Há quem pretenda que João Afonso de
Aveiro tomou parte na expedição de Diogo de Azambuja à costa de Mina.
Parece definitivamente averiguado que a
frota partiu do reino em 11 – ou em 12, segundo alguns – de Dezembro de
1481, e alcançou a Mina, não no dia indicado no Esmeraldo de Situ
Orbis, mas em 19 de Janeiro de 1482 (Rui de Pina, Chronica d'EI
Rei D. João II, cap. II; Garcia de Resende, Chronica dos
Valerosos, e Insignes Feitos DeI Rey Dom Ioam II, cap. XXV; João de
Barros, Ásia, década I, liv. III; Doutor Damião Peres,
História dos Descobrimentos Portugueses, pág. 189, nota 2, e A
Exploração do Golfo da Guiné, na História de Portugal, ed. de
Barcelos, vol. lII, pág. 549).
O cosmógrafo e roteirista Duarte Pacheco
Pereira diz que a armada se compunha de nove caravelas e duas urcas
(Duarte Pacheco Pereira, Esmeraldo de Situ Orbis; cf. Padre
António Brásio, Monumenta Missionaria Africana (África Ocidental), vol.
I, págs. 3 e segs.). Rui de Pina e Garcia de Resende não referem o
número de navios; mas João de Barros indica dez caravelas e duas urcas e
esclarece o seguinte:
«Assentado que se fizesse esta fortaleza
[de S. Jorge da Mina] mandou El Rei aperceber huma armada de dez
caravelas e duas urcas em que fosse pedra lavrada, telha, madeira, e
assi todalas outras munições, e mantimentos pera seiscentos homens, de
que os cento eram officiaes pera esta obra, e os quinhentos de peleja;
dos quaes navios era Capitão mór Diogo d’Azambuja pessoa mui
experimentada nas causas da guerra; e os outros Capitães eram Gonçalo da
Fonseca, Ruy de Oliveira, João Rodrigues Gante, João Afonso, que depois
matáram em Arguim, sendo capitão daquella fortaleza João de Mourca,
Diogo Rodrigues lnglez, Bartholomeu Dias, Pero d’Evora e Gomes Aires
escudeiro delRey D. Pedro d’Aragão, o qual entrou em lugar de Pero
d’Azambuja, irmão delle Diogo d’Azambuja, por morrer de peste primeiro
que partissem de Lisboa, que a este tempo andava nella, todos homens
nobres, e criados delRey. E os Capitães das urcas eram Pero de Cintra e
Fernão d’Afonso», etc. (João de Barros, lbidem, década I, liv. III; cf.
Padre António Brásio, lbidem, vol. I, pág. 19).
A transcrição é feita da edição de
Lisboa, de 1778 – e por ela haveria de concluir-se que João de Barros
errou, por inadvertência, a contagem: excluído João de Moura, ali
indicado como capitão de Arguim, os capitães das caravelas seriam nove,
o que estaria de acordo com o relato de Duarte Pacheco Pereira.
Mas a edição de Coimbra de 1932,
conforme a princeps, revista e prefaciada pelo sr. Dr. António Baião,
reza de outra maneira:
«...dos quáes nauios éra capitã mór
Diógo Dazãbuja pesóa muy experimêtada nas cousas da guerra; e os outros
capitães eram Gonçálo Dafonseca, Ruy Doliueira, Joã Royz Gante, Joã
Afonso, que depois matáram em Arguim sendo capitam daquella fortaleza,
Joam de Moura Diógo Royz jngres, Bartholameu Diaz, Pero Déuora, e Gómez
Aires escudeiro deI rey dom Pedro Daragam», etc.
O capitão da fortaleza de Arguim passa a
ser João Afonso.
É de notar que também aqui se verifica o
caos da pontuação, pois se suprime uma vírgula entre «Joam de Moura» e «Diógo
Royz jngres»...
A edição do ilustre Prof. Doutor Hernâni
Cidade, além das que traz a princeps, põe uma vírgula depois de Arguim –
o que, todavia, não lhe altera o sentido.
Sendo diversas as fontes e
desencontradas as edições do cronista, surgem, muito naturalmente, os
desacordos entre os que as utilizam: o eminente historiador dos
descobrimentos Prof. Doutor Damião Peres, fundando-se em João de Barros,
diz que a frota era constituída por dez caravelas e duas urcas (Prof.
Doutor Damião Peres, locs. cits.); os ilustrados historiógrafos Luciano
Cordeiro e Marques Gomes, em conformidade com a informação de Duarte
Pacheco Pereira, afirmam que era composta de nove caravelas e duas urcas
(Luciano Cordeiro, Diogo /página
7/ d’Azambuja, pág. 28; Marques Gomes, Centenário do
Descobrimento do Caminho Marítimo da Índia, pág. 2).
O que se tem como certo é que João
Afonso capitaneava uma das caravelas.
Seria este João Afonso o navegador João
Afonso de Aveiro?
Luciano Cordeiro presume que sim. No seu
estudo sobre Diogo d’Azambuja lê-se o seguinte:
«No commando dos navios figuram nomes
dos mais prestigiosos na descoberta e aventura marítima do tempo. Eram
os capitães das caravelas, Gonçalo da Fonseca, Ruy de Oliveira, João
Rodrigues Gante, João Afonso, certamente o de Aveiro, João de Moura,
Diogo Rodrigues, Bartholomeu Dias, o que seis annos depois havia de
dobrar o Cabo da Boa Esperança, Pedro d’Évora e Gomes Ayres. Dirigiam as
urcas Pedro de Cintra e Fernão Affonso» (Luciano Cordeiro. Ibidem, pág.
28).
Albano da Silveira, investigador e
historiador de grandes méritos, parece não ter sobre isso quaisquer
dúvidas, pois se exprime deste modo:
«...n’este anno de 1486 João Affonso
d’Aveiro, que fôra um dos capitães da armada de Diogo de Azambuja,
descobria terras e assentava pazes no reino de Benim, situado além da
Mina, cujo serviço elle mesmo viera relatar, trazendo como segura prova
um Embaixador d’aquelle Rei» (Albano da Silveira, Memória chronológica
acerca do descobrimento das terras do Preste João das Índias, cit. por
Marques Gomes, lbidem, pág, 4).
Não sei se fundamentando-se apenas em
João de Barros, Luciano Cordeiro e Albano da Silveira, que transcreve,
se em quaisquer outras fontes, Marques Gomes afirma também, em tom de
segurança:
«João Affonso antes das suas emprezas em
Benim, de que resultou D. João II redobrar de esforços para encontrar o
caminho marítimo da Índia, tomara parte na expedição de Diogo de
Azambuja à costa da Mina em 1481 e bem assim na segunda (sic) de Diogo
Cão às costas africanas em 1484» (Marques Gomes, lbidem, pág. 2).
Foi, ao que parece, reproduzindo Marques
Gomes que o escritor aveirense Rangel de Quadros asseverou ter sido João
Afonso de Aveiro um dos capitães da frota de Diogo de Azambuja (Rangel
de Quadros, Aveirenses Notáveis, fI. 102).
Mais recentemente, o erudito Prof. Edgar
Prestage, cuja autoridade desnecessário se torna encarecer, escreveu,
sem quaisquer hesitações:
«Em cumprimento da sua missão, Diogo de
Azambuja largou de Lisboa a 12 de Dezembro de 1481, acompanhado por
alguns dos mais notáveis marinheiros e descobridores daquele tempo,
entre os quais Bartolomeu Dias e João Afonso de Aveiro» (Edgar Prestage,
Descobridores Portugueses, 2.ª ed., pág. 238).
Fiado nestas notícias, julguei poder
afirmar-se – e disse-o algures – que João Afonso de Aveiro havia tomado
parte, como capitão de uma das caravelas, na expedição de Diogo de
Azambuja à Costa da Mina (Cf. João Afonso de Aveiro - Introdução a um
estudo sobre o famoso navegador aveirense, pág. 16, nota 2). Revendo
agora o problema, continuo nesse convencimento, mas não devo ocultar que
podem opor-se-lhe algumas objecções. João de Barros informa que os
capitães das caravelas eram «todos homens nobres, e criados delRey».
Isto não significa que fossem «filhos de algo» ou que eles próprios
houvessem conquistado – mesmo a seguir ao feito e, portanto, à data em
que João de Barros escreveu – quaisquer títulos nobiliárquicos. A
expressão tem o alcance da empregada, exactamente em relação aos
capitães da frota, pelo cronista Rui de Pina: «homens muy honrados, e
criados del Rey», semelhante à usada por Duarte Pacheco Pereira «homeës
muy honrrados e».
Aqueles «homens muy honrados» eram,
quase todos, simples marinheiros, a um tempo modestos e valorosos:
chamava-se-lhes assim por serem homens de coragem e persistência,
argutos e sabedores, extraordinariamente aprumados e verdadeiramente
peritos na sua arte.
Nisto consistia a sua nobreza – e assim
se compreende que o João Afonso que capitaneava uma das caravelas fosse
o humilde e afamado piloto João Afonso de Aveiro.
Há um facto sumamente importante que – a
confirmar-se a identidade das pessoas – parece corroborá-lo.
Em 25 de Fevereiro de 1497, um João de
Aveiro, querendo obter o mestrado de determinada caravela, apresentou-se
nos casos do «almazem» da Guiné e aí requereu essa mercê, na presença
dos célebres escudeiros e navegadores João de Lisboa e Bartolomeu Dias,
cujos testemunhos, e especialmente o deste último, invocava para prova
da sua competência. Este João de Aveiro era, segundo a douta opinião do
Padre António Brásio, o celebrado navegador João Afonso de Aveiro (Cf.
Litoral, ano V, n.º 253, de 29-VllI-1959).
Não causa a mínima estranheza que
tivesse de oferecer a prova de que era «bom piloto e bom marinheiro»,
pois que tal seria formalidade /página
8/ necessária ao deferimento da pretensão.
O Bartolomeu Dias indicado como garante
das aptidões de João de Aveiro foi, não qualquer outro dos que então
usaram esse nome, mas um dos capitães da armada de Diogo de Azambuja – e
exercia, ao tempo, o cargo de «recebedor do almazem da Guiné» (Torre do
Tombo, Chancelaria de D. Manuel, liv. 6, fol. 11, cit. pelo Prof. Doutor
Damião Peres, lbidem, pág. 216). Muito logicamente se concluirá que
podia certificar as altas qualidades de João de Aveiro pelo que dele
conhecia da expedição à costa da Mina, em que ambos tomaram parte – e
daí que o João Afonso referido pelo cronista seria o João Afonso de
Aveiro (ou João de Aveiro) que mais tarde descobriu o reino e terras de
Benim. Conclusão tanto mais aceitável quanto é certo que este não fez
parte da frota de Bartolomeu Dias que dobrou o Cabo da Boa Esperança; os
capitães das caravelas eram então, além daquele, João Infante e Diogo
Dias ou Pero Dias; e os pilotos chamavam-se Pero de Alenquer e João de
Santiago (Prof. Doutor Damião Peres, lbidem, págs. 213 e segs.).
Convém prevenir desde já que, ao
contrário do que se afirma num trabalho recente (Dr. Francisco Ferreira
Neves, Naturalidade e família de João Afonso de Aveiro, navegador e
poeta do século XV, págs. 10 e 20), não se encontra de modo algum
averiguada a época do falecimento de João Afonso de Aveiro – problema
melindroso que, em lugar mais ajustado deste estudo, tentarei, na medida
das minhas possibilidades, esclarecer.
Acontece, porém, que João de Barros
acrescenta ao nome de João Afonso, que capitaneava um dos navios da
armada de Diogo de Azambuja, esta indicação: «que depois mataram em
Arguim». Ora tanto Rui de Pina como Garcia de Resende afirmam que João
Afonso de Aveiro faleceu em Benim – e Elaine Sanceau, certamente porque
os cronistas registaram que a terra era «de muito perygo, de doenças» ou
«muyto doentia» afoita-se a precisar que ali «morreu de febres» (Elaine
Sanceau, D. João lI, pág. 261).
João de Barros não o ignorava, pois
repete que João Afonso de Aveiro faleceu na feitoria de Benim: «... e
entre as pessoas de nome, que nella faleceram, foi o mesmo João Afonso
d’Aveiro que a primeiro assentou» (João de Barros, lbidem; cf. Padre
António Brásio, lbidem, vol. I, pág. 54).
Não pode, razoavelmente, confundir-se
Arguim com Benim, aliás povoações bastante afastadas, nem uma morte
violenta com uma morte natural – pelo que haveria de concluir-se que o
João Afonso que tomou parte na armada de Diogo de Azambuja e mataram em
Arguim era pessoa diversa do João Afonso de Aveiro que faleceu em Benim.
Atrevo-me, porém, a supor aqui uma das
frequentes confusões de João de Barros.
O cronista indica como capitão de uma
das caravelas um (João Afonso, que depois mataram em Arguim sendo
capitam daquella fortaleza». Seria, portanto, posteriormente à expedição
de Diogo de Azambuja que um João Afonso, capitão da fortaleza de Arguim,
ali foi morto. Esta distância no tempo permite admitir um equívoco
derivado da identidade dos nomes.
A hipótese ganha em consistência quando
se considere que o João Afonso que capitaneava uma das caravelas era,
necessariamente, um marinheiro, ao passo que o João Afonso capitão da
fortaleza de Arguim seria, muito naturalmente, um chefe militar. Por via
de regra, os navegadores iam a descobrir e os capitães militares a
assegurar as descobertas, consolidando direitos de soberania e fixando
bases de comércio (Cf. Luciano Cordeiro, lbidem, pág. 29).
EUCLIDES VAZ - Pormenor da
estátua a João Afonso de Aveiro, erecta no Rossio, de Aveiro. |
Se a isto
pretendesse opor-se que a bordo dos próprios navios as primitivas
funções de dirigentes militares e de navegação eram exercidas por um
só homem, seria de lembrar que, ao tempo, já assim não acontecia:
com a continuação dos descobrimentos, aquelas funções separaram-se e
diferenciaram-se, originando profissões completamente distintas
(Prof. Mário de Vasconcelos e Sá, Os navios dos descobrimentos, na
História de Portugal, vol. III, pág. 609).
Nem será
despropositado recordar que um piloto, habituado à vida movimentada
e ampla das derrotas, não se adaptaria facilmente à quietude e
constrangimento de uma feitoria... O exemplo de Diogo de Azambuja,
capitão da Mina, do Mogador e de Çafim, não rouba a mais
insignificante parcela de valor à lembrança, pois aquele não foi
propriamente um descobridor, mas um homem de armas (Cf. Luciano
Cordeiro, lbidem, pág. 7).
Falta aqui, sem
dúvida, uma prova documental decisiva; mas adiante terei o ensejo de
reforçar esta hipótese, que se me afigura extremamente provável, com
uma observação que aproveita – pois abona as afirmações, tão
insistentemente repetidas por historiadores consagrados, de que o
insigne piloto João Afonso de Aveiro acompanhou Diogo de Azambuja à
costa da Mina. |
Do trabalho inédito Alguns problemas
sobre João Afonso de Aveiro.
António Christo |