José Estêvão

 
 
 

Discursos de José Estêvão

 

11 - 1º Discurso sobre a questão das irmãs de caridade - 9/7/1861

 

 

SESSÃO DE 9 DE JULHO DE 1861

 

Sr. presidente, depois que V. Ex.a por uma muito discreta e, a meu ver, louvável interpretação das regras regimentais desta casa, consentiu que um orador inscrito sobre a ordem estendesse as suas considerações a todos os assuntos que estavam submetidos à deliberação da câmara, eu não posso deixar de citar este precedente, para, autorizado nele, usar da mesma latitude nas observações que tenho a fazer a câmara. Contudo, para não enfraquecer a autoridade do regimento, nem dar largas demasiadas às benévolas e discretas decisões de V. Ex.a, resolvi meter-me nas regras estritíssimas do regimento, e, antes de proceder a quaisquer observações que tenha a fazer à câmara, enviar para a mesa uma moção, como é prática e regra quando se pede a palavra sobre a ordem. E receando mesmo... não digo receando, mas prevendo, que V. Ex.a não estivesse disposto a deixar-me usar da mesma largueza que tinha concedido ao ilustre relator da comissão, que não tem um privilégio especial, tinha-me já munido de uma emenda a respeito de todos os parágrafos da resposta, para ficar habilitado a falar sobre todos os assuntos. Desisto, porém, de apresentar estas emendas, não invocando o precedente que V. Ex.a deixou estabelecer nesta casa e neste caso, não o invocando para me aproveitar dele em algumas poucas considerações que vou fazer à câmara.

Portanto mando para a mesa, sobre a questão das irmãs da caridade, que pode ser e é a mais importante, uma emenda ou substituição, ou o que quer que seja.

A resposta ao discurso da coroa termina por um parágrafo que elogia, até certo ponto, o governo pelas suas intenções e esforços liberais, e promete-lhe o apoio da câmara. Para que ele depois seja levado a capo, eu acrescento a este parágrafo mais um outro, no qual determino o modo por que me parece pode ser prestado o auxilio da câmara neste assunto (leu).

         O SR. PEREIRA DIAS: - É um projecto de lei.

         O ORADOR: - Não é um projecto de lei, é um parágrafo pelo qual nos comprometemos a apoiar o governo para resolver esta questão por uma vez,  digo, não me parece que tenha as honras de um projecto de lei; é apenas a indicação de princípios, para os quais conto e sei que tenho o voto do ilustre deputado.

Prescindo de me desculpar com a câmara por tomar parte num debate que tenho condenado, e que ainda hoje sustento que se podia preterir, como aperfeiçoamento do regime parlamentar (apoiados) e boa ordem das discussões  porque todas estas questões relativas as diferentes províncias da administração pública, podem ser tratadas quando à câmara se pedem os meios, em cada um dos capítulos do orçamento do estado, para estabelecer e regular essa administração, nada havendo mais curial e consentâneo com o trabalho intelectual, nem mais próprio do voto da câmara, do que reservarmo-nos para essa ocasião.

Esta questão das irmãs da caridade tinha o seu lugar no orçamento do ministério do reino. Tinha aí o seu lugar próprio quando se tratasse da beneficência, porque suponho que a questão das irmãs da caridade não é senão uma questão de beneficência. E nem se pode inferir das ejaculações um pouco mais tímidas e fracas sobre a necessidade e conveniência das congregações religiosas. que não houvesse aqui nenhuma opinião singela a favor desta instituição, que eu muito respeito pelo lado da caridade.

Pelo que me toca, eu por um lado tremia de ser acusado de falta de lealdade, colocando-me, enquanto a esta questão, numa situação um pouco favorável ao governo, e assim ofender a susceptibilidade de alguns nobres deputados, a quem não sei se chame meus amigos políticos, se meus companheiros parlamentares; por outro lado receava não levar as minhas ideias até onde quer que elas chegassem, por esta timidez de incorrer na desaprovação das parcialidades políticas, não tomando francamente a defesa do governo no que entendesse que ele merecia meu auxílio. Mas o governo não precisa da minha defesa, porque tem nesta casa mais apoio do que esperava. Por consequência estava só, isolado, único e recolhido à minha consciência, para defender as minhas opiniões, não tanto pela satisfação  moral de as afirmar em público, e muito menos por essa especulação de popularidade de que todo o político se deve desprender, como para protestar a minha lealdade não tendo a seguir senão a voz da minha consciência. Mas só e só, e creio que bem só, - porque sou daqueles que não querem irmãs da caridade em parte alguma, em época alguma, de nenhuma organização, com nenhum fim, com nenhuma mistura de autoridades civis ou eclesiásticas (apoiados); sou daqueles que as não querem nem francesas, nem portuguesas (apoiados); nem esse ridículo instituto que ao governo parece uma criação canónica e que é um  absurdo civil. (Apoiados).

Estava só antes que o nobre deputado por Benfica…

UMA VOZ: - Por Belém.

O ORADOR: - …ou por Belém; mas disse Benfica, porque acho um sítio mais aprazível, e talvez um nome mais lisonjeiro para o nobre deputado visto ter assentado ali a sua residência.

Estava só até que ouvi o ilustre deputado pôr a questão nos mesmos termos, manifestar as mesmas inspirações. pouco mais ou menos, mas com a mesma conclusão, sem eu ter nada que tirar do seu discurso senão as apreciações inexactas que ele fez a respeito de algumas parcialidades políticas, com um erro de facto e com inexactidão de datas. O partido em que militei (não porque tivesse as mesmas bandeiras nem a mesma procedência política, mas em que estive destacado sempre em serviço do progresso desta terra) esse partido a que o ilustre deputado se referiu já, só debaixo da sua iniciativa, nos tempos em que governava, tinha votado nesta câmara uma lei de morgados, levando-a, com a sanção e aprovação do governo, a outra casa do parlamento, onde, embrulhada numa grande divisão de opiniões, numa grande diversidade de intuitos e de expedientes, morreu numa comissão e desfez-se nuns poucos de projectos de que não se pode tirar coisa alguma. A lei dos morgados, que passou agora, foi uma segunda tentativa. A primeira tinha uma data a que o ilustre deputado tem um certo aborrecimento, mas sobre o que devia pensar, para se não fazer sectário de homens, e poder medir da altura da sua imparcialidade e do seu patriotismo todas as parcialidades políticas, segundo a sua consciência, e fazer de tudo isto esse partido que eu quero que se faça e constitua e que se pode em constituir sem passar ninguém por cima dos seus chefes, mas ao lado deles. Por cima não, porque entendo que não se pode prescindir das suas luzes e da sua cooperação, ainda que haja neles que condenar.  (Apoiados.) Eu tenho passado ao lado de todos os homens, e estou pronto a passar, atendendo aos serviços que têm prestado sem lhes negar sua capacidade; e se o ilustre deputado tem o mesmo modo de pensar, e tem de empenhar as suas faculdades neste nobre intuito, há de dispor-se a passar com a mesma indiferença pelas pessoas com quem tem vivido ultimamente, e com quem tem andado nestas diversas empresas políticas, e ligar-se, livre sempre em sua consciência, aos homens que as circunstância tiverem indicado para assumir o governo do país, uma vez que eles tenham a reconhecida capacidade para desempenhar essas funções. Esta é a primeira congregação e o primeiro partido a fazer nesta terra. O primeiro partido indispensável é dos homens mas, note a câmara, dos homens desprevenidos e soltos de todas as pequenezas.

O Sr. ministro da fazenda disse aqui: «Vós quereis fazer das irmãs da caridade uma questão política.» Esta estranheza dos Srs. ministros revela uma grande ignorância de direito. Que me importa fazer das irmãs da caridade uma questão política? Não as têm feito os Srs. ministros? Não estamos nós aqui para fazer questões políticas? Não é esse nosso ofício e a nossa obrigação? Não tem o Sr. ministro da fazenda feito questão política de assuntos de menor ou igual gravidade? Por que motivo vem esta estranheza? Não é só estranheza, é uma grande inexactidão visto que não quero fazer desta questão uma questão política. (Apoiados) E prometo que dou o meu apoio a todas as medidas que eu julgue consentâneas para livrar o país do desnecessário estabelecimento das congregações religiosas.  Para isto, dou-lhe todo o meu apoio, e sinto que não tenha empregado todos os meios que podia empregar, usado de todos os expedientes de que devia usar, com mais habilidade, com mais energia e com mais decisão. (Apoiados.) Uma questão política! Sim, uma questão política, não digo para este governo, para este parlamento, mas para todos os governos e para todos os parlamentos que existam e possam existir; porque esta questão que promete distrair perpetuamente os homens públicos de tratar dos assuntos mais graves e mais importantes da nossa governação interna; impossibilitar o governo do estado a todas as parcialidades políticas e debilitar os princípios parlamentares, há de ser forçosamente decidida. E se o governo por egoísmo não a decidir, deixando na sua retaguarda opiniões tão encontradas como as que tem manifestado, aqueles que se aventurarem ao poder não poderão também vencer esta questão. Em todo o caso é preciso que alguém a decida: inchoada nas mãos deste, é do seu dever acabá-la.

Questão política! Quem a fez questão política foi a comissão de resposta ao discurso da coroa. Pois que dizia a resposta, e que indicava neste assunto quando dele falava?

O discurso da coroa contrastava absolutamente com os factos de que todos tinham conhecimento; ninguém podia dizer que era um discurso da coroa feito em Portugal. Só nos dizia que as eleições tinham sido feitas com grande tranquilidade. Num povo bárbaro como nós, é uma coisa estranha e de mencionar que se fizessem eleições sem se perturbar a tranquilidade pública; e o governo não lhe sofria o coração que não se congratulasse com o país por ele governar um povo que fazia eleições sem perturbar a tranquilidade pública!

Que dizia mais o discurso da coroa? Dava-nos uma grande notícia, que parece que chegou há pouco pelo correio: descobriu-se que as províncias ultramarinas tinham produtos que podem ser aproveitados na indústria e no comércio da Europa! Veio pelo último correio esta notícia, e foi uma descoberta agrícola. De maneira que as províncias ultramarinas não foram descobertas quando o foram, nem visitadas por quem foram visitadas, nem se conheciam as suas produções: há oito dias é que foram descobertas, e o Sr. ministro, recebendo a notícia, teve a modéstia de não dizer:  «Olhai que descobrimos as províncias ultramarinas. Porque efectivamente foi ele quem as descobriu, pois que descobrir a superfície territorial não é nada descobrir os seus produtos agrícolas, os seus meios de riqueza, isso é que é tudo, e isso é que cegou lido correio ao Sr. ministro da marinha!

Mas a respeito das irmãs da caridade, a respeito da questão que agitava toda a gente, nada dizia o discurso da coroa. Silêncio profundo!

Que fez a comissão? A comissão julgou que, quaisquer que fossem os receios diplomáticos e as contemplações políticas do governo, não era decente nem decoroso, num governo de publicidade, calar, um documento desta ordem, que existe aquilo que realmente existe.

O governo do país, que devia ser o órgão das opiniões dominantes, calava absolutamente aquilo em que todos falavam. O discurso da coroa nem uma palavra dizia a respeito das irmãs da caridade: mas a comissão no projecto de resposta adicionou um parágrafo a esse respeito, e foi ela que fez política a questão das irmãs da caridade, tanto mais política que a meteu na resposta ao discurso da coroa. quando o discurso da coroa não tinha falado nela. Não fez só uma questão política, fez uma censura ao governo, porque só a inserção destas palavras é uma verdadeira censura. Não sei se o governo as aceitou ou não. Se as aceitou, a censura é menor; mas se não as aceitou, tem a censura da lembrança, a censura do aviso e da advertência: «Olhai que vos não falastes no assunto; é preciso falar nele, e falamos nós.»

Mas há aqui alguma questão política? As questões políticas, quem as sabe pôr perfeitamente na sua nudez natural, na sua lógica primitiva, é o Sr. ministro da marinha; esse é que as sabe por de uma maneira clara pelo estilo que denuncia a filosofia dessas questões.  «Querem que morramos, que vamos entregar o poder nas mãos dos nossos adversários? Hão de eles vir sentar-se aqui e nós irmos para casa?» Esta é a questão política de S. Ex.a.  E o Sr. ministro diz com uma certa satisfação, com  um certo prazer: «Querem que morramos?» Tem orgulho, tem satisfação, tem um prazer inaudito em dizer que o querem matar; sendo talvez o sentimento de que pode morrer o único que lhe revele a glória de ter vivido politicamente.

«Apostata! Chamam-me apostata! Estou espantado como descobriram que eu tinha tido uma vez convicções diferentes daquelas que tenho agora.» Este vaidoso sentimento de mortalidade é uma coisa singular. Se os efémeros tivessem uma vida moral e intelectual, esse sentimento podia ser para eles natural, porque esses quase que não sabem que vivem senão porque morrem.

«Pois queriam que executássemos as leis e que as executássemos na capital? A lei dos pesos e medidas é magnífica, é excelente, mas foi votada há dez anos.  E havemos nós agora executar uma lei que foi feita há dez anos?» À vista disto, a missão dos ministros reduz-se a executarem as leis que eles propõem: e, por consequência, se não propõem lei alguma, ficam desculpados de não darem execução as leis, porque não executam senão aquelas que eles propõem.

Que se não execute uma lei, conceba-se; mas que o governo consinta que seja mártir da obediência e do respeito a lei e as autoridades uma classe de cidadãos, isso e que é inaudito.

O governo não executou a lei dos pesos e medidas, e a antiguidade dessa lei era um aviso para ele, durante esse lapso de tempo, ir tomando todas as medidas preparatórias, afim de que não aparecessem, no momento de a executar, as resistências que são naturais em casos semelhantes.  O governo não só não tratou disso, mas aconteceu o seguinte: vários lojistas, por exemplo padeiros, julgaram que podiam executar a lei dos pesos e medidas; mas o desgraçado que, em lugar de vender por arrátel, entrou a vender por… como se chama? (Riso.)

UMA VOZ: - Quilograma.

O ORADOR: A minha hesitação mesmo desculpa a resistência, mas torna mais meritório o acto daqueles que, longe de resistir, procuraram adoptar no seu comércio os novos pesos e medidas, começando num certo e determinado dia a vender segundo a lei. Porém sabe V. Ex.a o que aconteceu? Foram invadidas as lojas, os pesos lançados à rua, e eles espancados. Aconteceu isto àqueles indivíduos que estavam preparados com os competentes pesos para executar a lei e o governo, que teve tanta coragem para não a executar, nenhuma teve para defender aqueles que queriam e começavam a executá-la.

UMA VOZ: - Sabe isso?

O ORADOR: - Consta-me a mim, e consta ainda mais solene e dolorosamente àqueles que apanharam.  (Hilaridade.)  Mas o Sr. ministro passou-nos depois uma certidão nos seguintes termos: «Saibam todos quantos esta minha declaração ouvirem, que nas províncias de Portugal se vai executando a lei dos novos pesos e medidas, e que o governo todos os dias recebe as mais satisfatórias notícias a este respeito; que em toda a parte do reino se pode executar a lei, menos em Lisboa onde eu sou o único representante de autoridade, mas onde ninguém faz caso de mim.» (Riso).

E esta é que é verdadeiramente a questão do poder, a questão ministerial. Mas o Sr. ministro saiu  da questão dos pesos e medidas, saiu das considerações de pesos... miúdos, subiu a mais altas regiões, e em contravenção das opiniões do seu colega da fazenda e contra todos os princípios económicos e financeiros, veio com teorias arbitrárias, com assuntos obscuros estabelecer o princípio de que a prosperidade das nações avalia-se pela importância e conhecimento do preço de seus fundos, e também pela soma de litros de ácido sulfúreo que consomem.  Mas, ainda que esta regra se possa admitir, é certo que também há a curiosidade de saber quem governa essas nações. (Apoiados). Não se tomam só em atenção os factos materiais, também se pergunta: «Quem governa essas nações?» Não se misturam, para avaliar a prosperidade das nações, as pessoas que as governam com os factos materiais que têm lugar; portanto, não se conhece a prosperidade das nações só pelo preço de seus fundos, nem pelo maior ou menor consumo de ácido sulfúreo. (Riso.)

A questão do poder contra nós é esta. A questão do poder é que quatro ministros, em vez de procurarem o melhor modo de gerir os negócios públicos e de acudir às necessidades públicas, em vez de compreenderem a alta missão de que estão encarregados, só tratam de esquadrinhar as teorias dos seus adversários, as frases que pronunciaram, os erros que por ventura tenham praticado. Fazem disto uma colecção minuciosa, e depois declaram: «Nós governamos o país; mas não estamos obrigados a governá-lo melhor que os nossos adversários; nós governamos tão bem como eles governam, governamos do mesmo modo.» Ora assente este princípio, tomado como cartilha para todos os nossos homens políticos chamados ao governo, o país necessariamente há de gritar de desesperação, e procurar salvar-se logo para não ficar inteiramente perdido.

Desde que abandonados os interesses do país, desde que estabelecido tudo quanto há de mais ruinoso e contrário aos interesses públicos, isto se conserva como norma para todos os governos, em vez de se seguir outro caminho e adoptar outros preceitos, esses governos não dão garantia, nem a podem dar, de virtude e de ciência, esses governos não são aquilo que devem ser: são só governos de corrupção política. (Apoiados.)

Mas os Srs. ministros fizeram oposição aos Srs. ministros passados: e eles são tais como os passados. Neste caso, qual é o seu dever? É fazerem oposição a si mesmo! (Riso.)

Este estado obrigará a aparecer um terceiro partido, e quando ele aparecer é para declarar que o governo do estado é uma necessidade, que essa necessidade há de ser preenchida, e preenchida por gente que lance um véu sobre tudo que se tem feito (apoiados), sobre todos os erros dos seus antecessores que lance um véu para esquecer os defeitos anteriores, e declare que apareceu para governar melhor, para remediar, e não para imitar os erros praticados, para gerir as coisas públicas sem lhe importar o que fizeram ou deixaram de fazer os seus contrários. (Apoiados.)

O ilustre relator da comissão expôs ontem, com muito espírito e com muita verdade, a razão profunda e radical da existência do actual governo e afirmou que ele faz um grande serviço ao país. Esse grande serviço é que, enquanto ocupar este governo as cadeiras ministeriais, não as há de ocupar a oposição (Riso.)  Na verdade. é definir a situação do actual governo nos tenhas mais próprios e mais próprios... As situação do governo definiu-a perfeitamente o relator da comissão.

Mas desde que um governo obsta a que se façam novas tentativas, a que se procurem novos homens, a que se renove a vida pública desde esse momento o governo que ocupa as cadeiras do poder é altamente prejudicial aos interesses públicos. Registo a definição desta situação. Não digo isto por ironia registo-a, porque é a jaculação da verdade, e a verdade é uma só e única.

Uma questão política para mim!...  E eu tenho umas poucas! Mas a câmara far-me-á a justiça de crer que não empenharia as minhas faculdades, o meu sossego e tranquilidade, e sobretudo que não venceria um certo descoroçoamento sobre, não digo a sorte final do nosso país, mas melhor aproveitamento das suas coisas, durante a minha vida a câmara há de fazer-me justiça, digo, de crer que não fazia todos estes sacrifícios para assistir ao pomposo espectáculo de ver no Diário de Lisboa os decretos declarando que os ministros actuais tinham servido a contento de sua majestade, e que iam para lá outros que tornavam a ser demitidos passado tempo a contento de sua majestade! Porque uma mudança política sem substância, sem efeito imediato na causa pública, declaro que a não concebo! Nem a louvo nem condeno.

Eu tenho uma questão política.  Mas a questão política para mim está na reforma radical da administração desta terra, em todos os seus pontos, em todas as suas estações esta na reforma do sistema por que nós fazemos as leis; está na reforma do nosso espírito político e costumes parlamentares, desde a câmara até às sessões da última junta de paróquia.

A minha reforma, a minha questão política, é uma economia, não nos grandes soldos do estado, porque os não há, mas uma grande economia no tempo e braços que se consomem em tramites desnecessários, em papeladas inúteis, que mostram a ignorância de governar e que são muitas vezes o abandono dos negócios públicos.

A minha reforma política consiste na revisão de todos os tributos, não só antigos, mas dos ultimamente lançados, para de todos se formar um sistema pelo qual se possa distribuir a contribuição com igualdade. (Apoiados.) As contribuições novas que eu votei, e às quais reitero o meu voto, não formam ainda um sistema completo e perfeito. E o resultado é que a contribuição não tem atingido, já não digo a igualdade possível, mas a igualdade tolerável, porque os pequenos martírios que os homens desvalidos, os homens do povo sofrem, são muitos, são imensos. (Apoiados.) E é necessário procurar dar remédio a esses males.

A minha reforma visa à clareza nos negócios, e a exposição singela dos haveres de cada corpo do estado e de cada cidadão particular. A minha reforma não é de economias com corte, porque não se podem fazer nenhuns, absolutamente nenhuns (é necessário mesmo aumentar os ordenados a maior parte dos funcionários): mas a supressão de serviços desnecessários, com aproveitamento daqueles de que se não pode prescindir, e a anulação talvez, eu não quero dizer de sinecuras, porque as não há...

UMA VOZ: - Há, há.

O ORADOR: - ... mas de altos corpos de administração. que podem talvez muito bem ser suprimidos. (Apoiados.)

A minha reforma é a organização da força pública, nos termos em que um ilustre parlamentar, e até certo ponto meu amigo político, terá talvez de apresentar hoje a câmara. A minha reforma é a organização da força pública, nas suas divisões naturais, de maneira que cada uma preste para o fim a que é destinada, e que nem o exército seja policia, nem a policia seja exército, nem que, a pretexto de armar o país, se faça um grande alarme, como se fez com a ideia da criação dos batalhões, que só servia para nomear alferes e tenentes, dando lugar a que esta organização se prestasse a uma certa concatenação eleitoral, de modo que, com um aparelho assim formado, nós perdêssemos todas as liberdades públicas.

E, neste ponto, direi que a minha opinião é que o país que quer ter a consciência da sua força, preparar-se decorosamente para todas as eventualidades, precisa fazer-se uma Suíça monárquica.

Estas e outras são as minhas reformas. A enciclopédia não é completa, e não serve de nada fazer enciclopédia de política administrativa há resposta ao discurso da coroa; mas perde-se tempo talvez, se depois de alguns dias se sair de um debate longo, não tendo apurado a reputação de ninguém, nem tendo aparecido uma ideia, uma esperança que nos possa consolar nesta parte. E sobretudo o que nós precisamos é nortear a nossa política, e assentar em um certo número de princípios, que devem ser a cartilha que todo o país aceita, que aceita o governo e aceitam todas as situações, deixando a divergência das parcialidades para estas questões que não são substanciais.

Qual é a posição que nós devemos ocupar na Europa? Quais são os meios por que podemos dar mais duração a esta nacionalidade, que todos queremos, (apoiados) que todos desejamos conservar, (apoiados) e por que todos desejamos morrer? (Muitos apoiados.)

Nisto é que não há divergências. (Apoiados.) Não há ninguém que não tenha estes princípios: são princípios comuns.

E isto que se chamava antigamente segredos de gabinete, são hoje segredos dos novos. Hoje o parlamento inglês dirige-se ao seu governo, e pergunta-lhe quais são os princípios pelos quais ele tem de continuar o poderio e a grandeza da sua nação. Em França pergunta-se em toda a parte o que o governo tem tenção de fazer a respeito das altas questões, e diz-se que a França convém isto e aquilo. Depois as parcialidades discutem as questões de administração e outras.

Mas para que havemos de estar questionando se os ministros têm feito muito ou têm feito pouco? Digamos a verdade, porque é um facto: nós parámos. Depois da agitação das nossas grandes lutas políticas, seguiu-se uma grande sonolência, que se tornou em sono pesado; acordámos em 1851, esfregámos os olhos, vimos o tempo que tínhamos dormido, envergonhamo-nos da nossa inércia, e com frenesi e sofreguidão de quem se vê muito atrasado, e de quem tem perdido muito tempo, lançam-nos a empresas de incontestável utilidade. Mas depois cansámos e parámos.

Desde o último governo da regeneração, ou antes desde o primeiro, porque o último já foi um pouco menos activo, o que é que nós fizemos? Nada. Ficamos espantados do nosso arrojo, admirados de estarmos acordados tanto tempo, e com desejo de voltar a cama. E os próprios ministros declaram que não têm senão a executar essa grande e importante obra de dois caminhos-de-ferro. que é o que estamos vendo fazer. E acabou-se tudo. Fizemos dois caminhos-de-ferro, e ficámos aqui.

Senhores, o trabalho político é incessante e continuado, e não podemos deixar de atender ao cúmulo de assuntos que nos assoberba porque há um cúmulo de assuntos esquecidos, e a iniciativa dum governo. em países que têm atendido às suas necessidades capitais, é uma iniciativa muito diversa da dum país que por muito tempo desprezou tudo isso.

Se eu quisesse fazer enciclopédias políticas, teria muitas medidas a lembrar; mas entre elas há uma que está chamando pela acção dos poderes públicos: é a desamortização civil. Imensos territórios estão sem cultura, sem aproveitamento nenhum; uns, esperdiçados em pastos comuns, cujos interesses é preciso regularizar  outros, entregues às câmaras municipais para logradouros, em que ninguém logra outros, ocupados com um certo direito consuetudinário pelas primeiras pessoas que lhes lançaram a enxada, e que não dão pelo uso destes terrenos nenhuma retribuição às corporações a que pertencem. (Apoiados.) Há imensos assuntos que estão chamando os desvelos do governo, e que os pagariam exuberantemente.

E seja-me permitido dizer que, tendo-se criado um ministério de obras públicas (e isto não tem nada com o ilustre ministro que actualmente rege aquela repartição, é pecha antiga),  ministério que compreende a indústria, a agricultura, o comércio e as obras públicas, só têm tido vida as obras públicas, estando imensas, estando as mais importantes questões nacionais, sem ainda serem estudadas nem iniciadas, incluindo  as mais próprias para derramar sobre este país a força da população e a força da riqueza, e facilitarem a polícia das multidões, porque só um país grandemente povoado pode ser bem policiado. E todas estas questões bem ao menos têm sido lembradas, nem metidas nos programas de governação.

Mas a questão das irmãs de caridade, o meu fim é, com a mão na minha consciência e envidando todas as forças do meu carácter, coadjuvar este ou outro qualquer governo para a resolver no sentido das minhas opiniões, sem suspeitar da intenção dos meus nobres adversários, acatando os escrúpulos deles e tributando respeito e consideração a instituições, que já não são desta época, mas que nasceram das necessidades dos tempos em que foram criadas, e são filhas legítimas das ideias religiosas e filantrópicas desses tempos; o meu fim é resolvê-la sem ofender este governo, nem diminuir a força que ele precisa ter para gerir os negócios públicos, nem também favorecer nenhuma ambição de quem quer que o possa ou queira substituir.

A minha intenção é, dentro dos meus meios e com os meus recursos, concorrer para que tiremos da tela pública, por uma vez, esta questão. Se não ela há de ocupar-nos eternamente, reaparecendo-nos, ora debaixo de escrúpulos religiosos, ora debaixo de exigências estrangeiras, umas vezes sob a forma de dissenções nas famílias, outras vezes sob a de incompatibilidades parlamentares, e muitas ainda inutilizando-nos homens úteis para o governo do estado, que por ela se possam julgar inibidos de entrar nas combinações que as diversas situações políticas podem tornar necessárias.

O homem do governo, o indivíduo, o corpo do estado, seja quem for que concorra para que de uma vez saia dos nossos debates esta importantíssima, mas desgraçada questão, faz um grande serviço a esta terra. (Apoiados.) E, eu não creio que ela se possa resolver, nem pelos meios que o governo tem empregado até aqui, nem pelos meios que ele pensa empregar para o futuro. Não se pode resolver senão unindo-se num princípio patriótico e desinteressado os homens que representam o seu país fazendo lei segundo as conveniências dele, e dizendo-lhe: «Execute-a quem quiser executar; e vós, se não a quereis executar, saí do governo, que alguém a executará.»

Uma coisa que eu tenho observado é que se trata nesta casa como questão de legalidade uma questão que me parece de princípios, e que já tem ocupado largo espaço na outra casa do parlamento, empenhando-se todos os oradores em sustentar se era legal ou não legal o procedimento do governo. Eu não recopilo os argumentos  a questão está longa e fastidiosamente tratada. Mas a minha opinião é que o governo procedeu segundo as leis do país, e se ele ou algum dos seus sucessores nos apresentar nesta casa uma proposta que exija o voto do parlamento sobre este ponto, eu já lhe ofereço a minha voz.  Sou pelo governo.  Entendo que em todas as medidas que tomou obrou segundo as leis do país. Se este voto aproveita para alguma coisa, está já dado; porque eu tenho mesmo a opinião de que a permissão com que se introduziram no país as irmãs da caridade não é uma lei, é um decreto. E não apresento isto como opinião, mas apresento-o como um ponto de dúvida aos jurisconsultos que estão nesta casa.

O decreto que admitiu as irmãs da caridade em Portugal foi de 14 de Abril de 1819  época é nefasta, e se tirarmos dela a interpretação benéfica, ou a interpretação dos benefícios por que a concessão se fizera, não podemos duvidar de que essa concessão fosse feita em beneficio da religião. Mas este país um ano depois, em que esteve a cumular-se e a encher-se a taça da paciência pública abria mão dos interesses religiosos que lhe promovia o seu governo, assim como este tinha já aberto mão da sua independência e da sua dignidade; porque em 1819 comandava o general Beresford o exército, e o geral em Paris comandava as irmãs da caridade.

As irmãs da caridade em Portugal foram introduzidas por piedosas senhoras.  S. Vicente de Paula não teve parte em tão caridoso assunto; devia partir do coração das senhoras.

Diz a lei: «Atendendo ao que as suplicantes representam, e às grandes utilidades que em serviço de Deus, meu, e do estado devem resultar do pio estabelecimento que se propõem formar, em que a classe mais indigente e desamparada dos meus vassalos (e por isso a mais digna do meu paternal desvelo e real protecção) encontra asilo e socorros benéficos oferecidos e fomentados pelo mais fervoroso zelo da humanidade e caridade cristã: hei por bem e me praz conceder-lhes o meu real consenso, e as precisas faculdades para que possam fundar em Lisboa a congregação das servas dos pobres, denominadas também irmãs ou filhas da caridade, segundo as regras e direcções dadas por S. Vicente de Paula. E sou outrossim servido dispensá-las das leis de amortização, para que possam adquirir por compras, doações ou legados, e possuir, para seu património, bens que possam produzir um rendimento anual até ao valor de réis 8.000$000. A mesa do desembargo do paço, etc.»

A lei derroga na segunda parte as leis da amortização para que as irmãs da caridade possam possuir bens.

Então estavam confundidos os poderes políticos na mão dos soberanos, confundidos de facto, mas não confundida a doutrina. Eu pergunto aos jurisconsultos se a primeira parte deste decretamento pertencia ao poder legislativo, que estava então nas mãos do soberano? Não o creio; porque, suponhamos que era precisa a bula do papa para fundar uma ordem destas: a primeira coisa a fazer era dar o beneplácito à bula, e estava fundada a ordem. Ora, dar o beneplácito à bula do papa pertence ao poder executivo. Logo esse acto era um acto do poder executivo, especialmente aqui que é um despacho a um requerimento. E demais, então, estavam admitidas as ordens religiosas em Portugal; não havia por consequência senão usar desse direito real, e aplicá-lo a uma ordem. O poder executivo, no exercício das suas atribuições, admitia essa corporação.

Portanto eu suponho que as irmãs da caridade foram agora legalmente expulsas pelo governo, por que não estavam admitidas por uma lei. (Apoiados.) E o decreto de 3 de Setembro de 1858, que deixava entrar duas, três ou quatro, com estas ou aquelas cláusulas, era realmente um decreto, e hão era lei.

Há mais. Nas nossas leis antigas, em assuntos desta ordem e gravidade, quando o soberano usava do poder legislativo aberta e solenemente dizia: Por virtude desta lei, etc.; acompanhando sempre isto de todos os adjectivos que lhe davam maior consideração e maior força. Sirva de exemplo a lei que aboliu os jesuítas, no tempo do marquês de Pombal.

Ora, há tal empenho em Portugal em dizer que o procedimento do governo nesta parte foi ilegal que eu até ouvi apresentar o mais estranho de todos os argumentos tirado da lei de desamortização: «Fez-se este audacioso cometimento, cometeu-se este pecado, este atentado contra a utilidade pública, contra a lei de desamortização.» Lei que ainda não era lei ao tempo em que foi decretada a dissolução do instituto das irmãs da caridade, porque eu não admito que fosse lei senão depois da sua última edição!

Ou esta congregação era religiosa ou não era religiosa. Se não era religiosa, não estava compreendida no decreto de 1834.  E se era religiosa - ouça-se bem! então muito mais, porque em virtude de uma lei que ainda não era lei não podia dissolver-se.

«As corporações religiosas não podem ser dissolvidas senão canonicamente.» Isto era mais do que dar efeito retroactivo a uma lei, era fazer sentir a lei que não existia.

Se se aplicasse o mesmo princípio a todas as corporações religiosas, todas estavam ilegitimamente dissolvidas.

Mas parecia natural que o governo, achando-se a braços com esta questão, logo que se reuniu o corpo legislativo lhe expusesse o estado dela no discurso da coroa, com as cautelas e reservas necessárias, e viesse declarar diante de todas as parcialidades do parlamento: «Esta é uma questão grave, acha-se em tal estado. e eu peço aos poderes públicos o auxílio que devem prestar para a resolver segundo as conveniências do país.» Mas nem uma palavra a este respeito!

Se o governo não fosse dado a estes actos de candura, eu não estranhava.  mas sendo-o, estranho, e muito.

Por exemplo, houve um meeting em Lisboa, e sem que nessa ocasião se discutisse a resposta ao discurso da coroa que fez o Sr. presidente do conselho com o juízo que todos nós lhe reconhecemos? Veio ao centro da representação nacional, e falou desse acto por modo que eu sempre o louvarei e que mereceu a aprovação do parlamento.

Porque não veio então o governo, e não disse, pouco mais ou menos, na resposta ao discurso da coroa:  «Temos feito iodos os esforços possíveis, dentro da esfera do nosso poder, para resolver a questão das irmãs da caridade;  mas tendo encontrado resistências de diversas ordens, algumas das quais vos comunicaremos em sessão secreta (se elas fossem dessa natureza), pedimos ao parlamento o seu auxílio para podermos satisfazer aquele empenho.»

Eu reputo a questão das irmãs da caridade muito mais importante do que a do meeting, pelas suas muitas e variadas relações e por isso pergunto ao governo. especialmente ao Sr. presidente do conselho, porque julgo que sobre a cabeça de S. Ex.a pesa principalmente a responsabilidade deste negócio, pergunto a S. Ex.a se julga necessário o auxílio especial do corpo legislativo para resolver a questão das irmãs da caridade.  Digo que pesa fortemente sobre a cabeça de S. Ex.a a responsabilidade desta questão, porque lho posso provar, e por isso emprazo o nobre ministro a que, na primeira ocasião em que tome a palavra, declare francamente a câmara se se julga com força suficiente para resolver a questão sem dependência do corpo legislativo   para a resolver realmente, porque eu devo declarar aos Srs. ministros que não sei qual é a força do seu decreto.

Vão a Benfica e assistam a uma profissão de irmã da caridade, - porque bem sabem que as irmãs da caridade não estão em Santa Marta, mas em Benfica.

Se o Sr. ministro, ou por contemplações pessoais, ou por qualquer outro motivo, não pode cumprir as leis do estado, não tome então responsabilidades com que não pode, e não se sirva da aureola que cerca o seu nome e pessoa para, com essa influência, ter presa uma classe inteira deste país, fazendo-lhe persuadir que a sua presença no ministério trará a solução desta questão segundo os seus instintos e opiniões. (Muitos apoiados.)

Os decretos estão passados as portarias são imensas, está esgotado todo o arsenal administrativo, - e, em passando amanhã, há uma profissão de irmã da caridade!… E depois desta entrar para a igreja, e pedir a benção aos pais ter-se-á faltado ao  respeito devido a este país, escarnecido do parlamento dos Srs. ministros e de mim mesmo, que estou falando em vão e ocupando-me de futilidades; porque não há nada mais fútil do que esta grande luta de palavras para uma coisa que se sabe que não se faz nem se executa.

Pergunto aos Srs. Ministros se sabem desta profissão, se a autorizam, se estão dispostos a proibi-la;  se esta irmã da caridade é portuguesa ou francesa  quem são os padres que lá oficiam  e se é permitido nesta terra dar profissões religiosas.

Esta é que é a questão.

Eu fui vítima da minha inocência, porque quando via estes decretos, tão decididamente infestos as irmãs da caridade, julgava une alguma coisa se conseguiria com eles, e reputava os meus correligionários políticos eivados duma certa veia oposicionista ao dizerem-me que isto de nada valia.  «Pois é possível, dizia-lhes eu, que estes decretos, que dizem dissolver a corporação das irmãs da caridade, nada façam, e que elas se não vão embora?!..» E como provavelmente o Sr. presidente do conselho se havia rido de mim, eles riam-se também.

Todos conhecem as dificuldades da questão; todos sabem o que é introduzir aqui uma vez as irmãs da caridade.

Se de novo se introduzissem todas as ordens religiosas em Portugal, de cruz alçada, com o seu voto, com os seus prelados, com as suas casas capitulares, em suma, com toda a sua sumptuosidade, todas eram aceites, e depois havia de dizer-se que eram legais e legalíssimas, e que os decretos que contra elas se promulgaram não lhes diziam respeito. E no meio destes ambages de interpretação e não interpretação da lei, provavelmente fazia-se uma moção para que todas pudessem continuar a existir entre nós e para que nós todos fossemos filiar-nos em algumas delas. (Riso.)

Esta insistência na legalidade da questão, é que eu nunca cheguei a perceber. Parecia-me antes uma questão de princípios, de filosofia social e de organização de beneficência, em que se tratava dos direitos do estado contra a igreja dominante.

Pois para que quereis cobrir a vossa cobardia doutrinal com a letra das leis e dos decretos, em face de quem quer que seja, ou dos poderes estrangeiros, ou das altas influências do país? Quereis mostrar-vos coactos das leis! E supondo que não havia leis?...

O que eu pergunto aos Srs. ministros é se julgam as irmãs da caridade uma instituição necessária, aceitável, sem perigos para a governação pública; se, sem ofensa do nosso pundonor nacional, se pode admitir essa instituição nas circunstancias em que está, livre de toda a sujeição aos poderes do estado se querem, se não querem esta instituição; se têm ou não têm a coragem dos grandes ministros do imperador para dizer num relatório lucidíssimo, que se leu perante a Europa sem nos fazer vergonha: «As ordens religiosas não servem para nada, estão caducas, não as queremos.»

As leis!.. Mas estas leis não são só para serem interpretadas por jurisconsultos, são para serem sentidas por todos os homens públicos. (Muitos apoiados.)  Estas leis gemem, estas leis clamam, estas leis bradam, estas leis cheiram a pólvora, estas leis escorrem sangue de uma luta fratricida, - não parlamentar, porque nas lutas parlamentares nunca há sangue escorrido; há-o muitas vezes exaltado pela raiva ou congelado pelo despeito! Estas leis fizemo-las nos, batemo-nos por elas, defendemo-las debaixo da bandeira que arvoramos! Estas leis levaram ao trono a dinastia da senhora D. Maria II, que teve sempre um instinto finíssimo, instinto feminino, dos princípios sobre que repousava a sua dinastia porque nunca capitulou, dentro da esfera do poder nem mesmo da das simpatias, com estas invasões sorrateiras de influências eclesiásticas, que para mim são suspeitas de serem contrárias ao governo representativo.

Estas leis, estes princípios, e outros de somenos importância, recordava o presidente do conselho de ministros a mesma soberana, quando numa representação disse àquela senhora:  «Respeitai os direitos constitucionais, por segurança mesmo do vosso trono» - ameaça que hoje se estranharia muito que se fizesse na boca do Sr. Quadros. E essa representação era de um meeting, de que era presidente o mesmo Sr. presidente do conselho, e de que eu fui um indigno orador. E, no fim de tudo, disse-se que o partido progressista praticara um facto eminentemente e constitucional, digno de ser imitado em todos os países onde existia sistema representativo. Entremos pois neste caminho, porque entramos no caminho constitucional  respeitemos estas leis, porque vivemos por elas; são as nossas leis, são o nosso coração. são a nossa vida, são a nossa história!

Sr. presidente, estamos a 9 de Julho! Faz hoje mesmo vinte e nove anos que, com essas leis no pensamento, entrámos, sete mil perseguidos, sete mil expatriados, numa cidade que ainda mais do que nós as tinha no seu, porque vira nessas congregações religiosas os instigadores e conselheiros de uma tirania nefanda; porque vira sair dessas casas ou corporações religiosas coortes de testemunhas falsas, que tinham ido aos tribunais levantar com os processos judiciais os patíbulos onde deviam cair as cabeças daqueles que elas haviam marcado como infestos ao seu predomínio! (Apoiados.) E quem me diria que em uma assembleia, onde vejo alvejar ainda tantas cabeças que tinham este mesmo pensamento, onde vejo tantos braços que em sua defesa se levantaram, se haviam de esquecer os perigos por que passamos e o sangue que então se derramou!

MUITAS VOZES: - Não esqueceu, não esqueceu!

O ORADOR: - Bem! Estimo bastante ouvir a manifestação da maioria. Mas não basta isso. É preciso que nos convençamos de que não podemos salvar os objectos que veneramos, se não reunirmos todas as nossas forças constitucionais e morais para desfazer e contrariar  as intrigas e embustes, pelos quais se quer repor outra vez no seu trono e predomínio estas instituições que nós combatemos, destruímos e desfizemos! (Apoiados.)

Sr. presidente, isto não é questão de irmãs da caridade! Estão enganados.  É mais alguma coisa: e a questão das ordens religiosas (apoiados) é a sua elevação ao estado primitivo.

O         fanatismo religioso, querendo por meio duma educação a seu modo desviar os nossos filhos dos princípios e doutrinas que professamos, chama-lhes filhos espirituais! Filhos espirituais! Como se eu admitisse que algum filho meu fosse filho do espírito de ninguém! (Risada geral.) A questão é grave e delicada. e é necessário que não haja flexibilidade nenhuma de espírito para a poder tratar convenientemente. (Apoiados.) Com que arrogância diz um padre: «Meu filho, filho espiritual, filho de Deus e de mim, filho do meu espírito!» Filho de Deus e da religião, sim, senhor! Filho de vossa senhoria, de vossa reverendíssima, de vossa eminência ou de você, que ousa ir adiante e entrar no limiar moral da minha porta, não senhor! (Riso.)

Sr. Presidente, eu sou católico e admito que todos os teólogos regulares ou irregulares, leigos ou não leigos, inquiram os quilates da minha religião. a sinceridade das minhas crenças. Mas se fizerem iguais inquirições das suas, hão de reconhecer que há uma razão suprema que supre a escolha impossível neste assunto de religião.  Esta razão suprema que supre a escolha da religião é a tradição da família; porque o homem, quando vem ao mundo, segue sempre a religião de seus pais. Eu sou católico, porque meus pais e minha família eram católicos, e isso bastava para eu preferir esta a todas as religiões, por mais santa, clara e justa que tosse a sua doutrina. Eu aconselharia sempre que se não dispensasse nunca, na escolha de religião, a tradição de família, e que ao dogma religioso se juntasse o dogma dos nossos pais.  Da percepção das verdades supremas podemo-nos desviar ou pela fraqueza ou pelo orgulho; e, no meio destes desvios, a religião de família é uma garantia, é um princípio de fé humana. Se o religioso de bom  senso me perguntasse qual a minha religião, dir-lhe-ia: «Sou católico». - «E qual a razão?» - «Porque meu pai o era».  Respondo assim a todos os teólogos, a todos os esquadrinhadores da minha consciência. (Apoiados.)

Sou inimigo das irmãs da caridade, porque as considero como um ataque ao princípio da família. (Apoiados.) A caridade atribuída a uma certa instituição, com o piedoso fim de educar as crianças e tratar dos enfermos nos diferentes países da terra, é uma malícia ostentosa feita em nome de Deus. Este cosmopolitismo não lhe parece necessário nem útil. Um pai desvelado, no último quartel da vida ou no vigor da idade, que tem todas as suas esperanças em que seus filhos, ou filhas principalmente, sejam o seu futuro, vê que as faces duma se lhe vão descorando, vê que a fronte se lhe inclina para a terra, vê-lhe a tristeza no rosto, e inquire-a, interpretando por algum desregramento do coração essa tristeza: «Que tendes, filha? que mal vos preocupa o espírito?» «Nenhum, meu pai;  falou-me Deus, e a Deus entreguei a minha vontade e espírito, que deviam ser vossos. Sou de Deus, que me fez uma lima nas mãos dos seus obreiros, como se vós não fosses o melhor obreiro. Sou de Deus e vou em nome de Deus correr mundo, para limar as asperezas da rusticidade, ensinando os ignorantes, socorrendo os que sofrem, velando junto ao leito dos enfermos.» E o pai há de deixá-la ir? Em nome de Deus, não!

Eis como esses padres tratam de atrair os corações dessas inocentes virgens.  Foi também em nome da religião que a inquisição levantava com mão impenitente essas fogueiras onde queimava as suas vítimas, e não só as suas vitimas, mas até os santos instrumentos da doutrina de Deus, os próprios livros da sua santa lei! (Apoiados. - Vozes: - Muito bem.) Não se queima só, queimando as carnes, carbonizando os ossos, queima-se apartando do coração, desfazendo e levando para longínquas paragens o que ele tem de mais caro! (Apoiados.)

Eu conheço o que pode haver de poético e sublime nesta instituição das irmãs da caridade, mas conheço também quanto nela há de arriscado e perigoso, mesmo pelas eloquentes e calorosas palavras com que o nobre e respeitável fundador desta instituição descreveu as vantagens destes institutos e a sua necessidade.

Depois de algumas considerações ascéticas sobre o seu modo de vestir, trajar e comer, que ainda hoje suponho que são rigorosamente observadas, descreve ele os institutos das irmãs da caridade do seguinte modo. (Leu.)

Mas no meio destas palavras saídas da boca deste nobre e respeitável fundador, que suspeitas, que escrúpulos de consciência, que nuvens e que mil conjecturas se podem formar! Que perigos, e que consequências gravíssimas se podem seguir! Respeito os actos religiosos de S. Vicente de Paula: mas a câmara não pode estranhar que eu empene todas as minhas forças, que recorra a todos os meios, que empregue a minha razão e inteligência para combater esta doutrina, que julgo perniciosa ao sossego das famílias. A câmara já sabe que eu sou adversário jurado destas instituições.

A virtude da mulher é a modéstia e o recato, junto de seus pais e debaixo das vistas da sua família.

O padre Vieira, falando dos governadores do ultramar, que já nesse tempo iam encher-se de riquezas nas nossas possessões, comparava-os com as nuvens (não sei se a figura filosófica é bem cabida) que vão encher-se ao mar, e que elevando-se ao firmamento vão despejar-se em longínquas regiões. «Vinde cá, dizia ele, nuvens ingratas, que viestes encher-vos aqui, e que levais o fruto que colhestes para longínquas províncias.» Digo também o mesmo. Virgem bela, que, educada debaixo das vistas do vosso pai, ireis para ele o seu alívio, a sua esperança, o seu contentamento e a sua congregação religiosa, para que ides levar tão longe o fruto dos exemplos paternos? (Vozes: - Muito bem, muito bem).

Acho desnecessária a instituição. Pois há de ir uma irmã da caridade transportada em vapor, em caminho-de-ferro, - para acudir aonde? Onde está essa terra privilegiada de males e de doenças? Onde não há doentes a tratar, crianças para instruir ou velhos que precisem de ser consolados? Para que é esta organização como a de um grande exército; esta obediência as ordens dos superiores estas marchas constantes para a América, da América para a África, e da África para a Europa? Se isto se não citasse, era bom. Mas tudo se cita, tudo se sabe, tudo se reproduz no parlamento, tudo se escreve nos jornais. Se Deus quer que a caridade seja tão oculta, que a mão direita não saiba o que dá a esquerda, para que é então decorar a cabeça das suas sacerdotisas com um certo ornato, e cingir-lhes o corpo com  uma certa e determinada fazenda, proclamando, festejando e assinalando assim a caridade? (Apoiados. - Vozes: - Muito bem.)

Eu queria que a caridade, podendo ser, fosse invisível e as irmãs da caridade teriam redobrado as suas virtudes se se vissem as suas obras, sem nunca se saberem os nomes, ou se apontarem as pessoas que as praticavam. A mulher, sobretudo das altas classes, que vai com os pés mimosos costeando as portas menos abertas à limpeza até cegar ao leito do pobre, e que vai aí com a ignorância até da sua família, envergonhando-se da sua própria virtude, mas sempre fiel aos seus sentimentos. lembrando-se dos sofrimentos dos seus semelhantes  essa mulher é mais cristã, mais senhora e mais nobre que as irmãs da caridade. A mulher com uma caridade verdadeira, sobretudo a mulher de uma alta jerarquia, que ajoelha perante o leito mais intimo, querendo praticar a caridade, não há de estar a ver-se ao espelho das suas grandezas, nem a recordar-se dos degraus do seu palácio; há de esquecer-se de tudo isto, e lembrar-se unicamente que está debaixo da mão de Deus e junto do povo que nasceu do pó, pó como ela e como todos os grandes. Esta é a verdadeira caridade.

A caridade, para mim, deve ser livre, espontânea, (apoiados) instintiva, isenta de toda a suspeita de vaidade humanas. A caridade não adite recompensa, nem galardão, nem menção. A caridade está toda dentro do coração do homem e da mulher. O homem caridoso envergonha-se de que sejam citadas as suas acções virtuosas.

Eu venero e respeito a instituição das irmãs da caridade, venero os preconceitos donde ela nasce, respeito as ideias erróneas que a sustentam; mas acho que é exagerada e desnecessária, e que não tem verdadeira consideração para com sentimentos humanos que se devem respeitar.  A crença na virtude não dispensa o respeito ao decoro público, assim como a religiosidade, no sentido que lhe dão os teólogos, não dispensa o culto externo; e o culto externo das irmãs da caridade é pouco consentâneo com as formas, com os costumes e com as prevenções da autoridade civil. Eu prefiro a caridade que pode compreender o melhor serviço de Deus e dos pobres, sem contudo ofender as susceptibilidades humanas.

Mas, senhores, para que é tudo isto? Nós temos duas associações, uma religiosa e outra natural temos a paróquia e a família. Para que havemos de entrar na questão escolástica da inteligência de velhos estatutos, nem pôr em comparação diversas escolas de caridade? Associemo-nos todos, cada um na sua paróquia. A caridade em cada paróquia tem dois chefes: o chefe da família para vigiar, regular e acompanhar os actos de caridade dos diferentes membros da sua família, e o pároco para ser o núcleo religioso, o conselheiro, enfim o laço da caridade humana com a caridade divina.

Eu também sou chefe de família e caridoso (ainda que não é preciso ser casado para ser caridoso); mas também tenho a minha família para oferecer para esta reunião, e também tenho o meu pároco, como todos o têm. Formemos sociedades de caridade.

Os melhores capitães de companhias são aqueles que conhecem os soldados pelos números, e que os conhecem não só pelos números, mas pelos serviços que eles têm, pelos vícios a que são dados; que sabem se são valentes ou não, se são governados ou não, se têm pecúlio ou não têm. Permuto eu uma caridade governada por estes princípios não seria uma caridade muito mais solícita, muito mais pronta, muito mais aproveitada, muito mais discreta? Decididamente que era. E se pode haver a relação circunstanciada, e anotada minuciosamente, dos soldados de caridade que existem, por exemplo, na Polónia, mais facilmente se pode obter com relação às paróquias.  Nós temos um rol das pessoas que vão aos bailes, das que jogam, das que vão ao Clube, das que vão ao grémio.  Tenhamos também um rol daquelas que são necessitadas, dos recursos que têm, se são falsos mendigos ou verdadeiros, se encobrem alguma coisa da sua fortuna se têm parentes que se tenham esquecido do dever do sangue, para os obrigar a socorrê-las.

Façamos a caridade assim, e creio que facilmente se pode fazer. Por exemplo suponhamos que a câmara vota que os institutos de caridade estão perfeitamente satisfeitos, organizando-se as sociedades de caridade com os chefes da família e com o pároco em cada paróquia haverá algum cânon, algum papa, alguma igreja, algum escrúpulo, alguma doutrina, algum ministro estrangeiro mesmo, alguma diplomacia. que se levante contra isto? Quando nos viessem dizer  «É preciso que venham irmãs da caridade!» - nós responderíamos: «Estamos todos feitos irmãs da caridade, todos somos irmãs da caridade!» (Riso.) Mas eu não queria merecer os risos da câmara nesta ocasião, porque julgo isto extremamente razoável, e isto, felizmente, já existe em Portugal. (Muitos apoiados.)

A caridade é uma poesia do coração e não admite regras; é como a poesia do sentimento, que se lhe puserem ao lado os preceitos de Horácio, e as três unidades de Aristóteles, perdeu-se o esforço, fugiu o estímulo, morreu o génio. A caridade é uma árvore imensa que cobre a humanidade toda, e que, depois que foi regada com o sangue de Cristo, cresce sempre na proporção do desenvolvimento do género humano! Esta caridade vale muito mais que os bosquetes recortados que só podem dar sombra às pessoas mimosas que os cultivam, mas que não podem dar larga sombra a toda a humanidade que sofre.  (Apoiados. - Vozes: - Muito bem.) E o receio que eu tenho é este: é que, criando nos oficiais públicos de um sentimento que até agora todos nós temos tido, vamos matar o espírito caridoso que é distintivo do nosso país. (Apoiados.)

As irmãs da caridade nasceram numa época de bruteza, e de sentimentos menos dignos e menos apurados de humanidade. (Apoiados.) Hoje diz-se que a civilização moderna tem corrompido os costumes, pois eu gosto muito mais da corrupção destes tempos de agora, do que das virtudes do tempo passado. (Apoiados.) Eu espero muito mais destes princípios, que se dizem subversivos da moralidade humana, do que espero daqueles que então predominavam numas certas classes, que se assenhoravam das consciências, julgando que eram coisa sua, (apoiados) e também dos bens que possuíam, julgando que lhes pertenciam. (Apoiados.) O sentimento nacional de caridade é inesgotável entre nós, (apoiados) está estabelecido em todas as classes e em todas as localidades, (apoiados) por todos os modos e maneiras; e não quero que haja uma corporação especial para este fim, (apoiados) e é preciso que a não haja, para que não esmoreça esse sentimento com distinções dadas a uma classe que a não merece, nem é digna de galardão porque foi caritativa.

Uma mulher com quatro filhos que choram de fome, que distribua, apesar disso, metade do seu tempo, do seu carinho e do seu pão com uma vizinha desgraçada, não gosta da diferença que se faz da sua classe, que é dirigida pelo sentimento natural de beneficência, quando vê uma outra abastada, honrada, elogiada, correndo de carruagem, pregoando a caridade. (Apoiados.) Eu não participo desses preconceitos e reparos que se fazem, porque a caridade se exerce de carruagem mas é preciso que quem assim a exerce se lembre, não do grande salto que deu para descer da carruagem, e entrar na casa do pobre, mas do salto que deu para subir a ela, porque a sua posição lhe trouxe o dever de socorrer os desvalidos.

Eu tenho por mim uma grande autoridade  tenho por mim o próprio instituidor das irmãs da caridade, S. Vicente de Paula. E ainda que não me achasse fortalecido com o testemunho de tão grande autoridade, eu, não obstante, atrevia-me a emitir a opinião que tenho, e que é a mesma do instituidor.

A caridade quer toda a atenção aos preconceitos públicos, e respeito às opiniões estabelecidas. Não nos deixemos ser cegamente levados deste sentimento, crendo que não encontra obstáculos, que lhe tolham os voos. As irmãs da caridade são uma boa instituição, mas podem prejudicar o país pelas considerações que já fiz, podem influir no sentimento público, podem ofender a caridade particular, podem quebrar o nexo que liga as pessoas votadas a fazer o bem, podem ser um veículo de indisposições, podem tolher a liberdade de acção ao governo do país, enfim podem trazer mil inconvenientes que é mister evitar. E note-se que eu neste ponto não falo só a meu sabor, falo pela boca de S. Vicente de Paula.

Sr. presidente é sabido que o instituto de S. Vicente de Paula nasceu em Paris nos salões mais distintos, mais ricos, da mais elegante sociedade, porque as grandes virtudes, pelo seu carácter moral e humanitário, não nascem privilegiadas mas são de todas as condições e entram com igual recolhimento tanto na choupana como no palácio. As senhoras da sociedade mais distinta de Paris lembraram-se e combinaram entre si estabelecer esta instituição, e para esse fim pediram a S. Vicente de Paula o seu conselho, que lho deu na seguinte resposta. (Leu.)

Ora, Sr. presidente, depois disto não tenho mais nada que dizer, (apoiados) senão que ofereço aos Srs. ministros esta resposta de S. Vicente de Paula, para que a metam em alguma nota diplomática, (riso) se acaso têm sido ou poderem ainda ser obrigados a enviar alguma sobre esta questão. Eu dou-lhes de conselho que copiem textualmente esta resposta, que é a melhor que podem dar ao governo de Paris, quando os arguirem de terem dissolvido por um decreto esta instituição), à semelhança de outras que pelo mesmo modo e por este meio foram dissolvidas em França, sem que se levantassem as dúvidas e questões que se têm aqui levantado. É porque a França é a França, (apoiados) e Portugal é Portugal! (Apoiados.) É que, nas nações pequenas, não se avalia a sua grandeza senão pela grandeza de seus ministros. (Apoiados.) E esta é a grande dificuldade de governar em pequenos estados; porque quanto mais pequeno é um estado mais importantes devem ser os homens que estejam à frente dos negócios políticos.

E já que falamos neste Ponto, eu ofereço aos Srs. ministros exactamente um discurso dum ministro francês, para eles poderem fundamentar a nota que devem dirigir a esse governo.  O ministro já disse que isto era uma questão diplomática; se o não disse aqui, disse-o em outra parte a sua maioria, e eu creio que era melhor tê-lo dito nesta casa, porque, para assuntos desta ordem, o governo sabe que não há maioria nem minoria. (Apoiados.)  Pois então em resposta a essas notas os ministros podiam dizer: «Em casos semelhantes, sucedidos em França, as razões são todas a nosso favor.»

Tinham-se admitido em uma parte das províncias francesas uns padres belgas da ordem redentorista. A ordem é distinta, sua instituição não sei qual é, mas o seu fim era não menos religioso que este, porque foi instituída para ensino da mocidade e para criar educadores populares; era uma espécie de ensino às classes mais inferiores das aldeias. Foram mandados estes padres para lá, porque ali havia uma parte da população flamenga, e estes falavam flamengo.

Para lá foram mandados os redentoristas com o fim de educar o povo, porque a linguagem era a mesma. Para cá mandam-nos as irmãs da caridade que falam francês, porque as nossas crianças todas falam francês! (Riso.) Em França era esta a questão suprema. Não era uma questão canónica, nem religiosa, era uma questão de língua; e não haviam as almas de ficar sem o pasto espiritual, visto que não havia outros padres que falassem o flamengo. Cá é ao contrário: visto que somos portugueses, venham franceses para ensinar os nossos filhos.

Mas, depois, alguns dos padres desmandaram-se, e não sei mesmo se cegaram a cometer alguns crimes; os criminosos foram julgados e sentenciados, e o governo entendeu que devia proibir o seu instituto.

«Os padres (disse alguém) cometeram alguns crimes, não há dúvida; mas mandar o governo acabar com a congregação só porque alguns cometeram crimes!» Que respondeu a isto Mr. Billault? Disse: «Os hábitos destes religiosos podiam recordar as faltas que tinham cometido alguns e por isso julgamos que era do decoro e obrigação do governo tirar estes hábitos de diante dos olhos do povo.»

Só nós é que não podemos dizer isto; se o disséssemos, éramos um país selvagem, e tão selvagem que nos admiramos de que se façam eleições sem haver pancada! Então conserve-se o hábito, e não se extinga a congregação, embora o povo a não veja com bons olhos!

Os padres também eram bons, e acusaram-nos; também prestaram serviços, e dissolveram-nos.  Pois este caso é o nosso, exactamente o nosso. E, assim, nós pedimos ao Sr. ministro que faça uso deste facto, que dê a este acontecimento toda a importância que ele tem, e o precedente alegado nesta exposição será um meio de converter todas as reclamações francesas em nosso favor. O Sr. ministro da fazenda ri-se, porque acha todos estes argumentos débeis.

O SR. MINISTRO DA FAZENDA - Não.

O ORADOR - Pois era um serviço bem feito; o ministro dos negócios estrangeiros, em França, encarregou-se de tratar todas as questões, uma por uma, em todas as hipóteses que efectivamente se dão entre nós. (Apoiados.)

Ainda me resta dar parte à câmara de um sucesso histórico. Nós também temos um santo apostólico, e é questão grave a decidir à face dos documentos qual será a personagem mais cristã, mais piedosa e mais perseverante - se o santo francês, se o santo peninsular. É matéria contestada.

O nosso S. João de Deus é um santo do nosso bom Alentejo: um santo ali de Montemor-o-Novo, creio eu... (Vozes: - Muito bem.) É nacional, e foi o fundador da ordem das irmãs da caridade.

Ora o santo foi muito menos feliz, muito menos amado nas suas empresas, porque saiu da sua casa e depois de grandes aventuras, tendo servido amos que se não julgavam satisfeitos com os seus serviços, tendo servido nas armas de uma nação, então beligerante, e não se dando bem naquele género de vida, encaminhou-se à Espanha. Em Granada, consternado ante o aspecto asqueroso dos pobres abandonados às imensas moléstias e às faltas de todo o abrigo (porque os pobres enchiam as ruas e estavam amontoados uns sobre os outros) passou por uma rua e, vendo escrito numa porta casa para alugar, - com uma resolução sobre-humana, não tendo nem com que se cobrir, e reduzido a ir todos os dias aos campos circunvizinhos fazer molhos de lenha para vender na praça, disse «Alugo-a eu!» E foi, ajudado ou só, buscar os pobres que encontrou, e levou-os para lá. E tal era o seu fervor, tal foi a sua perseverança, tal foi, sobretudo, a sua coragem para resistir aos apupos, aos escárnios, aos maus tratos da populaça, que pouco a pouco constituiu um hospital.  Não faltaram recursos  e conta a história que uma vez, indo ele à praça comprar o necessário para o seu estabelecimento, encontrara na volta um ente sobrenatural que vigiava os doentes. que ele temporariamente tinha abandonado. Nunca se pode saber ao certo quem era, mas suspeitou-se que fora o arcanjo S. Rafael…

Eu, senhores, como católico, simpatizo mais com o catolicismo milagreiro do que com o catolicismo filosófico; e portanto gosto mais do nosso catolicismo peninsular, salvo as fogueiras, que as houve por muita parte, do que com o catolicismo francês, que tem muitos laivos de filosofia mundana, e que me parece mais uma escola filosófica rebocada de religião, do que um grémio verdadeiramente católico.

(Deu, a hora.)

Creio que deu a hora. Estou cansado, não posso acabar hoje, e tenho que dizer duas palavras ao Sr. ministro dos negócios estrangeiros sobre a questão da Itália. Por isso peço para continuar amanhã.

(O orador foi cumprimentado de todos os lados da câmara.)

 

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Dez.2000