SESSÃO DE 14 DE
DEZEMBRO DE 1857
Não dissimulemos.
Fomos agravados, ofendidos, humilhados. Vilipendiados!
Não nos resta senão uma arma
e esta arma é a palavra.
Para estes extremos não
pode haver nesta casa outro regimento que não seja o
de um desforço leal e decoroso (Apoiados.) Por
minha parte, para satisfazer a esta necessidade,
excepciono a regra que tinha imposto a mim próprio e
tomo a palavra no debate do discurso da coroa, debate
que eu desde muito tempo reputo tão faustoso como fútil.
Sr. presidente, os
extraordinários acontecimentos que presenciamos, a
delicadíssima posição em que nos achamos e a urgência
de explicar ao país o que sofremos e o que podemos
vir a sofrer, aconselhavam a revogação pleníssima
das práticas parlamentares; e não concebo como o
governo tenha ocupado um só instante aquelas
cadeiras, sem expor com clareza, verdade e desassombro
as causas que ocasionaram a triste e deplorável pendência
que tivemos com o governo francês, e como nas
dificuldades desse conflito defendera o brio e o
decoro nacional. Não quisera que o governo tivesse
deixado, e a câmara houvesse consentido, guardar para
a discussão da resposta ao discurso da coroa, por
mais ponderosa que a queiram considerar, o desabafo da
nossa dor e o desagravo da nossa honra! Desejava que,
poucos momentos depois de reunida a câmara, a voz do
governo se confundisse com a dos representantes do país
para esclarecer este importante assunto.
Não foi airoso que por
tanto tempo estivéssemos exigindo os documentos,
bases e subsídios indispensáveis deste processo, e
fora melhor que o governo, ao entrar nesta casa, no
primeiro dia de sessão, nos apresentasse todos os papéis,
nos fizesse conhecer todos os factos que pudessem
mostrar a consciência do parlamento e satisfazer a
ansiedade do país. Mas, Sr. presidente, esperámos
trinta e dois dias que a imprensa oficial nos fosse
ministrando, folha a folha, este livro que tenho na mão,
e que ainda não contém todos os documentos que o
governo nos devia apresentar. (Apoiados).
Não me ocuparei das
considerações políticas, se não alheias, pelo
menos arredadas desta questão, com que o nobre
relator da comissão respondeu a um jovem orador, cuja
ausência, neste dia, nos recorda uma grande glória
de família, e uma sensível perda para o país.
Chamo-lhe glória de família, porque quando esse
mancebo esperançoso levantava aqui a sua voz, com
tanta modéstia como energia, em defesa dos direitos e
interesses da nação: quando de uma inteligência tão
jovem estávamos vendo sair tantas luzes e conselho,
que prometem mais do que um homem de tribuna, um homem
de governo: nessa mesma conjuntura, com diferença de
poucas horas, o pai desse mancebo desprendia-se do
mundo, tranquilo de consciência, sem saber que mesmo
nesse transe lhe estava ornando a frente moribunda a
mais apetecida aureola do homem e do cidadão, que é
deixar depois de nós, e de nós imediatamente
descendente, quem siga os nossos exemplos, quem trilhe
a nossa vereda, e quem possa servir a nossa pátria
com a mesma ilustração, virtude e dedicação com
que nós a tivermos servido. (Vozes: - Muito bem.)
Sr. presidente, já nos
exprobraram que temos os ouvidos cerrados. os olhos
fechados, que não víamos as misérias da pátria,
que não ouvíamos os gemidos dela, já nos amaldiçoaram,
porque no meio da dor e da aflição pública nós
deixámos tomar de ambições pequenas; já nos
acusaram de que neste momento supremo estávamos
preparando e espreitando a ocasião em que aqueles
ministros, perdendo a confiança da coroa, ou caindo
no desagrado dos seus amigos houvessem de deixar vagas
as suas cadeiras, para sem demora as irmos ocupar! Oh,
Sr. presidente! essa miserável especulação não
entrou no ânimo de ninguém. É uma impiedade imaginá-la
mas, se existisse, eu era estranho a ela. Neste debate
principalmente, recolhi-me por tal modo à minha
individualidade, que posso dizer à câmara e ao meu
país que pelas minhas opiniões e palavras não há
ninguém responsável senão eu e os meus eleitores.
Mas, Sr. presidente,
nem todos os membros desta casa nem este lado da câmara
estão na mesma isenção, porque não podem nem o
devem estar. A um homem é permitido isolar-se, e ter
a cómoda ambição de evitar a responsabilidade
oficial das suas ideias, abstendo-se das funções públicas
por meio das quais elas são postas em prática. Mas o
país não vive só de oradores, nem de iniciadores de
doutrinas; precisa homens de governo que tenham uma
opinião poderosa e eficaz entre os seus concidadãos,
e nenhuma oposição pode ser considerada uma entidade
concernente do sistema representativo se não tiver no
seu seio caracteres que aspirem ao poder, e que
reconheçam a obrigação de aspirar a ele. O que tem
de pior o governo actual é que pode com o seu exemplo
excitar ambições menos capazes e autorizar
analogias, que levem aos conselhos do estado pessoas
destituídas das indispensáveis qualidades para gerir
a coisa pública.
Sr. presidente, no meio
das desgraças públicas, no meio de tantas humilhações,
de tantas misérias, pensar só em ministérios,
cuidar só de ambições! Não há quem desça a tal
degradação. Não há, não pode haver: é impossível!
Pela minha parte, até
tomo a responsabilidade do governo em todos os actos
de resistência que praticou contra a opressão
estrangeira, e ofereço-lhe o meu apoio para inchoar
diplomaticamente esta questão, porque ela não
acabou, porque ela está em princípio, e porque a
responsabilidade do governo pelo futuro é ainda maior
do que a responsabilidade pelo passado. Não será
estranho que se repitam actos parecidos com aqueles
que nos indignaram a nós e escandalizaram a Europa. e
seria um crime esperá-los com o descuido e indiferença,
que já antes da primeira advertência não eram
desculpáveis.
Será possível que no
século em que vivemos, hoje que os princípios
fundamentais da sociedade, ofendidos nas mais remotas
regiões do globo, encontram calorosa e enérgica
vindicta nos povos medianamente ministrados e
policiados; hoje que o mundo civilizado se pode dizer
que tem unia só vida, um só princípio, uma só
consciência, uma só voz; será possível, digo, que
nesta quadra social nos viessem ameaçar e coagir-nos
as armas de unia nação, que nunca cometeu fraquezas,
que nunca se atreveu contra nações indefesas, que se
não devera pavonear de glórias ridículas?! Será
possível que o Tejo fosse devassado, invadido, e que
imponentes forças navais nos arrancassem unia presa
que estava guardada, não só pelas leis do nosso país,
que todo outro país devia respeitar, mas até por um
grande princípio europeu, e, o que é ainda mais, o
que é tudo, por um princípio de humanidade, que
ninguém ofende impunemente? Custa a crê-lo! Mas
vimo-lo, presenciámo-lo! Para mim, menor é a minha
dor como cidadão português, que o meu espanto, o meu
recolhimento e a minha melancolia como soldado fiel,
ainda que obscuro, do século em que vivemos, que não
compreende estes actos de barbaria, estes lances
desconcertados, estas desnecessárias ostentações de
poder. Tudo isto foi uma miséria e uma vergonha; (apoiados)
e porventura o governo francês é o primeiro que tem
a consciência do triste papel que representou. (Apoiados.)
Mas todos estes fenómenos
parecem inexplicáveis e incríveis: merecem,
portanto, ser bem estudados, referindo-nos as suas
causas primordiais, vendo-os em todas as suas relações,
confrontando-os com alguns princípios da economia
social, cotejando-os com as paixões e fraquezas do
povo que os originou, e apreciamo-los nos seus efeitos
previstos ou imprevistos, voluntários ou involuntários.
Primeiro que tudo é preciso averiguar como a França
se tornou protectora do comércio da escravatura. Se
ela ignora (que não pode ignorar) qual é o resultado
da sua política para connosco, e dos actos que em seu
nome foram praticados no Tejo, que o fique sabendo
desde já, para que não sofra pelo menos sem protesto
um estigma, que as nações mais pequenas e mais
humildes rejeitariam com horror.
A tomada do Charles
et Georges, e o facto da sua entrega, deram rebate
a todos os traficantes de carne humana, franceses,
portugueses, de todos os países e de todas as
categorias. Quantos na nossa terra, sabe Deus! não
estarão louvando a esta hora aquele acto de bravura,
e matinando por saber com que condições e por que
modo hão de alcançar a protecção da bandeira
francesa para cobrir as suas carregações de
escravatura! (Apoiados.) Este é o efeito
previsto dos actos praticados pelo governo francês
contra nós. A França, repito, que o fique assim
entendendo e que acuda convenientemente pela sua
honra, porque não há nação alguma por mais
poderosa, por mais valente, por mais rica em feitos
históricos, que não perca no conceito público.
quando ataca as leis da humanidade e se enxovalha
neste tráfico repugnante e imundo. (Muitos
apoiados.)
E nós não nos
atenhamos só ao direito, a consagrações antigas, a
frases presunçosas. Há muita gente que repete com ênfase
e confiança as palavras domínios da coroa
portuguesa, e julga que com isto esconjura ambições
e atentados. Enganam-se.
A Europa pensadora. a
Europa laboriosa, a Europa que precisa expandir-se, os
homens de todos os países que por diversos modos estão
empenhados na civilização e no progresso, os
industriais mais activos e mais empreendedores, que
querem ver postas por obra as suas concepções, e
realizadas as suas esperanças, não consideram que há
coroa portuguesa, nem coroa de potentado algum. O que
têm em conta são governos solícitos, que aproveitam
os países que administram, que os fazem cultivar e
produzir, quanto cabe em suas naturais faculdades.
Não há nações
morgadas, assim como hão pode, nem deve haver, famílias
morgadas. A humanidade não cabe no mundo, nem com o
seu número, nem com as suas aspirações. E esta
verdade, que é hoje experimental, impossibilita a
existência da propriedade territorial, inculta e
descuidada, seja nas mãos dos indivíduos ou na mão
dos povos. O trabalho é o princípio e o complemento
de todo o direito de possuir.
Segundo os hábitos
comuns da vida em todos os povos civilizados e mesmo não
civilizados, por cada indivíduo da espécie humana
que nasce neste século, deve contar-se mais
um consumidor de café e açúcar.
Por isso o café e o açúcar
são dois géneros do maior consumo, consumo certo,
porque se deriva de necessidades arreigadas e
tendentes a aumentar, visto que a população, que
cresce por toda a parte, toma os hábitos com que é
criada.
Daqui resulta que a indústria
agrícola aplicada à produção destes dois géneros
tem o atractivo do grande lucro, e como estes géneros
não podem ser cultivados com proveito senão em
certas regiões e não são hábeis para trabalhar
nessas regiões senão os homens de certa raça, os
que se dão àquele ramo de cultura procurarão por
todos os meios haver para o seu serviço os indivíduos
dessa mesma raça.
Esta procura é infalível,
incessante. Não há nela freio de consciência, nem
de humanidade, porque estes trabalhadores são
considerados máquinas especiais, e é forçoso ou havê-los,
ou abandonar o ramo do trabalho para que eles são próprios.
Eis aqui a origem e a causa verdadeira da pretensão
da França.
Mas esta necessidade não
desculpa, de forma alguma, a quebra das leis, da justiça
e da honra; (apoiados) não permite que se
pratiquem actos de violência desnecessários e
pequenos. (Apoiados.)
Sr. presidente, se a câmara
julga que as considerações, que estou trazendo para
esta questão, são impertinentes, eu não as reputo
como tais. Se lhe parece que estou fora do debate, eu
entendo que estou própria e rigorosamente nele porque
quero prevenir o governo, a coroa e o parlamento
português, que Portugal está em vésperas de perder
as suas colónias, se não tomar a tempo as medidas
administrativas e diplomáticas que a questão actual
veio mostrar-nos tão urgentes e imperiosas. (Apoiados.)
Temem o governo francês? Pois eu temo mais os
economistas franceses, cujas doutrinas se adiam em
algumas peças da correspondência sobre o Charles
et Georges, que anda na mão de todos, e tanto
maior é o meu temor quanto esses mesmos economistas
asseveram, com a maior afoiteza, que os seus princípios
têm assentimento e apoio do seu governo. Mal ficamos,
deveras mal, se o governo francês adopta formalmente
aquela economia política, se a manda ensinar nos seus
navios de guerra, e faz proteger a vulgarização dela
com os seus canhões.
Esta economia política
é professada insignemente por mr. Mequet,
comandante do brigue Génie e o fim manifesto
de suas doutrinas é a usurpação das nossas colónias.
Mas a França não está
só apertada pelas leis gerais do mundo; também a
aguilhoa o ciúme colonial da Inglaterra. Não há
nada mais perigoso, mais nocivo, mais humilhante, mais
insuportável, do que estarem perpétua e
exclusivamente dependentes o bom direito, as justas
pretensões, os fecundos instintos, as naturais
simpatias das nações grandes e pequenas, dos ódios
velhos, das inextinguíveis suspeitas, das incuráveis
rivalidades de duas nações vizinhas que nunca se
deram bem, que não sabem estar em paz, e que
estremecem de se fazer guerra.
E se a Europa um dia
consultar bem os seus interesses (e não duvido que o
faça), Se a Europa, digo, consultar bem os seus
interesses, espero que constitua uma liga, mas uma
liga franca, sincera, desinteressada e liberal, e não
fantástica, refolhada, egoísta e opressiva; uma liga
pela qual se constitua ela em juiz de paz com algumas
atribuições e recursos especiais, tendentes a
opor-se eficazmente às duas nações adversas, que
por causa de suas rixas queiram vexar os países que não
têm nada com elas: uma liga que tenha a força
precisa para fazer homologar as suas decisões sobre
as pendências nunca findas daqueles dois povos
autocratas, e que os obrigue finalmente a atenderem
mais à civilização do mundo do que às suas
querelas particulares.
E não
há obra mais digna destes tempos, nem mais urgente.
É
impossível a continuação do estado actual. A França
e a Inglaterra atraem-se e repelem-se, ameigam-se e
agastam-se, cumprimentam-se e injuriam-se, concordam e
discordam. Uma quer que o istmo de Suez seja aberto
por um canal: outra reprova que ali se faça comunicação
nova. Uma entrega à outra as relíquias do grande
capitão que venceu, e mesmo nesta cortesia recorda a
supremacia das suas armas; a outra recebe com grandes
demonstrações de afecto à rainha da sua aliada, e,
apenas ela volta costas, manda ameaçá-la por uma
esquadra.
Não
é com estas contradições, com estes biocos, com
estas momices, que se podem governar dois grandes
povos; e nem é com estes exemplos que se pode manter
na Europa - supremacia moral, que, não nos enganemos,
é o único poder
verdadeiro. Este estado de coisas, repito, não pode
continuar, porque é ridículo, miserável.
É necessário que se
criem outras entidades na Europa assás substanciosas
e fortes, e que elas se entendam todas para que nenhum
povo torne a ser vítima de tão pueris etiquetas, e
acabem por uma vês os continuados sobressaltos em que
anda a família europeia.
A França perdeu as
suas colónias, porque é uma nação continental:
porque as guerras no continente bastavam para ocupar o
seu génio belicoso; porque as suas dissensões
intestinas causaram grandes intermitências no seu
poder, e porque a vida marítima é para ela mais um
estudo do que uma vocação.
A Inglaterra nasceu marítima,
porque nasceu insular; e uma nação marítima é
naturalmente colonial.
A França não se quer
resignar àquela perda. Como há de ressarci-la? Onde
há de procurar colónias equivalentes às que perdeu?
Onde as achar sem granjeio, sem defesa,
desaproveitadas, abandonadas, mostrando pelo seu
estado que o governo que as administra, é um governo
inerte, dorminhoco. (Riso.) Não preciso dizer
quais são estas colónias.
O governo de um só
homem é o governo mais perigoso de todos os governos;
é verdade antiga, mas não é mau repeti-la. A
liberdade de imprensa e da tribuna não são feitas
para desafogar paixões e contentar ambiciosos: são
instituições indispensáveis para opor vontade a
vontade, parecer a parecer, opinião a opinião, e
tirar destas oposições as máximas e expedientes de
razão, de justiça e de moralidade, com que só se
governam os povos.
Sr. presidente, os
governos de um só homem, neste século de excessivo
mercantilismo, estão sujeitos à constante obsessão
dos cobiçosos, e podem facilmente ser iludidos pelas
suas traças, ou obtemperar às suas corruptoras influências.
Estão muito raros os
negócios fabulosamente lucrativos, com
que rapidamente se levantavam enormes fortunas,
e não voltam estes ensejos tão apetecidos como
improváveis. Originavam-se aqueles exagerados
proventos na segregação em que estavam as diversas
regiões do globo, e mesmo os povos que estanciavam
nessas regiões: originavam-se em leis de favor e
protecção, que enriqueciam uns para empobrecer
outros; provinham, enfim, dos monopólios
intelectuais, naturais e legais, dos quais uns
acabaram, outros estão em decadência.
Os caminhos-de-ferro
apresentaram-se à imaginação dos empreendedores
como um Eldorado, um manancial de interesses
excepcionais e grandiosos, e hoje os lucros desta:
empresas baixaram à taxa comum. A concorrência leva
o seu influxo, aplica a sua lei a toda a espécie de
especulação, e aproxima a uma unidade comum os prémios
do trabalho, da diligência e da sagacidade.
Resta só, como excepção
a esta regra moralizadora, o comercio da escravatura,
enlevo das cobiças desenfreadas, sonho de ávidos
traficantes.
O imperador dos
franceses cedeu aos cobiçosos, que o devem cercar, e
consentiu na escravatura, e não podia deixar de ceder
e de consentir, porque o seu governo é por natureza
fraco. São assim todos os governos de um só homem
por menos que o pareçam, e por mais que eles finjam não
o parecer. O governo de muitos é, pelo contrário,
mais vigoroso, porque com razão presume ser aceito
por maior número de pessoas, e nunca há força nas
resoluções sem haver força na consciência.
Suponhamos que vinham
requerer a algum dos nossos ministros permissão para
fazer escravatura; suponhamos que lhe diziam: «Dai-nos
protecção, deixai-nos fazer uma carregação de
escravos.» Talvez o ministro respondesse que nada
havia mais racional, e mesmo mais humano, como querem
os economistas franceses a que já aludi, do que ir
tomar conta daqueles selvagens para os civilizar. Mas,
sendo a imprensa livre, estando nós aqui reunidos, o
ministro havia de concluir assim: «Não o posso
consentir, porque os meus adversários podem pôr este
negócio aos olhos do público, podem difamar-me, e eu
perderei a estima dos meus parciais e serei mal
aventurado na urna.»
Estas é que são as guardas da moralidade política;
e, se elas vigiassem pelo governo do imperador, nem
apareceria perante o nosso ministro em Paris; a
pretensão do Sr. Garriga, que por sinal não me
parece sei um nome muito francês, recomendada por um
modo que basta a esclarecer este debate.
«Lisonjeamo-nos, Sr.
embaixador, (diz aquele indivíduo) de podermos
apresentar a V. Ex.a todas as garantias sobre o nosso
carácter, e outras que nós perfeitamente
compreendemos que V. Ex.a tem o direito de exigir,
entabulando connosco um negócio deste género. Sobre
este particular, o ministro da marinha podia dizer a
V. Ex.a; quem nós somos mas, além disso, podemos
fazer-nos recomendar a V. Ex.a por amigos que ocupam
os primeiros empregos no governo do imperador.»
Não é patente que o
governo do imperador está rodeado de cobiças, que
para serem perigosas não precisam ser desonestas:
cobiças, umas excitadas pelo espírito mercantil do
nosso tempo, outras pelo louvável desejo de reganhar
fortunas perdidas, outras pela necessidade de manter
indústrias periclitantes?
O próprio imperador,
na sua carta, deixa perceber que cedeu a estas influências,
ou se deixou iludir por elas, porque confessa que não
conhecia a fundo a natureza das negociações em que
se empregava o Charles et Georges, mas que,
tendo sido ofendida a bandeira nacional, era forçoso
puxar a espada em honra dela.
Era mais justo, mais
sisudo, que o imperador, por meio do seu governo, se
tivesse inteirado bem do que são estes engajamentos
de colonos livres nas possessões africanas, para não
autorizar, debaixo desta cor, o tráfico da
escravatura: e não ordenar actos coercitivos contra nós
por motivos que ele, pela sua própria confissão, não
podia saber se eram justos. (Apoiados.)
Mas o procedimento do
governo francês tem ainda outras razões, e é
conveniente pô-las patentes. O governo imperial
precisa sustentar uma certa aparência belicosa, e ter
em suspensão e actividade o espírito da França. Por
esta necessidade política o actual governo francês
acende naquele povo paixões menos dignas de serem
lisonjeadas por um governo sério: fere-lhe
astuciosamente as suas mais pechosas
susceptibilidades, e mude as suas fantasias de influência
e poder.
É assim que a França
aparece em Roma, a solicitar da autoridade papal que não
sacrifique ao rigor disciplinar de um grémio
religioso as legítimas prerrogativas do poder
paterno, primitiva e indestrutível condição de toda
a sociedade, e a mais fecunda origem das ideias
morais; e esse poder papal, apegado às suas tradições,
afincado às suas normas e seguro na conformidade das
consciências que formam a igreja a que preside, sem
lhe importar o prestígio da França, as soberbias do
império e a presença mesmo das armas francesas,
desatende essas solicitações: e a veleidade de tolerância
que mostrara o governo francês na questão Mortára,
desvanece-se com um non possumus proferido do sólio
pontifício.
A França, cujas
recordações a obrigavam, se não a uma intervenção
eficaz, a uma solicitude constante sobre os destinos
da Itália, vê sair o seu embaixador do reino de Nápoles,
e consente que o rei Fernando, obedecido do seu povo,
à força de opressões, é verdade, mas opressões
que neste caso até certo ponto são resgatadas pela
firmeza com que defende a dignidade do seu governo,
desconsidere as suas reclamações, despreze
porventura as suas ameaças.
No ministério dos negócios
estrangeiros, em Paris, espera-se todos os dias um
enviado napolitano a pedir desculpas à França pelo
descomedimento com que o governo de Nápoles se houve
para com ela, e a rogar-lhe a restituição da sua graça:
e passam-se dias e mais dias, e não chega o tal
enviado.
A França deseja
regular pelos seus conselhos e ajustar aos seus
modelos a política espanhola, e, tendo por dogma os
pensamentos ambiciosos de Luís XIV, sofre, para se não
afastar deles, que para aquém dos Pirenéus se
estejam robustecendo as instituições
constitucionais, e demonstrando as excelências do
sistema representativo por um destes felizes concertos
entre os partidos que são sempre fecundíssimos em
benefícios públicos, e que formam boas páginas na
história constitucional dos povos.
A França observa
resignada essa novíssima recrudescência liberal na
Alemanha, e vê com desagrado tentar-se a destruição
completa de todas as ideias feudais na Prússia,
acontecimento precursor da transformação das
sociedades num sentido de igualdade e de justiça;
felicíssimo movimento de opinião, que daqui devemos
saudar, e no qual com muita satisfação vejo figurar
como representante de doutrinas e agente do poder um
príncipe ultimamente ligado com a casa de Bragança.
E os príncipes mais merecem este nome, quando
governam bem como ministros, do que quando remam mal
como reis. (Vozes: - Muito bem.)
E que há de fazer a
França na situação política que lhe tem criado na
Europa o seu governo? Que há de ela fazer, anelando
por dar largas ao seu génio e obedecer ao seu
destino, e achando por toda a parte resistências e
dificuldades? Que há de ela fazer, tendo perdido a
aliança das ideias, e tendo tomado, em lugar dela,
amizades de circunstância e ligações transitórias?
A França é poderosa. poderosíssima: tem numerosos
exércitos, fortíssimas esquadras, mas com tanta força,
com tanta robustez, não se pode mexer, porque a França
hoje está consubstanciada com o império, e o império
com as suas consequências europeias é uma
impossibilidade, um sonho. (Vozes: - Muito bem.)
Ninguém crê nele, ninguém o teme. Os factos estão
a desmentir as pretensões que ele se arroga, e, se
mais pretensões tivera, não faltariam desmentidos
mais estrepitosos.
A águia imperial,
enfadada da sua forçada inacção, saudosa de
aventuras, ávida de glória, voou do seu ninho de
pedra, desses penhascos artificiais de Cherburgo até
às margens do Tejo, só guarnecidas da sua natural
beleza e de venerandas recordações e veio aqui
(grande e nobre façanha) repor a bandeira francesa
num navio, donde nós a havíamos arrancado para que não
continuasse a manchar-se, cobrindo o tráfico da
escravatura!
Esta visita à nossa
terra foi mais feliz do que outras, porque já vimos
essa mesma águia levantar-se das eminências que
bordam este mesmo Tejo, e arrastar-se, em voos
atordoados e incertos, de cerro em cerro, através das
Espanhas, até se recolher na guarida donde saíra,
levando apenas nas garras já mal seguras o desengano
de imaginados domínios e poderios! (Vozes: - Muito
bem.)
A França nunca pode
ser grande senão como filósofa, como pensadora, como
humanitária, como liberal, como protectora de altas
ideias e promotora de grandes intuitos. As suas armas
são muitas e valorosas, mas desacompanhadas destes
auxiliares, estão sujeitas às vicissitudes da guerra
e esta verdade já foi ensinada à França em amargas
lições, que ela teria evitado, se não fora o seu
engodo por glórias falsas.
O maior defeito dessa
brava e estimável nação é juntar a mais extremada
vaidade, a mais injustificável modéstia. A França
crê que pode tudo, mas não crê poder governar-se,
como se a uma nação daquelas não lhe fora facílimo
compor governo de si própria para si própria, pelas
suas luzes, pela sua experiência, pelos instintos do
seu povo, pela dedicação e virtude de seus naturais,
que são muitos com estas qualidades, sem recorrer nos
seus momentos de angústia a recordações obsoletas,
a nomes desprestigiados, a brasões obliterados, a símbolos
que já se não podem traduzir, e a cores que ficaram
para sempre desbotadas!
E governando-se a França
como senhora sua, ser-lhe-ia igualmente fácil
governar os outros povos pelo atractivo do seu
exemplo, pela generosidade da sua iniciativa e pela
altura das suas concepções. E, debaixo deste ponto
de vista, a França é mais que uma nação, é chefe
de uma seita que tem prosélitos por toda a parte, é
mestra de uma escola que tem adeptos em todo o globo. A sua responsabilidade é proporcional à sua importância, e
os seus deveres graduam-se pela sua predestinação.
A França, se não foi
a primeira iniciadora da liberdade na Europa, pode-se
dizer que foi quem primeiro a ensinou em escola pública
na mesma Europa, porque a pôs em linguagem vulgar,
porque a sujeitou à apreciação de todos os povos,
porque a adaptou
a costumes com que se assemelham os costumes da
maior parte das nações europeias. (Apoiados.)
E por isso a Europa
deve muito à França, mas também tem sofrido muito
por cansa dela; porque
a França tem os espíritos de todos os povos em perpétua
inquietação. aqui levantando esperanças, acolá
fazendo promessas, ora defendendo os melhores princípios,
logo abandonando-os abruptamente, sem nunca dar quietação,
nem segurança, nem confiança às muitas almas que
penam por ela e que dela esperam.
E a França
actualmente, além de todas estas pechas, tem um
governo tradicional... Permita-me a câmara que
continue ainda por um pouco a encarar a questão de tão
longe e de tão alto. Não sei se se repara que eu me
alongue tanto em reflexões desta espécie, mas a
verdade é que, no meio da grandeza do debate, não me
posso lembrar do governo do país.
Há homens que vistos
à luz da sua vaidade são colossos, e vistos à luz
das suas ideias, nem o olho mais penetrante os pode
enxergar. E eu ocupando-me agora da França, ocupo-me
das nossas colónias e da sorte que as espera.
Sr. presidente, dizia
eu que a França tem presentemente um
governo tradicional, e não há nada pior que
um governo tradicional, arqueológico, dogmático,
direi mesmo histórico, sem ofensa nem ironia, porque
eu bem sei o que custa a ser histórico... Tenho a
prova em mim, que nesta câmara sofro o dissabor de
contar por adversários os meus correligionários políticos,
os meus amigos particulares.
Um governo que por
honra de família, por influxo de datas, em virtude de
recomendações testamentárias, haja forçosamente de
ter certas ideias, certos princípios, certas apreensões.
certas tendências, conservar os mesmos amigos,
repelir os mesmos inimigos, e tudo isto sejam quais
forem as épocas, as conjunturas, as necessidades públicas,
não é um governo: e um absurdo, um devaneio, uma espécie
de pirronismo político.
Um governo destes não
tem pensamento seu nem acção sua é um verdadeiro
autómato; os seus actos são determinados por princípios
alheios à sua vontade, marcados, numerados e
classificados. Um governo destes não se abalança a
andar, sem estar certo que vai pela estrada por onde
foram os seus augustos avós. Pára onde eles pararam,
e treme de ir mais longe do que eles foram.
Ora um governo na época
actual deve ser sobretudo maneável, fácil e pronto
em movimentos e capaz de os executar em todos os
sentidos e direcções.
É melhor adir uma
herança sem bens e com legados onerosos. do que
receber uma testamentária de heroicidade. Ter de ser
herói por força é uma triste obrigação e um
insuportável apuro, e não há maior calamidade para
um povo do que ser governado por heróis desta procedência
e quilate. Eu detesto os heróis todos!
Os heróis são excepções
monstruosas da nossa natureza. Podemos vangloriar-nos
de vermos os seres da nossa espécie exceder as condições
ordinárias da nossa existência mas essa vaidosa
satisfação custa sempre cara. Os heróis são uns
filhos pródigos da natureza e da sociedade, que dispõem,
em proveito das suas paixões, do oiro, do sangue e da
honra do mundo: que sacrificam aos seus caprichos
quanto há nele de mais santo, de mais nobre e de mais
simpático. (Apoiados.) E a Providência, que
castiga sempre, ainda que por diversos modos, os que
se esquecem da humildade do berço comum, ou lhes
esconde a lousa da sepultura para que os deslembrem,
ou lha deixa apontada a indignação pública para que
os aborreçam! (Vozes: - Muito bem.)
As ondas, tocadas da
tempestade, batem furiosamente no penhasco que as
assoberba. Nesta lide, atropelam-se, amontoam-se,
sobem umas sobre as outras, repetem assim os ataques,
redobram os arremessos, até que galgam à altura onde
a resistência as levou, e de lá, fatigadas e
desfeitas em espuma, cabem no mar de onde saíram, no
mar de onde eram, no mar que lhes dera a força, no
mar em que se tornam! (Vozes: - Muito bem.) Os
heróis são estas cataratas passageiras, estes cachões
espumosos. O mar é a humanidade; como ela largo,
vasto, imenso, como ela querendo sempre saltar fora
das suas barreiras, fugir às leis que o domesticam, e
voltando sempre, apesar da sua inquietação, aos
princípios de harmonia natural a que perpetuamente
está sujeito, e para conservar os quais foi criado.
E, serenada a tempestade, que resta dos penhascos em
que as ondas já não batem, que o mar apenas roça,
que já não atraem as nossas vistas pela luta que
sobre eles se travara? Pedras de irregular conformação,
sem belezas que satisfaçam a nossa curiosidade, nem
excitem o nosso pasmo...
Sr. presidente, esse
mesmo homem que foi reputado o salvador da França, o
domador da anarquia, esse grande capitão que venceu
tantos povos, mas que não pode vencer as ideias, esse
guerreiro estadista, a quem atribuem a glória de ter
segurado a regeneração europeia de 1793, esta mesma
entidade histórica - parece-me que se poderia ter
dispensado e suprimido, e que a sorte da Europa seria
a mesma que hoje é, ou ainda melhor, sem as suas
batalhas, as suas vitórias e as suas leis. O gemo dos
acontecimentos e da civilização é mais poderoso que
o gemo dos homens! (Apoiados.)
Eu tenho asco à
guilhotina e não tenho consideração pela espada,
quando ela serve a violentar os povos; porque a
guilhotina é sempre a ignominia das revoluções, e a
espada muitas vezes o opróbrio dos governos! Mas, se
nós tirássemos da história o grande vulto do
verdadeiro Napoleão, pelos milhares de vidas que se
perderam nos campos de batalha, teríamos a contar
mais alguns milhares de cabeças decepadas nos
cadafalsos políticos, e o curso dos acontecimentos
teria sido o mesmo, afora
a diferença moral destes martírios, porque os
destinos do mundo saltam
por cima das baionetas e dos potros, e seguem a
sua vereda sem haver nada que os detenha nem os
desvie! (Apoiados.) Por estas razões, para
mim, quanto menos heróis - melhor. E se digo isto dos
heróis que verdadeiramente o são, que será dos heróis
que apenas pretendem arremedá-los?
Disse eu há pouco, e
com toda a razão, que se houvesse em França tribuna
e imprensa, não se comprometeria o governo daquele país
num negócio tão suspeito, não se arrojaria a lances
tão violentos, e não se veria obrigado a disfarçar
o seu constrangimento e desgosto, por uma rodomontada
que lhe dá mais vergonha do que glória, e nós também
não passaríamos por um vilipendio, que não
merecemos e que era verdadeiramente escusado.
Num jantar dado em
Paris em prol da liberdade dos negros, Mr. de
Lamartine pronunciou um discurso inspirado pelos princípios
mais humanitários e pelas ideias mais elevadas, e
julgando necessário doutrinar o patriotismo francês
que relutava em ceder ao direito de visita, disse,
apoiando-se na autoridade de Mirabeau, pouco mais ou
menos estas palavras: «Consistirá a dignidade da
bandeira francesa em tornar invioláveis os navios
empregados no tráfico da escravatura, verdadeiros túmulos
flutuantes, ou em defender o santo princípio da
liberdade e humanidade conquistada em nome de Deus e
em proveito de todos os homens?»
Ora pois, este
discurso, a cujas santíssimas ideias o carácter e
palavra do orador deram o máximo relevo, e outros
discursos igualmente calorosos pronunciados por esta
ocasião, e os comentários de toda a imprensa por
meio da qual distintas inteligências esclareciam a
França com as suas luzes e as suas indicações; este
conjunto de forças ilustrativas não pode agora
actuar sobre os conselhos do imperador dos franceses,
e as paixões, livres deste indispensável correctivo,
fizeram adoptar sem esforço os seus primeiros e
inconsiderados arbítrios.
Nos antigos conselhos
da França, porque havia tribuna e imprensa, havia
mais seriedade, e a seriedade é indispensável em
todos os governos. Pode um governo qualquer ser forte,
arrojado, destemido e arrogante, ter todas estas
qualidades e quantas lhe queiram atribuir se não for
sério não é governo, e a seriedade é mais para ser
sentida do que definida.
E como não havemos de
observar agora em França estas larguezas de consciência
a respeito do tráfico da escravatura. este
desassombro da parte do governo em protegê-lo, se
aquele grande homem, Mr. de Lamartine, que
tanto pugnava neste mesmo assunto pelo decoro e
grandeza moral da sua nação, e que bradava à França
que se arredasse das prostituições a que agora a estão
levando, bebe sorvo a sorvo, no cálix das suas
amarguras políticas, as fezes da indiferença
nacional, que a estima geral do mundo mal lhe pode adoçar!
E é Mr. de
Lamartine, esse poeta que carpiu todas as misérias da
humanidade, que exaltou todas as suas glórias, que
excitou todos os seus melhores instintos, que levantou
a coragem dos povos, que acalmou as suas demasias, que
suspendeu com a sua palavra todas as paixões
revolucionárias da França; esse homem cuja composição
moral e intelectual e no meu pressentimento, como o
simulacro da futura política e dos futuros governos
na Europa esse homem que, depois de tantos serviços e
de tantas lides, só pede que o deixem ter sepultura
honrada na terra em que teve o berço! Onde estamos nós?
Onde está a França que nós conhecíamos? Choremos
todos por ela, - porque o nosso pranto é pela
civilização! (Vozes: - Muito bem.)
A França não sabe
honrar os seus melhores cidadãos e manda, e presta os
seus canhões para o serviço da escravatura!
Comparemos a França no Zaire e em Moçambique, com a
França a quem Mr. de Lamartine pede em vão
que lhe resgatem da mão dos seus credores os bens
paternos, onde está presa a sua alma de poeta e
filho. (Apoiados.) Pagar as dívidas de Mr.
de Lamartine é honrar a firma das suas virtudes, é
de todas as homenagens que são devidas ao seu carácter,
talento e serviços, render-lhe apenas a mais
grosseira. Oh! não permita Deus que seja castigado o
povo que ouve sem emoção as queixas de tão nobre
infortúnio e se mostra tão tardio e difícil em lhe
dar alívio e consolo! (Apoiados.)
Creio que deu a hora,
eu estou cansado e não posso acabar hoje. (Vozes:
- Muito bem, muito bem. - O orador foi cumprimentado
por muitos Srs. deputados de todos os lados da câmara.)
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