Manuel J. G. Carvalho
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Aveiro, neste ano de 2009, abre-se prenhe de datas
redondas, proporcionando momentos para memoriar o
que fomos e pensar o que somos: 1050 anos da
primeira referência escrita – conhecida – a Aveiro;
250 anos da elevação da vila de Aveiro a cidade;
200 anos dos nascimentos de José Estêvão e de Mendes
Leite; 180 anos dos Mártires da Liberdade; 150 anos
dos nascimentos de Jaime de Magalhães Lima e de Luís
de Magalhães, que só os acasos da vida política de
seu pai fizeram nascer em Lisboa; 100 anos dos
nascimentos de João Sarabando e de Eduardo
Cerqueira; 80 anos do nascimento de José Afonso; 40
anos do falecimento de Mário Sacramento.
No âmbito destas memórias,
cumpre-me homenagear, aqui e agora, o grande tribuno
José Estêvão Coelho de Magalhães, essa figura
tutelar de Aveiro, essa personalidade multifacetada
de soldado, orador parlamentar, político,
jornalista, professor e advogado, homem de carácter
e cidadão de corpo inteiro, que jamais abandonou a
primeira linha da luta pela Liberdade, não recuando
perante situações a que poderia ter-se acomodado,
antes arriscando carreira e vida pelos seus ideais.
Filho de Luís Cipriano Coelho de Magalhães e de D.
Clara Miquelina de Azevedo Leitão, José Estêvão
nasceu em Aveiro a 26 de Dezembro de 1809, numa casa
que os avós maternos possuíam na Rua de Trás dos
Mercadores. |
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Quadro do pintor José Maria Sales, óleo sobre
tela, de 1866, existente na Escola Secundária
José Estêvão.
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Foi baptizado em 1 de Janeiro de
1810, na Igreja de Nossa Senhora da Apresentação,
pelo vigário Dr. Manuel Rodrigues,
assistindo como padrinhos o seu segundo tio,
José Ribeiro de Azevedo Leitão, e a irmã deste, Luísa
Teresa. Foi-lhe posto o nome de José Estêvão, a que
lhe acrescentaram Costa de Magalhães, apelidos
respectivamente de seu avô materno e de seu pai,
substituídos depois por Coelho de Magalhães, os dois
apelidos de seu pai, igualmente atribuídos aos
restantes irmãos.
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O pai, Luís Cipriano, perante a debilidade física de
sua mulher e a insegurança resultante da terceira
invasão francesa, cujo exército andou perto de Aveiro, já que passou por Viseu, Buçaco e Coimbra,
mandou o filho recém-nascido, juntamente com a sua
ama, para casa da avó materna, D. Ana Joaquina Rosa,
onde ficará até aos 9 anos de idade.
Em 1819 José Estêvão volta para casa de seus pais,
sem ter sido ainda iniciado nas primeiras letras,
juntando-se finalmente aos três irmãos, nascidos na
sua ausência: António Augusto, Maria Doroteia e Luís
Rufino. Mas, considerando a pequena distância que
separava a casa de seus pais e a dos avós com quem
vivia, certamente que o convívio seria diário.
Começou então a frequentar as aulas do professor de
instrução primária de Aveiro, Custódio José
Baptista, o Cossoia, a poucos metros da sua nova
morada, mas será
com seu pai que aprenderá a ler.
Em Junho de 1821 morre-lhe a mãe.
Completados os estudos primários, começa a estudar
Latim com José Lucas de
Sousa da Silveira, Lógica com Francisco Inácio de
Mendonça e Retórica com o padre Manuel Xavier de
Sousa. Teve como condiscípulos, na aula de Latim, e
já antes, na aula de primeiras letras, o futuro
general Joaquim da Costa Cascais e Manuel José
Mendes Leite.
Em 1825 ruma a Coimbra, onde o encontramos a residir
no número 24 da Rua
dos Estudos e matriculado no primeiro ano de
Direito, curso que interromperá ao sabor dos grandes
acontecimentos políticos da época, e da sua
intervenção directa nas lutas contra o Absolutismo.
No ano seguinte, com apenas dezasseis anos,
destaca-se pelas suas intervenções nos clubes
políticos de Coimbra, sempre na defesa dos ideais do
liberalismo
e da liberdade, e alista-se no Batalhão de
Voluntários Académicos, formado para combater a
revolta absolutista chefiada pelo marquês de Chaves.
Completará 17 anos no dia em que o seu batalhão
avança em direcção a Viseu.
Em 1828 o Vintismo sofre o último dos grandes golpes
de estado, dirigido por D. Miguel, aclamado rei
absoluto em vários pontos do País. A Carta
Constitucional, que D. Pedro outorgara aos
portugueses em Abril de 1826, deixa de vigorar, mas
os baluartes do liberalismo ainda estrebucham,
assistindo-se a levantamentos populares e militares
no Porto, em Aveiro, em Coimbra, no Algarve e na
Terceira (Açores).
José Estêvão alista-se no Terceiro Batalhão
Académico, mas as forças liberais acabarão vencidas,
devido em grande parte à mediocridade dos seus
chefes, desfecho que será sentido de forma
aterradora em Aveiro, onde se sucedem as prisões e
perseguições, que culminam na execução de nobres
filhos desta terra, enforcados e decapitados no
Porto.
Na sequência da derrota de 1828, José Estêvão foge
para a Galiza, integrado no grupo que embarcou em
Ferrol, com destino a Inglaterra. Entretanto, o pai,
Luís Cipriano, refugia-se no Porto, em casa do
padrinho, um juiz da alçada encarregado de julgar os
revoltosos de 16 de Maio.
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Plymouth: Câmara Municipal e Igreja de Santo André.
Gravura do século XIX. |
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Em 26 de Agosto de 1828 entra em Portsmouth,
seguindo depois para
Plymouth, onde se manteve até à partida para os
Açores. Esteve hospedado numa casa particular,
juntamente com Manuel José Mendes Leite, Pedra
António Rebocho Freire de Andrade e Albuquerque (o
futuro visconde de Santo António), na altura major
do batalhão de Caçadores 10 de Aveiro, e Manuel
Maria da Rocha Colmieiro (tenente-coronel de
milícias de Aveiro).
Em 30 de Janeiro de 1829, José Estêvão sai de
Plymouth, a bordo da galera americana James Croper,
integrando, juntamente com os restantes voluntários
académicos, a 1ª Companhia do Batalhão de
Voluntários da Rainha. Chegaram à Terceira no dia 14
de Fevereiro.
Em Junho desse mesmo ano aprofundam-se as clivagens
entre as várias facções de liberais estacionados na
ilha Terceira, multiplicando-se a boataria, a
maledicência e a intriga. Como uma parte destas
conspirações tinham por instrumento os académicos de
Coimbra, decidiu-se separar a 1ª Companhia do
restante Batalhão de Voluntários da Rainha. Dividida
a ilha em 8 distritos militares, atribuiu-se a
defesa do distrito de S. Pedro dos Biscoitos aos
universitários de Coimbra, organizados agora na
Companhia de Artilheiros Académicos, que,
estacionados a algumas léguas da vila da Praia, não
participaram nos combates de 11 de Agosto, em que a
esquadra absolutista foi rechaçada.
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A sua permanência nos Açores não coincide com o que
nos diz Marques Gomes e, na sua esteira, José
Tengarrinha. A reconstituição deste período da vida
de José Estêvão pode ser feita, bastando cruzar os
dados fornecidos pelos escritos de Luz Soriano, de
Ernesto Rebelo, no Arquivo dos Açores, e de
Marcelino Lima. Como
veremos, é bem possível que José Estêvão nunca tenha
entrado em combate, enquanto permaneceu nos Açores.
Se fez no arquipélago o seu baptismo
de fogo, tal só poderia ter acontecido na conquista
de S. Jorge, caso tenha integrado as forças que
saíram de Angra no dia 17 de Abril de 1831. Mas José
Estêvão pode ter sido integrado nas forças do conde
de Vila Flor apenas depois da conquista de S. Jorge,
quando o capitão-general se deslocou à Terceira para
trazer mais reforços.
De Julho de 1830 a finais de Fevereiro de 1831,
possivelmente desde o n.º 12 até ao n.º 39 ou 40, a
redacção da Crónica da Terceira, que funcionava como
jornal oficial da regência, é entregue aos
voluntários académicos José Estêvão
e Elias José de Morais. |
Entretanto o exército liberal continuava acantonado
na Terceira, com o resto do arquipélago controlado
pelos miguelistas. Finalmente, em Abril de 1831, a
regência decidiu avançar para a conquista das
restantes ilhas, para o que preparou uma expedição
que partiu do porto de Angra no dia 17 desse mesmo
mês, sob o comando do capitão-general conde de Vila
Flor, o futuro Duque da Terceira. O objectivo era a
conquista das restantes ilhas dos grupos Central e
Ocidental do arquipélago. Como vimos, é possível
que José Estêvão tenha integrado esta força
relativamente pequena, em que participaram
contingentes de todos os corpos que formavam a
guarnição da Terceira. Se não a integrou desde o
início, temos a certeza que estará com ela depois da
conquista de S. Jorge, pois fez parte das forças que
desembarcaram no Faial.
Em 21 de Abril cai a ilha do Pico, sem resistência e
sem combates. Em 9 de Maio será a vez da ilha de S.
Jorge, com os absolutistas a fazerem frente aos
liberais e a registarem cerca de 70 baixas.
Instalado o quartel-general em Velas, o conde de
Vila Flor parte na madrugada de 22 de Junho para a
ilha do Faial, já abandonada pelas tropas realistas,
que tinham fugido na corveta Isabel Maria e noutras
embarcações, ali desembarcando no dia seguinte,
debaixo do entusiasmo e dos aplausos dos faialenses.
No Faial, o sargento-mor António de Oliveira
Pereira, pessoa grada da Horta, a quem o conde de
Vila Flor tinha recomendado José Estêvão, viria a
encontrá-lo muito doente, tendo-o por isso recolhido
no seu solar, hoje com o número 24 da rua Serpa
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Pinto(1), onde o jovem aveirense permaneceu cerca de
um ano, de 23 de Junho de 1831 a
11 de Abril de 1832.
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Horta (Faial), Rua de Serpa Pinto. Casa que foi do
sargento-mor António de
Oliveira Pereira, que acolheu José Estêvão de
23-06-1831 a 11-04-1832. |
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A Graciosa e as Flores, livres da ameaça miguelista
que antes se impunha a partir
de S. Jorge, reconheceram de imediato a rainha D.
Maria II e a regência da Terceira. Nos
dias 1 e 2 de Agosto de 1831 (e não 1830, como se lê
em muitos autores) assiste-se à
conquista da ilha de S. Miguel e à célebre e heróica
batalha da Ladeira da Velha, sucessos
militares que não contaram com a participação de
José Estêvão (ao contrário do que
também se diz), integrado que estava no contingente
militar que permaneceu no Faial e
preso ao leito por grave doença que o atormentou
durante largos meses.
No mesmo dia em que se punha termo ao domínio
absolutista em S. Miguel, chegou a vez da ilha de
Santa Maria aclamar o governo liberal,
completando-se o
respectivo domínio em todo o arquipélago.
D. Pedro IV, que tinha abdicado da coroa imperial
brasileira, e estabelecido
residência em França, parte para os Açores em 10 de
Fevereiro de 1832, quando todo o arquipélago já era
liberal. Chegará a S. Miguel em 22 desse mesmo mês.
Em 7 de Abril,
D. Pedro desembarca no Faial, onde chegou a bordo do
Superb, um barco a vapor em
que costumava deslocar-se. No dia 11, o regente
abandona o Faial, com destino a S.
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158 /
Miguel. Com ele seguem as tropas e os voluntários
que seguirão depois para Pampelido. É nesta altura
que José Estêvão abandona a ilha do Faial, onde
residira quase durante dez meses. Na despedida dos
que partiam «o sargento-mor Oliveira Pereira
lacrimejava, abraçado desesperadamente ao jovem
cadete José Estêvão»: foi uma amizade para toda a
vida, que a gratidão e a correspondência de José
Estêvão souberam manter viva.
Pelas 14 horas do dia 27 de Junho, José Estêvão sai
de S. Miguel no brigue mercante Concórdia,
juntamente com os restantes companheiros da
Companhia de Artilheiros Académicos, em direcção ao
continente, onde desembarcam na tarde de 8 de Julho,
na praia da Arenosa de Pampelido. No dia seguinte
entra no Porto, onde se encontra com o pai, que ali
se achava escondido, em casa de amigos, para fugir à
fúria persecutória do revanchismo miguelista.
José Estêvão irá integrar a divisão do coronel José
António da Silva Torres (depois general, barão do
Pico do Celeiro e visconde da Serra do Pilar), que
ocupou o reduto da Serra do Pilar. Envolve-se
activamente na defesa da capital do Norte, dirigindo
o reforço das fortificações da Serra do Pilar e
destacando-se em combate, o que lhe valeu o grau de
cavaleiro da Torre-e-Espada, ordem entretanto
restaurada por D. Pedro IV, por alvará de 28 de
Julho de 1832. Tinha então 22 anos e pertencia ao
corpo de artilheiros académicos, onde tinha o posto
de cabo, recebendo aquela alta condecoração por
vontade expressa dos seus companheiros, que se
recusaram a sorteá-la entre si, conforme era hábito
e fora superiormente decidido. E, enquanto decorriam
estes acontecimentos, era preso o seu irmão António
Augusto, que, com apenas 17 anos, passaria às
cadeias de Viseu e Lamego, donde fugiu em 10 de
Abril de 1834.
O reconhecimento das altas qualidades militares e
humanas do jovem aveirense levaram o capitão José
Maria Baldy a propor a sua passagem para o exército
de linha, o que vem a acontecer por decreto de 4 de
Abril de 1833, que o integra na arma de artilharia
com o posto de segundo tenente. Cinco dias depois
batia-se corajosamente nos redutos e fortificações
que faziam parte da linha de defesa do Porto,
participando primeiro na tomada de Covelo, entre as
estradas de Braga e Guimarães, para, em 25 de Julho
do mesmo ano, à frente de vinte soldados quase todos
mortos na acção, se cobrir de glória na defesa da
Flecha dos Mortos, entre Lordelo e a Foz, sendo
galardoado, desta feita, com o grau de Oficial da
Torre-e-Espada.
Recordemos as palavras com que o filho Luís de
Magalhães deu cor à imagem que para si criou destes
últimos actos de bravura, cerzidos por certo de
muitas narrativas familiares:
Vejo-o na Flecha dos Mortos, nesse terrível reduto,
cujo nome só por si é um pregão de heroísmo, vejo-o
impávido e audaz, entre os seus vinte soldados,
caídos a seu lado, mortos ou feridos, esperar de
morrão aceso, ao pé da sua peça, a esposa heróica do
artilheiro nessas núpcias de morte e de glória, que
são as batalhas! – esperar ao pé dela a entrada dos
inimigos na bateria, que já não podia defender,
queimar com o morrão, num gesto violento e
provocador as barbas do comandante da força, e
retirar sob um chuveiro de balas para logo voltar
com reforços e reaver, à arma branca, numa carga
furiosa, a posição um momento perdida!
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159 /
Em 1834 será promovido a primeiro-tenente e, em
Fevereiro desse ano, sob o comando do marechal
Saldanha, contribui mais uma vez para a vitória
liberal, pelo denodo com que combate em Almoster.
A guerra civil termina nesse mesmo ano, pelo que,
com a vitória liberal, José Estêvão regressa a
Aveiro, donde segue para Coimbra, para continuar os
seus estudos. O soldo de primeiro-tenente servirá
para financiar a sua formatura, bem como a de seu
irmão António Augusto.
José Estêvão termina o curso de Direito em finais de
1836 e, no ano seguinte, é eleito deputado às
Constituintes. O homem que defendera os seus ideais
com as armas irá agora defendê-los com a palavra,
quer no Parlamento quer na imprensa, nos jornais "O
Tempo", que fundou em 1838, e "A Revolução de
Setembro", também por ele fundado em 1840, de
parceria com o seu amigo, conterrâneo e companheiro
de todos os momentos, Manuel José Mendes Leite.
Ainda em 1840, José Estêvão concorre e ganha o
concurso para leccionar a 10ª cadeira da Escola
Politécnica de Lisboa – Economia Política, Direito
Administrativo e
Comercial. O militar, político, parlamentar e
jornalista é agora também professor do
ensino superior.
As suas qualidades pessoais, a sua verticalidade
moral e a sua benevolência estão bem patentes
nalguns episódios da sua vida. A generosidade de
José Estêvão ia ao ponto de se envolver, sem
conhecimento do interessado, na consecução de um
cargo rendoso para um conterrâneo em dificuldades,
apesar deste ser seu inimigo político e de não
manter com ele quaisquer relações.
O seu espírito de tolerância, e a fidelidade aos
princípios que sempre o norte aram, levaram-no, em
1843, a defender em tribunal o jornal miguelista
"Portugal Velho", acusado de abuso de liberdade de
imprensa.
A posição de que desfrutava poderia tê-lo
transformado num homem acomodado, passível de
vender-se a interesses políticos ou económicos, que
lhe assegurassem um futuro promissor e desafogado.
Mas na alma deste homem não cabiam interesses
mesquinhos, nem ele se alienava, qual vendilhão do
templo, aos valores materiais que jamais
sobrepujaram as suas convicções morais e políticas.
A Constituição de 1838, que José Estêvão ajudara a
elaborar, na sua qualidade de parlamentar
constituinte, vai deixar de vigorar em 1842, na
sequência do pronunciamento de Costa Cabral. Os
barões do dinheiro venciam assim as forças da
Revolução de Setembro de 1836, em cujas fileiras
militava o distinto aveirense, e cujo
ideário se identificava com a esquerda liberal ou,
se preferirmos, com a ala democrática do liberalismo
português.
José Estêvão conspira e combate em todas as frentes,
mesmo quando o seu jornal "Revolução de Setembro" tem
de passar à clandestinidade, não deixando porém de
se publicar e de chegar a todos os pontos do País. E
quando, em 1844, a pressão da ditadura cabralista
atenta contra as liberdades fundamentais, o capitão
de artilharia José Estêvão abandona mais uma vez os
confortos da vida, para pegar em armas com o
Regimento de Cavalaria de Torres Novas. Num dos seus
discursos, na sessão das Cortes
de 12 de Agosto de 1840, e em resposta ao ministro
do Reino Rodrigo da Fonseca
/ 160 /
Magalhães, já o grande tribuno reconhecia com
desassombro «que a resistência armada é, em certas
ocasiões, não digo um direito, mas uma obrigação».
Encurralado na praça de Almeida, demitido do posto
de capitão e de lente da Escola Politécnica, José
Estêvão consegue, com mais dois oficiais, romper o
cerco e deslocar-se para Trás-os-Montes, onde tenta
sublevar várias localidades. O malogro destas
tentativas e a notícia da rendição de Almeida
obrigam-no a exilar-se em Paris, onde se conservará
durante cerca de dois anos com o seu companheiro e
camarada de armas Manuel José Mendes Leite, com
residência no n.º 20 da rua Laffite.
Entretanto, com data de 16 de Abril de 1844, a 1ª
Repartição da 3ª Direcção do Ministério do Reino
publicava uma circular, assinada por António
Bernardo da Costa Cabral que, em nome da rainha,
prometia «a quantia de um conto de reis» a quem
entregasse os fugitivos de Almeida ao governador
civil. Este episódio viria a inspirar o escritor
Joaquim Leitão, que nele se baseou para escrever o
conto biográfico Cabeça a Prémio, dedicado a Luís
de Magalhães, filho de José Estêvão.
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Paris: Rua Laffite, no século XIX |
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Em 1846, na sequência da sublevação da Maria da
Fonte, cai o governo dos Cabrais, o que permitirá o
repatriamento de José Estêvão, beneficiando da
amnistia que o ministério Palmela decretara para os
revolucionários de 1844. Em 5 de Outubro daquele ano
aparece o programa setembrista redigido por José
Estêvão, com o qual a esquerda liberal pretendia pôr
cobro à situação político-militar resultante da
ditadura cabralista e do levantamento da Maria da
Fonte.
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161 /
D. Maria II assusta-se com o evoluir dos
acontecimentos e acaba por promover o golpe de
Estado de 6 de Outubro, demitindo o gabinete
chefiado pelo duque de Palmela. O novo ministério,
agora sob o comando do duque de Saldanha,
apressou-se a dissolver o Parlamento e a
restabelecer a antiga lei eleitoral.
O País vai-se revoltando aqui e ali, do Norte ao
Sul, enquanto José Estêvão, que tinha retomado a
direcção do jornal "Revolução de Setembro", se vê
forçado a homiziar-se para escapar à prisão.
Conseguindo fugir de Lisboa, sob disfarce, aparece a
trabalhar na organização das forças revolucionárias,
sucessivamente em Santarém, Caldas da Rainha,
Alcobaça e Nazaré. Em Dezembro encontramo-lo
envolvido na formação da Junta de Setúbal e, no ano
seguinte, percorre o Alentejo na luta de guerrilha:
a Patuleia alastrava por todo o território nacional.
A revolução da Maria da Ponte teve também episódios
aveirenses. Em 14 de Maio de 1846 é assaltado o
Governo Civil, então na Rua Larga (actual Rua José
Estêvão), e preso o respectivo governador, António
José Vieira Santa Rita, o primeiro oficial José
Ferreira da Cunha e Sousa e o tesoureiro Manuel
António Lourenço de Mesquita. Participaram nesta
acção, entre outros, António Augusto Coelho de
Magalhães (irmão de
José Estêvão), João Carlos do Amaral Osório e
Alberto Ferreira Pinto Basto (filho de José Ferreira
Pinto Basto e administrador da Vista Alegre).
A pacificação virá de seguida, imposta por forças
espanholas, francesas e inglesas que a rainha
chamara a Portugal. Em 24 de Junho de 1847 a
Convenção de Gramido põe fim à guerra civil e José
Estêvão, novamente amnistiado, retoma o magistério
da Escola
Politécnica, mas fica proscrito do Parlamento na
legislatura de 1848-1850.
Em 1848, uma intervenção do duque de Saldanha nas
Cortes, afirmando ser necessário «esmagar com mão de
ferro a hidra revolucionária», deu lugar à chamada
Conspiração das Hidras, em cujas hostes pontificavam
os nomes de Oliveira Marreca, António Rodrigues
Sampaio e José Estêvão, auto-denominados de Comissão
Revolucionária de Lisboa, mas de imediato crismados
de Triunvirato Republicano, já que defendiam
soluções republicanas para a política nacional, e
pretendiam que triunfasse, como afirmavam em
manifesto, «os princípios democráticos, a causa das
liberdades públicas e da emancipação dos povos».
Era a resposta democrática de José Estêvão, farto de
ver a coroa ultrapassar a desejada divisão de
poderes, intervindo com desusada frequência na
dissolução do Parlamento, sempre que a maioria não
era favorável às políticas governamentais.
Continuava coerente com as ideias que expressara nas
Cortes, no ano de 1837, quando inaugurou a sua
actividade parlamentar e apresentou a sua definição
de soberania popular:
Juiz só, a julgar só; um rei só, com ministros
responsáveis, a executar só; um corpo legislativo
só, a legislar só; – eis aqui a minha monarquia, eis
aqui o meu governo
representativo.»
E, se a monarquia atentava contra esta regra de
ouro, se o governo, com a ajuda
desta monarquia, não respeitava a
representatividade, havia que procurar outras
soluções que a promovessem.
A repressão policial não se fez esperar e José
Estêvão viu-se obrigado a passar
mais uma vez à clandestinidade. No ano seguinte
regressa de novo à regência da sua
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162 /
cadeira na Escola Politécnica e, em 1851, pela mão
da Regeneração, voltará ao Parlamento. É neste
período que se bate pela construção do Liceu de
Aveiro e pela passagem, nesta cidade, do
caminho-de-ferro Lisboa-Porto.
O exílio em Paris, onde conviveu com figuras da
política e da cultura francesas, permitiu-lhe
observar de perto a instabilidade europeia e a
insatisfação francesa, quiçá o germinar dos
acontecimentos de 1848, e uma natural inquietação
perante a permanente fragilidade política e social
do seu País, onde a recuperação económica se
desejava inadiável e as reformas de fomento se
impunham, devem ter empurrado o tribuno para os
braços da Regeneração.
Esta fidelidade à ordem regeneradora, que pode a
priori ser percebida como uma incoerência do seu
percurso político, só será quebrada em 1860, aquando
do gabinete presidido por Joaquim António de Aguiar,
embora já se adivinhe em 1857, quando, na sessão
parlamentar de 23 de Maio, ocupando a sua «antiga
cadeira de deputado da extrema-esquerda», discursou
sobre o "Contrato do Tabaco".
O ilustre parlamentar parece sentir o peso de uma
certa incompreensão face às suas opções políticas, e
é nesse sentido que interpretamos as suas sucessivas
explicações e justificações.
No entanto, não devemos esquecer que tanto os
regeneradores como os históricos eram facções da
mesma família política, o chamado Partido
Progressista, nascido da coligação de todas as
forças liberais que se opunham ao Cabralismo. Convém
igualmente lembrar que, até ao último quartel do
século XIX, não podemos falar de partidos no moderno
sentido do termo. Os diferentes grupos políticos
tinham uma débil organização e eram, frequentemente,
muito indefinidos nos aspectos ideológicos e
programáticos.
José Estêvão já em 1857 mostrava o seu
descontentamento pelo crescente oportunismo
político, e pelos trânsfugas que se iam vendendo ao
ritmo das mordomias, privilegiando com as suas
diatribes o ministro António José d' Ávila, o antigo
presidente da Câmara da Horta, no período em que
José Estêvão ali permaneceu, e que o gabinete
progressista do marquês de Loulé fora recuperar das
antigas hostes cartistas e cabralistas. Aliás,
seriam gabinetes presididos pelo marquês de Loulé,
companheiro político do tribuno aveirense ao longo
de quase todo o segundo quartel de Oitocentos, o
alvo dos discursos mais famosos e vibrantes do estro
estevaniano. Referimo-nos aos discursos sobre as
questões da "Charles et George!', a barca francesa
apresada em Moçambique com
um carregamento de escravos, e das "Irmãs da
Caridade", instituição religiosa autorizada pelo
governo a instalar-se em Portugal.
O probo e distinto orador
alardeara sempre uma grande independência
intelectual e uma invulgar coerência cívica e
política, que facilmente captamos nas suas mais
importantes intervenções parlamentares. Em 1840 já
se insurgia contra a promiscuidade política, contra
o amálgama ordeiro, agrinaldando o
primeiro discurso do
"Porto Pireu" com algumas comparações de ironia
demolidora:
Eu disse que o centro da Câmara sabe respeitar os
factos... Vai a mais a sua ciência; o centro [os
"Ordeiros"] sabe apropriar-se de todos os factos e
declarar-se o fautor e autor de todos os
acontecimentos que aparecem no nosso globo! Tudo se
faz pela ordem, em virtude da ordem, pelo bem da
ordem e em nome da ordem! Sr.
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163 /
Presidente, o centro da Câmara é aquele
bem-aventurado louco que se declarou dono do
porto de Pireu e de todos os navios que nele
entravam. O porto de Pireu é o banco dos
ministros e as galeras que nele entram são os
diferentes ministérios. Perdoe-se-me esta
comparação que talvez seja baixa: aventuro outra. O
centro da Câmara é um fidalgo
d' aldeia, que se pretende aparentar com todos os
titulares, por consanguinidade, por
afinidade, e até por bastardia!
E, uma semana depois, respondendo a Garrett e
concluindo o discurso anterior:
Estão no Pireu os que, considerando a Coroa como uma
mina, se associam a
todas as companhias nacionais e estrangeiras para a
explorar, meditando largar a empresa
logo que a veia estiver pobre e as galerias de
mineração inundadas.
Estão no Pireu os que, dos livros que lêem, só ficam
conhecendo as capas; os
que alardeiam de aplicados para se esquivarem às
provas de talento; os que respondem
aos argumentos com a recordação de suas vigílias e
habilitações académicas; os que
cerzem de fazenda emprestada relatórios, leis e
discursos; os que chamam ignorantes aos
que lhes redargúem; e, finalmente, os que, para que
se não estrague o gosto público,
recomendam as suas obras com prefácios panegiristas,
escritos por sua própria e
modesta mão.
E a catilinária continuava, desapiedada, certeira e
mortífera.
Quando se afastou da Regeneração e enveredou,
desiludido mas não vencido,
por um certo isolacionismo político, José Estêvão
parece ter sentido necessidade de se
explicar perante o eleitorado, como no manifesto por
ele assinado e datado de 21 de
Abril de 1861, dirigido aos Snrs. Eleitores do
Círculo d' Aveiro:
Era natural, se falássemos, que me perguntásseis a
que partido eu pertenço. E
talvez não, que os genealogistas políticos vão sendo
raros, e os eleitores a quem
me dirijo prezam mais actos de boa governação do que
pergaminhos partidários.
[.. .]
Eu pertenço ao partido histórico pela parte que
tomei em todas as suas lutas
parlamentares e armadas para sustentar as liberdades
públicas.
Pertenço ao partido regenerador por lhe ter dado o
fraco concurso do meu voto
nos muitos cometimentos com que ele despersuadiu o
país duma política de
teorias e paixões para o ocupar de melhoramentos
reais e civilizadores. Para o
futuro pertencerei de certo ao partido que começa a
formar-se [...].
E, para que não restassem dúvidas sobre o que
pretendia, e sobre a relação que o
ligava aos partidos do sistema, terminava o longo
manifesto afirmando:
A minha candidatura é livre, independente, sem
condições, nem compromissos,
reservas, pactos ou sujeições de qualquer espécie.
Se podeis e quereis elegei-me assim, elegei-me.
Doutro modo nem peço os
vossos votos, nem os aceito. Se a eleição não é um
puro acto de consciência,
nem honra o candidato, nem os eleitores: e quando eu
rogo os vossos sufrágios
é para nos honrarmos reciprocamente, e para que
possamos juntos honrar o
País, em cujo serviço procuro continuar, não por
embófia política, ciúmes
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conterrâneos, ambição pessoal; mas simples e
exclusivamente por dever cívico e gratidão às vossas
finezas eleitorais.
O tribuno, que já era pai de um filho natural,
Mateus Luís Coelho de Magalhães,
fruto de amores de estudante coimbrão, casou-se em
1858 com D. Rita de Moura Miranda. No ano seguinte
nascia o seu filho Luís de Magalhães e, em 1860, a
filha Joana, que viria a falecer um ano depois,
quando o progenitor andava envolvido em campanha
eleitoral.
O ano de 1861 é para José Estêvão um ano de forte
actividade política. Para além de participar na
organização de um novo partido, como se pode
perceber pelo fragmento do manifesto eleitoral atrás
transcrito, ganha as eleições em candidatura de
oposição ao governo. Neste mesmo ano vende a sua
parte no jornal "Revolução de Setembro", passando a
colaborar activamente, desde o seu primeiro número,
no jornal "A Liberdade", fundado em 26 de Junho por
Jacinto Augusto de Freitas Oliveira, seu sobrinho
por afinidade, já que era casado com Maria José
Coelho de Magalhães, a filha primogénita de António
Augusto Coelho de Magalhães e sobrinha predilecta do
tribuno. Em Aveiro, perante a hostilidade de Manuel
Firmino de Almeida Maia, proprietário do jornal
"Campeão das Províncias" e seu ex-correligionário,
funda, com um grupo de amigos, o periódico "Districto
de Aveiro".
Entretanto, para além de continuar a trabalhar nas
habituais tarefas políticas, José Estêvão irá
privilegiar a Confederação Maçónica Portuguesa, da
qual é eleito Grão-Mestre no princípio de 1862. Com
tradições maçónicas na família, já que seu pai, Luís
Cipriano, pertencera à Loja que em 1823 funcionava
em Aveiro, na Quinta dos Santos Mártires, José
Estêvão foi iniciado no exílio inglês, em 1828, com
o nome simbólico de Pórcio. A iniciação teve lugar
na loja Fidelidade nº 14, teoricamente integrada no
Grande Oriente Lusitano e fundada naquela cidade
inglesa pelos exilados portugueses. Foi seu
apresentante o tenente-coronel das milícias de
Aveiro, Manuel Maria da Rocha Colmieiro. Tendo
ascendido ao sétimo grau do Rito Francês (Soberano
Príncipe Rosa Cruz), o tribuno aveirense foi
Venerável da Loja 5 de Novembro, de Lisboa.
Entre 1861 e 1862 envolve-se na fundação do Asilo S.
João, em Lisboa, e de um
asilo para a infância desvalida em Aveiro.
Repentinamente, em 4 de Novembro de 1862, quando
nada o fazia prever, morre em Lisboa, deixando a
esposa grávida do filho que nascerá postumamente e
que será baptizado com o mesmo nome do pai.
O duque de Loulé, chefe do ministério histórico que
governará o País de 1860 a 1865, envidava esforços,
através de amigos comuns, no sentido de o trazer ao
governo, pretendendo entregar-lhe a pasta do Reino.
Como se afirmava no seu elogio fúnebre, publicado em
1862 no "Archivo Pittoresco", «Privando com o poder,
muitas vezes, e nalgumas o seu maior esteio no
parlamento, nunca ambicionou o governo, não
solicitou nem aceitou mercês ou condecorações. O
peito onde pulsava tão grande coração, só se ornou
com a Torre-e-Espada, ganha no campo de batalha, e
com o colar da Academia das Ciências, que lhe foi
conferido pelo seu talento oratório. Eram os troféus
que havia conquistado nos dois campos de lide em que
tantas vitórias alcançara, e os emblemas da sua
profissão – as armas e as letras (Tomo 5, p. 338).
___________________________________
*
mjgcarvalho@gmail.com
(1) – Na fachada deste prédio vê-se uma placa em
mármore, com os seguintes dizeres: «NESTA CASA
RESIDIU O TRIBUNO LIBERAL / JOSÉ ESTEVAM COELHO DE
MAGALHÃES / EM 1831 A
1832 / MANDOU COLLOCAR ESTA LAPIDE A / VEREAÇÃO
MUNICIPAL / EM / 26 DE DEZEMBRO DE 1909 /10
CENTENÁRIO DO NASCIMENTO D'ESTE ILLUSTRE TRIBUNO» |