A aventura de Gully Jimson — velho
pintor repleto dum inconformismo sem raízes bem definidas — acusa, na
sua trama geral, uma oscilatória debilidade; se não mesmo um compromisso
discutível com a brilhante veia satírica do autor; caudalosamente
embrechados numa toada descritiva prenhe de verbosidade, os lances
repetem-se, emaranham-se, dilatam-se, com prejuízo dum ritmo que as
amiudadas introversões do protagonista já entrecortariam
suficientemente. Encontramo-nos, contudo, ante um narrador invulgar,
servido por uma destreza estilística que, embora localizável nos
antípodas do classicismo retórico, nunca se aproxima da fórmula
totalmente expurgada de Cucurull, ou Pratolini, ou Cendrars; e, no
milagre da sua frase curta, às vezes cingida a períodos sucessivos duma
única palavra, reside a explicação maior do constante domínio que mantém
sobre o leitor, impondo-lhe um interesse muito à beira do encantamento e
escamoteando-lhe a percepção racional duma ideia-base notoriamente
descolorida. Temos, pois, que o humor de Cary, chegando a requintar-se
num processo auto-crítico à maneira de Waugh, não efectiva aquilo a que
chamaríamos humor de situação; toda a vivacidade deste «jongleur»
do sarcasmo vem aplicada no jogo caleidoscópico das suas metáforas e
define, assim, um método humorístico puramente verbal. O conteúdo da sua
ironia não atinge as culminâncias universalistas de B. Shaw, nem a
intelectualizada finura de Aldous Huxley; tão-pouco a sua virulenta
iconoclastia aparece moldada nos paradoxos subtis dum Wilde, apesar de
igualmente construída sobre caboucos dialécticos. Mas as suas
desconcertantes /página 23/
imagens, possibilitando um sintetismo de expressão verdadeiramente
ímpar, garantem-lhe um lugar de boa plana entre os notáveis da língua
britânica.
Mascarado sob tais primícias
tropológicas, o cinismo de Jimson fila um «statu quo» social cujos
podres ninguém desconhece e azorraga-o sorridentemente, deixando numa
penumbra expectante certas latências poéticas que, conquanto
impressivas, só muito fugazmente irrompem da urdidura global. Nosy, o
garoto que acreditava na Arte; Plant, o incrível sapateiro de formação
espinoseana; a Coker, feia, ignorante, saturada de afectividade e
senso-comum — traduzem o pacto do escritor com as reservas de
sinceridade ainda topáveis no mundo. Além disso, à Coker pertence um
outro papel específico, desde que aproveitemos o cômputo das suas
virtudes para um estudo multifacetado da natureza feminina. E esse
estudo, a revelar uma tendência imediatamente comprovada por alguns
passos esclarecedores (...as mulheres são muito úteis à Arte. São a
matéria prima...) completa-se no desenho de mais três
personalidades-padrão — Sara, Rozzie e Lolie —, cada qual fixando uma
convergência-tipo das principais linhas psicológicas inerentes à mulher.
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Num ensaio prévio, Cary procura obter
para a jocosidade infrene do seu herói uma justificação derrotista,
adequada a quem pretende iludir um problema de soluções inviáveis:
Jimson, como artista criador, está sempre na véspera do grande
combate. Sabe também, de antemão, que a recompensa do mundo pelos
seus sacrifícios e empreendimentos será a ponta duma espada, a
frustração, a morte e, finalmente, uma sepultura anónima. Assim,
brinca com a vida pelo simples motivo de que não ousa tomá-la a
sério. |
Todavia, o bosquejo dalguns episódios,
insertos na efabulação à guisa de rápido apontamento, assegura-nos que a
mordacidade do livro é quase toda aparente e derivada dum recreio formal
que, por espontâneo, sistematicamente convida à sátira impiedosa. As
lágrimas que toldam a face de Gully Jimson ao aperceber-se da morte de
Sara reflectem, digamos, um dos muitos peculiarismos temperamentais que
constituem o substrato humano da novelística de J. Cary.
Recapitulando, voltaremos a salientar
que «A Verdade Em Primeira Mão» nada esclarece no aspecto de revoluções
literárias ou mensagens especiais, nem prima por uma índole temática
capaz de exceder a técnica fulgurante do discurso exibido. Também a
pesquisa de quaisquer influências marcadas, sobretudo implicando
atitudes de discípulo, redundaria num insucesso; e isto porque a ficção
de Cary — mesmo que lhe debitemos um permanente «sopesar de
consciências», visível em James Joyce, ou uma valorização das
personagens humildes que lembra Thomas Hardy — parte directamente de
arrogantes e firmes recursos pessoais. A impressão que nos fica, após a
leitura de cerca de quinhentas páginas, é justamente a duma história não
muito rica de qualidades intrínsecas, mas contada por alguém que,
denegando todo o enfeudamento a esta ou àquela escola, possui o
indelével mérito dum estilo original e cheio de sabor.
Jorge Mendes Leal
MAR SANTO
de Branquinho da Fonseca
SOCIEDADE EXPANSÃO CULTURAL
MAR SANTO é a Vida duma aldeia de
pescadores, perdida na borda do mar e onde o progresso ainda quase não
chegou. «— Houvesse um portinho de abrigo, um muro que nos defendesse —
costumam eles lamentar-se — e já a fome era menos». No seu quase
primitivismo, essa gente vive dependente do deus-supremo-mar, «o
amigo-inimigo donde lhes vinha todo o bem e todo o mal, a miséria e o
pão, o luto e a alegria». Quando os barcos podem sair para fora da
praia, não há fome, e uma sensação de felicidade envolve aquele pequeno
mundo. Quando o mar rompe com o seu estrondo, «às peças», lá do alto, e
avança pela terra dentro, há gritos de angústia na praia, e a vida traz
a cobri-la um manto escuro, os pescadores matam o tempo pelas tabernas,
a casa de penhores é por uns momentos a âncora salvadora, e um baile à
noite, ao ruído da sanfona, ainda é o único esquece-mágoas e misérias.
Na preocupação de trazer para as suas
páginas o reflexo duma panorâmica real e pormenorizada desta sociedade,
Branquinho da Fonseca valeu-se duma esquematização, que por pouco nem
chega a ser uma esquematização, tão diluída fica a linfa principal na
rede de afluentes e confluentes que a rodeiam. É a velha intriga de
amor, mais observada pela lupa do folclore do que por outra coisa. O Zé
Orega é um valente rapagão, «alto, de ombros largos, com uma cara de
linhas serenas, o olhar calmo», desde os catorze anos habituado a ir à
Terra Nova, agora «primeira-linha da frota bacalhoeira e ali na Praia
também um dos melhores pescadores /página
22/ de peixe grosso». A Inês e a Bragaia são as cachopas mais
jeitosas e bonitas da aldeia, um tanto esquisitas na escolha de namoro,
e talvez por isso mesmo alimentos de muito sonho. O Zé Orega e o seu
inseparável Chalabardo, com mais alguns, resolvem fazer uma sociedade
para comprar um barco, o qual, logo no primeiro dia, é estilhaçado pelas
ondas contra a costa. O Chalabardo sempre conquista a Bragaia e, como a
Inês se resolve a olhar com outros olhos o Orega, ele paga vinho a toda
a malta e bebem à saúde dum novo barco que haveriam de comprar. É assim,
dentro dum tal entrecho, dado nas tintas mais leves, que Branquinho da
Fonseca ganha oportunidade para analisar todos os recantos da vida deste
povo, todos os cambiantes do espírito e da psicologia deste povo: os
seus usos, as suas crenças, a sua formação, os seus costumes, no que têm
de picaresco e de instintivo, de folclórico e de elevado, no dia-a-dia
monótono que se tece entre a bonança e as ocasiões de tempestade. Desta
maneira, o livro perde uma sequência directa de narração para se tornar
mais um largo quadro, ou melhor, uma densa série de aguarelas cheias de
movimento e de cor no seu fundo permanente — o Mar.
E surgem-nos, então, num realce de
descritivo, cenas de difícil paralelo em obras do mesmo género, como a
zaragata, no baile, à navalhada, entre o Quim Zarro e o Orega, a
bisbilhotice das vizinhas, o jogo nas tabernas, as mulheres que se
juntam à saída ou à entrada dos barcos, os ambientes soturnos de
família, a preparação do engodo para a pesca, as lotas para arrematação
do peixe, todo o belo colorido dos bosques circundantes prenhes de
mistério e sedução, albergando assassinos e lagoas onde as raparigas vão
mergulhar o seu nudismo.
Uma dessas descrições, que só
dificilmente esquecerão, é a daquela tarde de angústia em que o povo, em
multidão, segue ansiosamente os manejos do barco do Orega entre as
ondas. Os seus lamentos misturam-se com os uivos dos tufões e o trovejar
do Oceano.
«— Olha... Agora viram ao Norte?...
— Minha Nossa Senhora! Estão aos teus
olhos! Minha Nossa Senhora!...
— Santificado seja o vosso Nome, assim
na Terra como no Céu...
— Onde vão eles?...
— Quem lá vai sabe o que faz.» As
páginas dum Raul Brandão dos «Pescadores» assaltam-nos, rápido, à
lembrança. Há, contudo, um outro pormenor, grande e de merecido destaque
nesta obra de Branquinho da Fonseca. É a figura do ti Bártolo, o tipo
perfeito do homem do nosso mar, com a rudeza dalguns setenta invernos a
amarrecar-lhe o costado e com a experiência da vida a brotar-lhe das
palavras. — «O mar engana Cristo...» /.../ «Sê bem o que é o mar: antes
o não soubesse... Tem me lá dois filhos e um irmão...» /.../ «O mar!...
Sabes lá o que é o mar! Quem bebeu auga salgada é que sabe... O mar é um
lião...» — assim ele vai discorrendo através das páginas do livro.
No entanto, depois de tudo, o que será
ainda mais para admirar é a forma como o autor de «Mar Santo» conseguiu
transmitir, dentro da já assinalada fraca intriga desta sua obra de
ficção, uma tão intensa visão da vida desta gente, sem incorrer no
precipício do emaranhado confuso e sem nexo. Tudo nos aparece com
naturalidade, com brilho, com equilíbrio. Os diálogos como que foram
recolhidos daquele linguajar embebido de maresia. Pode haver quem não
concorde com o espírito da obra, mas todos reconhecerão nela um
autêntico filão de trechos de antologia. Em meu ver, também a «Presença»
esteve presente na realização desta obra.
O mesmo sentido mórbido, o mesmo tom
deprimente, o mesmo carácter estranho, quer dos ambientes quer das
personagens, que na generalidade os presencistas beberam em Raul
Brandão, se evola de quase todo o contexto. Porém, uma verdadeira
compaixão pela humanidade que parece aproximar Branquinho da Fonseca do
neo-realismo se desprender de frases como esta: e a rede «lá vem vindo,
arrastada por aquelas negras filas de escravos, dobrados, chicoteados
pela voz que dá esperança...», etc..
A «Presença» não acolheu com muita
simpatia o aparecimento desta nova corrente literária, arreigada, como
estava, às suas concepções e teorizações acerca da Arte duma forma que
não chegava a consentir, dentro das suas muralhas pontos de vista
diferentes. Daqui nasceu a dissidência de Branquinho da Fonseca. E eis
onde está a singularidade e o lado simpático deste escritor: uma
personalidade que não sacrificou totalmente aos manes duma, para se
conservar de todo alheado aos rumores da outra escola. É isto que está
bem patente em «Mar Santo», uma novela que mais se poderia classificar
de romance pelo mundo de vida que encerra — mas, acima de tudo, uma obra
de arte, realizada com um grau de sensibilidade, com um tal sentido
estético, que bem pode explicar o acolhimento que o público lhe tem
dado, agora que se distribui já em segunda edição.
JOAQUIM CORREIA |