao lado dumas silvas brincalhonas, para cair depois num pequeno declive e continuar a viagem, de braço dado com o sol, até junto de um açude, onde se transformava num pego, durante o Verão. Mas, quando vinha o Inverno, o pego enchia-se com as enxurradas, transbordava, invadia terrenos de cultivo, e muitas vezes ia beijar o mar.

Mas a vida de um rio que nasce numa pequena saliência, entre moitas e pilriteiros e o perfume morno das florzinhas silvestres, puro e manso como um dia de Maio, quase não chega ao mar, nas suas fracas posses. Parecendo que se aquieta nos pegos, rompe vagarosamente, cristalino, e já com maior caudal, por entre a tenra folhagem que lhe enfeita o leito, vai andando, andando, mais belo e saltitante, percorrendo as distâncias, como um peregrino. Num sítio descoberto, pára de novo a descansar. As camponesas lavam a roupa nas suas águas vivas e os passarinhos, de manhãzinha, bebem, aos saltinhos, gotas da sua pura corrente. Pela noite velha, casais de raposas, cautelosas, vêm às suas margens matar a sede. Por que se aquieta o riozinho de águas tranquilas, que nasceu no alto dos outeiros? Será só para ver a paisagem e aloirar-se ao sol? Ou espera novas forças que lhe permitam recomeçar a sua poética vagabundagem, agora através dos plainos, onde namora a lua, pelas misteriosas noites muçulmanas – e se aquece nos leitos curvos, nos dias de madorna?

Nas terras que visita e lava, crescem árvores de folhas tesas e raízes nodosas, gozando de frescura e saúde. Porque outro rio, ainda mais pequeno, se lhe juntou, o seu leito alargou-se, e, pelos caminhos de Cristo que vão dar às terras de barro, regam hortas e pomares, montados e searas, numa simples camaradagem de tunantes, até ao fim de muitos concelhos.

Então, os homens chegaram para ver o rio, onde ele nascia e se acoitava, numa cova humilde, as léguas que percorria, na sua senda gloriosa e benfeitora. Foram dali e fecharam-se em gabinetes, traçaram umas linhas complexas e inexoráveis – e condenaram-no a morrer. A cinquenta quilómetros da nascente, quando tudo indicava que o rio de águas límpidas e intrépidas iria, pelos tempos fora, desaguar ao Oceano, eis que os homens rasgaram uma fronteira na terra, a cavaram e alindaram, e construíram uma barragem. Desviou-se o curso do rio, mutilaram-lhe a graça, destruíram-lhe as margens e fizeram-no cair, pela primeira vez, no abismo. Revolto, num rasgo de coragem, correu ainda pelas paredes de cimento armado, saltou mais que as próprias forças lhe permitiam, gritou na companhia do vento, aquietou-se          mordido pelo sol e, por fim, cansado, preso, oprimido, ficou decorando a dor e a liberdade roubada, num murmurar plangente das suas ondas chorosas. Num aperto feroz, quase estrangulado, o rio engordou, sedentário, e transformou-se num lago enorme, donde saía e tornava a voltar, como um preso no intervalo dum presídio.

Porém, com  o tempo, o riozinho tornou a alegrar-se,  compreensivo e vigiado na sua pureza lusitana. No meio do caminho, acenava aos outros irmãos que se lhe juntavam, indo conjuntamente desaguar na grande barragem que, por sua vez, abrindo as comportas, de tempos a tempos, entornava as águas murmurosas nas terras secas e mirradas, restituindo-lhe a liberdade perdida.

Por causa disso, nasceram pomares, rebentaram espigas e ervas e cresceram gados nas longas várzeas. O rio não se suicidara – transformara-se em húmus, em outras fontes criadoras de energia, férteis e redentoras, quebrando o jugo dos homens – e entregando-se novamente à Natureza.

Nunes da Silva

 

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