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ENTRE
dois rochedos lisos, no cimo dumas moitas verdejantes e perfumadas,
a cheirar a restos de Natureza, nasceu um rio de águas infantis,
borbulhando no fundo de uma cova mourisca. O riozinho, logo na
nascente, alimentava raízes de poejos, espargos e agriões,
escorregando por uma floresta de ervas rasteiras, num fio de prata
que serpenteava, murmurante, pelos degraus de uma terra de piçarrão.
Quando o veio de água eterna chegava aos prados, só por um instante
corria ao lado dumas silvas brincalhonas, para cair depois num
pequeno declive e continuar a viagem, de braço dado com o sol, até
junto de um açude, onde se transformava num pego, durante o Verão.
Mas, quando vinha o Inverno, o pego enchia-se com as enxurradas,
transbordava, invadia terrenos de cultivo, e muitas vezes ia beijar
o mar. |
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Mas a vida de um rio
que nasce numa pequena saliência, entre moitas e pilriteiros e o perfume
morno das florzinhas silvestres, puro e manso como um dia de Maio, quase
não chega ao mar, nas suas fracas posses. Parecendo que se aquieta nos
pegos, rompe vagarosamente, cristalino, e já com maior caudal, por entre
a tenra folhagem que lhe enfeita o leito, vai andando, andando, mais
belo e saltitante, percorrendo as distâncias, como um peregrino. Num
sítio descoberto, pára de novo a descansar. As camponesas lavam a roupa
nas suas águas vivas e os passarinhos, de manhãzinha, bebem, aos
saltinhos, gotas da sua pura corrente. Pela noite velha, casais de
raposas, cautelosas, vêm às suas margens matar a sede. Por que se
aquieta o riozinho de águas tranquilas, que nasceu no alto dos outeiros?
Será só para ver a paisagem e aloirar-se ao sol? Ou espera novas forças
que lhe permitam recomeçar a sua poética vagabundagem, agora através dos
plainos, onde namora a lua, pelas misteriosas noites muçulmanas – e se
aquece nos leitos curvos, nos dias de madorna?
Nas terras que visita
e lava, crescem árvores de folhas tesas e raízes nodosas, gozando de
frescura e saúde. Porque outro rio, ainda mais pequeno, se lhe juntou, o
seu leito alargou-se, e, pelos caminhos de Cristo que vão dar às terras
de barro, regam hortas e pomares, montados e searas, numa simples
camaradagem de tunantes, até ao fim de muitos concelhos.
Então, os homens
chegaram para ver o rio, onde ele nascia e se acoitava, numa cova
humilde, as léguas que percorria, na sua senda gloriosa e benfeitora.
Foram dali e fecharam-se em gabinetes, traçaram umas linhas complexas e
inexoráveis – e condenaram-no a morrer. A cinquenta quilómetros da
nascente, quando tudo indicava que o rio de águas límpidas e intrépidas
iria, pelos tempos fora, desaguar ao Oceano, eis que os homens rasgaram
uma fronteira na terra, a cavaram e alindaram, e construíram uma
barragem. Desviou-se o curso do rio, mutilaram-lhe a graça,
destruíram-lhe as margens e fizeram-no cair, pela primeira vez, no
abismo. Revolto, num rasgo de coragem, correu ainda pelas paredes de
cimento armado, saltou mais que as próprias forças lhe permitiam, gritou
na companhia do vento, aquietou-se mordido pelo sol e, por fim,
cansado, preso, oprimido, ficou decorando a dor e a liberdade roubada,
num murmurar plangente das suas ondas chorosas. Num aperto feroz, quase
estrangulado, o rio engordou, sedentário, e transformou-se num lago
enorme, donde saía e tornava a voltar, como um preso no intervalo dum
presídio.
Porém, com o
tempo, o riozinho tornou a alegrar-se, compreensivo e vigiado na
sua pureza lusitana. No meio do caminho, acenava aos outros irmãos
que se lhe juntavam, indo conjuntamente desaguar na grande barragem
que, por sua vez, abrindo as comportas, de tempos a tempos,
entornava as águas murmurosas nas terras secas e mirradas,
restituindo-lhe a liberdade perdida.
Por causa disso,
nasceram pomares, rebentaram espigas e ervas e cresceram gados nas
longas várzeas. O rio não se suicidara – transformara-se em húmus,
em outras fontes criadoras de energia, férteis e redentoras,
quebrando o jugo dos homens – e entregando-se novamente à Natureza.
Nunes da Silva |
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