SESSÃO DE 9 DE JULHO DE 1861
Sr. presidente, depois que V. Ex.a
por uma muito discreta e, a meu ver, louvável
interpretação das regras regimentais desta casa,
consentiu que um orador inscrito sobre a ordem
estendesse as suas considerações a todos os assuntos
que estavam submetidos à deliberação da câmara, eu
não posso deixar de citar este precedente, para,
autorizado nele, usar da mesma latitude nas observações
que tenho a fazer a câmara. Contudo, para não
enfraquecer a autoridade do regimento, nem dar largas
demasiadas às benévolas e discretas decisões de V.
Ex.a, resolvi meter-me nas regras estritíssimas do
regimento, e, antes de proceder a quaisquer observações
que tenha a fazer à câmara, enviar para a mesa uma
moção, como é prática e regra quando se pede a
palavra sobre a ordem. E receando mesmo... não digo
receando, mas prevendo, que V. Ex.a não estivesse
disposto a deixar-me usar da mesma largueza que tinha
concedido ao ilustre relator da comissão, que não
tem um privilégio especial, tinha-me já munido de
uma emenda a respeito de todos os parágrafos da
resposta, para ficar habilitado a falar sobre todos os
assuntos. Desisto, porém, de apresentar estas
emendas, não invocando o precedente que V. Ex.a
deixou estabelecer nesta casa e neste caso, não o
invocando para me aproveitar dele em algumas poucas
considerações que vou fazer à câmara.
Portanto mando para a mesa, sobre a
questão das irmãs da caridade, que pode ser e é a
mais importante, uma emenda ou substituição, ou o
que quer que seja.
A resposta ao discurso da coroa
termina por um parágrafo que elogia, até certo
ponto, o governo pelas suas intenções e esforços
liberais, e promete-lhe o apoio da câmara. Para que
ele depois seja levado a capo, eu acrescento a este
parágrafo mais um outro, no qual determino o modo por
que me parece pode ser prestado o auxilio da câmara
neste assunto (leu).
O SR. PEREIRA DIAS: - É um projecto de lei.
O ORADOR: - Não é um projecto de lei, é um
parágrafo pelo qual nos comprometemos a apoiar o
governo para resolver esta questão por uma vez,
digo, não me parece que tenha as honras de um
projecto de lei; é apenas a indicação de princípios,
para os quais conto e sei que tenho o voto do ilustre
deputado.
Prescindo de me desculpar com a câmara
por tomar parte num debate que tenho condenado, e que
ainda hoje sustento que se podia preterir, como
aperfeiçoamento do regime parlamentar (apoiados)
e boa ordem das discussões
porque todas estas questões relativas as
diferentes províncias da administração pública,
podem ser tratadas quando à câmara se pedem os
meios, em cada um dos capítulos do orçamento do
estado, para estabelecer e regular essa administração,
nada havendo mais curial e consentâneo com o trabalho
intelectual, nem mais próprio do voto da câmara, do
que reservarmo-nos para essa ocasião.
Esta questão das irmãs da
caridade tinha o seu lugar no orçamento do ministério
do reino. Tinha aí o seu lugar próprio quando se
tratasse da beneficência, porque suponho que a questão
das irmãs da caridade não é senão uma questão de
beneficência. E nem se pode inferir das ejaculações
um pouco mais tímidas e fracas sobre a necessidade e
conveniência das congregações religiosas. que não
houvesse aqui nenhuma opinião singela a favor desta
instituição, que eu muito respeito pelo lado da
caridade.
Pelo que me toca, eu por um lado
tremia de ser acusado de falta de lealdade,
colocando-me, enquanto a esta questão, numa situação
um pouco favorável ao governo, e assim ofender a
susceptibilidade de alguns nobres deputados, a quem não
sei se chame meus amigos políticos, se meus
companheiros parlamentares; por outro lado receava não
levar as minhas ideias até onde quer que elas
chegassem, por esta timidez de incorrer na desaprovação
das parcialidades políticas, não tomando francamente
a defesa do governo no que entendesse que ele merecia
meu auxílio. Mas o governo não precisa da minha
defesa, porque tem nesta casa mais apoio do que
esperava. Por consequência estava só, isolado, único
e recolhido à minha consciência, para defender as
minhas opiniões, não tanto pela satisfação
moral de as afirmar em público, e muito menos
por essa especulação de popularidade de que todo o
político se deve desprender, como para protestar a
minha lealdade não tendo a seguir senão a voz da
minha consciência. Mas só e só, e creio que bem só,
- porque sou daqueles que não querem irmãs da
caridade em parte alguma, em época alguma, de nenhuma
organização, com nenhum fim, com nenhuma mistura de
autoridades civis ou eclesiásticas (apoiados);
sou daqueles que as não querem nem francesas, nem
portuguesas (apoiados); nem esse ridículo
instituto que ao governo parece uma criação canónica
e que é um absurdo
civil. (Apoiados).
Estava só antes que o nobre
deputado por Benfica…
UMA VOZ: - Por Belém.
O ORADOR: - …ou por Belém; mas
disse Benfica, porque acho um sítio mais aprazível,
e talvez um nome mais lisonjeiro para o nobre deputado
visto ter assentado ali a sua residência.
Estava só até que ouvi o ilustre
deputado pôr a questão nos mesmos termos, manifestar
as mesmas inspirações. pouco mais ou menos, mas com
a mesma conclusão, sem eu ter nada que tirar do seu
discurso senão as apreciações inexactas que ele fez
a respeito de algumas parcialidades políticas, com um
erro de facto e com inexactidão de datas. O partido
em que militei (não porque tivesse as mesmas
bandeiras nem a mesma procedência política, mas em
que estive destacado sempre em serviço do progresso
desta terra) esse partido a que o ilustre deputado se
referiu já, só debaixo da sua iniciativa, nos tempos
em que governava, tinha votado nesta câmara uma lei
de morgados, levando-a, com a sanção e aprovação
do governo, a outra casa do parlamento, onde,
embrulhada numa grande divisão de opiniões, numa
grande diversidade de intuitos e de expedientes,
morreu numa comissão e desfez-se nuns poucos de
projectos de que não se pode tirar coisa alguma. A
lei dos morgados, que passou agora, foi uma segunda
tentativa. A primeira tinha uma data a que o ilustre
deputado tem um certo aborrecimento, mas sobre o que
devia pensar, para se não fazer sectário de homens,
e poder medir da altura da sua imparcialidade e do seu
patriotismo todas as parcialidades políticas, segundo
a sua consciência, e fazer de tudo isto esse partido
que eu quero que se faça e constitua e que se pode em
constituir sem passar ninguém por cima dos seus
chefes, mas ao lado deles. Por cima não, porque
entendo que não se pode prescindir das suas luzes e
da sua cooperação, ainda que haja neles que
condenar. (Apoiados.)
Eu tenho passado ao lado de todos os homens, e estou
pronto a passar, atendendo aos serviços que têm
prestado sem lhes negar sua capacidade; e se o ilustre
deputado tem o mesmo modo de pensar, e tem de empenhar
as suas faculdades neste nobre intuito, há de
dispor-se a passar com a mesma indiferença pelas
pessoas com quem tem vivido ultimamente, e com quem
tem andado nestas diversas empresas políticas, e
ligar-se, livre sempre em sua consciência, aos homens
que as circunstância tiverem indicado para assumir o
governo do país, uma vez que eles tenham a
reconhecida capacidade para desempenhar essas funções.
Esta é a primeira congregação e o primeiro partido
a fazer nesta terra. O primeiro partido indispensável
é dos homens mas, note a câmara, dos homens
desprevenidos e soltos de todas as pequenezas.
O Sr. ministro da fazenda disse
aqui: «Vós quereis fazer das irmãs da caridade uma
questão política.» Esta estranheza dos Srs.
ministros revela uma grande ignorância de direito.
Que me importa fazer das irmãs da caridade uma questão
política? Não as têm feito os Srs. ministros? Não
estamos nós aqui para fazer questões políticas? Não
é esse nosso ofício e a nossa obrigação? Não tem
o Sr. ministro da fazenda feito questão política de
assuntos de menor ou igual gravidade? Por que motivo
vem esta estranheza? Não é só estranheza, é uma
grande inexactidão visto que não quero fazer desta
questão uma questão política. (Apoiados) E
prometo que dou o meu apoio a todas as medidas que eu
julgue consentâneas para livrar o país do desnecessário
estabelecimento das congregações religiosas.
Para isto, dou-lhe todo o meu apoio, e sinto
que não tenha empregado todos os meios que podia
empregar, usado de todos os expedientes de que devia
usar, com mais habilidade, com mais energia e com mais
decisão. (Apoiados.) Uma questão política!
Sim, uma questão política, não digo para este
governo, para este parlamento, mas para todos os
governos e para todos os parlamentos que existam e
possam existir; porque esta questão que promete
distrair perpetuamente os homens públicos de tratar
dos assuntos mais graves e mais importantes da nossa
governação interna; impossibilitar o governo do
estado a todas as parcialidades políticas e debilitar
os princípios parlamentares, há de ser forçosamente
decidida. E se o governo por egoísmo não a decidir,
deixando na sua retaguarda opiniões tão encontradas
como as que tem manifestado, aqueles que se
aventurarem ao poder não poderão também vencer esta
questão. Em todo o caso é preciso que alguém a
decida: inchoada nas mãos deste, é do seu dever acabá-la.
Questão política! Quem a fez
questão política foi a comissão de resposta ao
discurso da coroa. Pois que dizia a resposta, e que
indicava neste assunto quando dele falava?
O discurso da coroa contrastava
absolutamente com os factos de que todos tinham
conhecimento; ninguém podia dizer que era um discurso
da coroa feito em Portugal. Só nos dizia que as eleições
tinham sido feitas com grande tranquilidade. Num povo
bárbaro como nós, é uma coisa estranha e de
mencionar que se fizessem eleições sem se perturbar
a tranquilidade pública; e o governo não lhe sofria
o coração que não se congratulasse com o país por
ele governar um povo que fazia eleições sem
perturbar a tranquilidade pública!
Que dizia mais o discurso da coroa?
Dava-nos uma grande notícia, que parece que chegou há
pouco pelo correio: descobriu-se que as províncias
ultramarinas tinham produtos que podem ser
aproveitados na indústria e no comércio da Europa!
Veio pelo último correio esta notícia, e foi uma
descoberta agrícola. De maneira que as províncias
ultramarinas não foram descobertas quando o foram,
nem visitadas por quem foram visitadas, nem se
conheciam as suas produções: há oito dias é que
foram descobertas, e o Sr. ministro, recebendo a notícia,
teve a modéstia de não dizer:
«Olhai que descobrimos as províncias
ultramarinas. Porque efectivamente foi ele quem as
descobriu, pois que descobrir a superfície
territorial não é nada descobrir os seus produtos
agrícolas, os seus meios de riqueza, isso é que é
tudo, e isso é que cegou lido correio ao Sr. ministro
da marinha!
Mas a respeito das irmãs da
caridade, a respeito da questão que agitava toda a
gente, nada dizia o discurso da coroa. Silêncio
profundo!
Que fez a comissão? A comissão
julgou que, quaisquer que fossem os receios diplomáticos
e as contemplações políticas do governo, não era
decente nem decoroso, num governo de publicidade,
calar, um documento desta ordem, que existe aquilo que
realmente existe.
O governo do país, que devia ser o
órgão das opiniões dominantes, calava absolutamente
aquilo em que todos falavam. O discurso da coroa nem
uma palavra dizia a respeito das irmãs da caridade:
mas a comissão no projecto de resposta adicionou um
parágrafo a esse respeito, e foi ela que fez política
a questão das irmãs da caridade, tanto mais política
que a meteu na resposta ao discurso da coroa. quando o
discurso da coroa não tinha falado nela. Não fez só
uma questão política, fez uma censura ao governo,
porque só a inserção destas palavras é uma
verdadeira censura. Não sei se o governo as aceitou
ou não. Se as aceitou, a censura é menor; mas se não
as aceitou, tem a censura da lembrança, a censura do
aviso e da advertência: «Olhai que vos não falastes
no assunto; é preciso falar nele, e falamos nós.»
Mas há aqui alguma questão política?
As questões políticas, quem as sabe pôr
perfeitamente na sua nudez natural, na sua lógica
primitiva, é o Sr. ministro da marinha; esse é que
as sabe por de uma maneira clara pelo estilo que
denuncia a filosofia dessas questões.
«Querem que morramos, que vamos entregar o
poder nas mãos dos nossos adversários? Hão de eles
vir sentar-se aqui e nós irmos para casa?» Esta é a
questão política de S. Ex.a.
E o Sr. ministro diz com uma certa satisfação,
com um
certo prazer: «Querem que morramos?» Tem orgulho,
tem satisfação, tem um prazer inaudito em dizer que
o querem matar; sendo talvez o sentimento de que pode
morrer o único que lhe revele a glória de ter vivido
politicamente.
«Apostata! Chamam-me apostata!
Estou espantado como descobriram que eu tinha tido uma
vez convicções diferentes daquelas que tenho agora.»
Este vaidoso sentimento de mortalidade é uma coisa
singular. Se os efémeros tivessem uma vida moral e
intelectual, esse sentimento podia ser para eles
natural, porque esses quase que não sabem que vivem
senão porque morrem.
«Pois queriam que executássemos
as leis e que as executássemos na capital? A lei dos
pesos e medidas é magnífica, é excelente, mas foi
votada há dez anos.
E havemos nós agora executar uma lei que foi
feita há dez anos?» À vista disto, a missão dos
ministros reduz-se a executarem as leis que eles propõem:
e, por consequência, se não propõem lei alguma,
ficam desculpados de não darem execução as leis,
porque não executam senão aquelas que eles propõem.
Que se não execute uma lei,
conceba-se; mas que o governo consinta que seja mártir
da obediência e do respeito a lei e as autoridades
uma classe de cidadãos, isso e que é inaudito.
O governo não executou a lei dos
pesos e medidas, e a antiguidade dessa lei era um
aviso para ele, durante esse lapso de tempo, ir
tomando todas as medidas preparatórias, afim de que não
aparecessem, no momento de a executar, as resistências
que são naturais em casos semelhantes.
O governo não só não tratou disso, mas
aconteceu o seguinte: vários lojistas, por exemplo
padeiros, julgaram que podiam executar a lei dos pesos
e medidas; mas o desgraçado que, em lugar de vender
por arrátel, entrou a vender por… como se chama?
(Riso.)
UMA VOZ: - Quilograma.
O ORADOR: A minha hesitação mesmo
desculpa a resistência, mas torna mais meritório o
acto daqueles que, longe de resistir, procuraram
adoptar no seu comércio os novos pesos e medidas,
começando num certo e determinado dia a vender
segundo a lei. Porém sabe V. Ex.a o que aconteceu?
Foram invadidas as lojas, os pesos lançados à rua, e
eles espancados. Aconteceu isto àqueles indivíduos
que estavam preparados com os competentes pesos para
executar a lei e o governo, que teve tanta coragem
para não a executar, nenhuma teve para defender
aqueles que queriam e começavam a executá-la.
UMA VOZ: - Sabe isso?
O ORADOR: - Consta-me a mim, e
consta ainda mais solene e dolorosamente àqueles que
apanharam. (Hilaridade.)
Mas o Sr. ministro passou-nos depois uma certidão
nos seguintes termos: «Saibam todos quantos esta
minha declaração ouvirem, que nas províncias de
Portugal se vai executando a lei dos novos pesos e
medidas, e que o governo todos os dias recebe as mais
satisfatórias notícias a este respeito; que em toda a
parte do reino se pode executar a lei, menos em Lisboa
onde eu sou o único representante de autoridade, mas
onde ninguém faz caso de mim.» (Riso).
E esta é que é verdadeiramente a
questão do poder, a questão ministerial. Mas o Sr.
ministro saiu da
questão dos pesos e medidas, saiu das considerações
de pesos... miúdos, subiu a mais altas regiões, e em
contravenção das opiniões do seu colega da fazenda
e contra todos os princípios económicos e
financeiros, veio com teorias arbitrárias, com
assuntos obscuros estabelecer o princípio de que a
prosperidade das nações avalia-se pela importância
e conhecimento do preço de seus fundos, e também
pela soma de litros de ácido sulfúreo que consomem.
Mas, ainda que esta regra se possa admitir, é
certo que também há a curiosidade de saber quem
governa essas nações. (Apoiados). Não se
tomam só em atenção os factos materiais, também se
pergunta: «Quem governa essas nações?» Não se
misturam, para avaliar a prosperidade das nações, as
pessoas que as governam com os factos materiais que têm
lugar; portanto, não se conhece a prosperidade das nações
só pelo preço de seus fundos, nem pelo maior ou
menor consumo de ácido sulfúreo. (Riso.)
A questão do poder contra nós é
esta. A questão do poder é que quatro ministros, em
vez de procurarem o melhor modo de gerir os negócios
públicos e de acudir às necessidades públicas, em
vez de compreenderem a alta missão de que estão
encarregados, só tratam de esquadrinhar as teorias
dos seus adversários, as frases que pronunciaram, os
erros que por ventura tenham praticado. Fazem disto
uma colecção minuciosa, e depois declaram: «Nós
governamos o país; mas não estamos obrigados a
governá-lo melhor que os nossos adversários; nós
governamos tão bem como eles governam, governamos do
mesmo modo.» Ora assente este princípio, tomado como
cartilha para todos os nossos homens políticos
chamados ao governo, o país necessariamente há de
gritar de desesperação, e procurar salvar-se logo
para não ficar inteiramente perdido.
Desde que abandonados os interesses
do país, desde que estabelecido tudo quanto há de
mais ruinoso e contrário aos interesses públicos,
isto se conserva como norma para todos os governos, em
vez de se seguir outro caminho e adoptar outros
preceitos, esses governos não dão garantia, nem a
podem dar, de virtude e de ciência, esses governos não
são aquilo que devem ser: são só governos de corrupção
política. (Apoiados.)
Mas os Srs. ministros fizeram oposição
aos Srs. ministros passados: e eles são tais como os
passados. Neste caso, qual é o seu dever? É fazerem
oposição a si mesmo! (Riso.)
Este estado obrigará a aparecer um
terceiro partido, e quando ele aparecer é para
declarar que o governo do estado é uma necessidade,
que essa necessidade há de ser preenchida, e
preenchida por gente que lance um véu sobre tudo que
se tem feito (apoiados), sobre todos os erros
dos seus antecessores que lance um véu para esquecer
os defeitos anteriores, e declare que apareceu para
governar melhor, para remediar, e não para imitar os
erros praticados, para gerir as coisas públicas sem
lhe importar o que fizeram ou deixaram de fazer os
seus contrários. (Apoiados.)
O ilustre relator da comissão expôs
ontem, com muito espírito e com muita verdade, a razão
profunda e radical da existência do actual governo e
afirmou que ele faz um grande serviço ao país. Esse
grande serviço é que, enquanto ocupar este governo
as cadeiras ministeriais, não as há de ocupar a
oposição (Riso.)
Na verdade. é definir a situação do actual
governo nos tenhas mais próprios e mais próprios...
As situação do governo definiu-a perfeitamente o
relator da comissão.
Mas desde que um governo obsta a
que se façam novas tentativas, a que se procurem
novos homens, a que se renove a vida pública desde
esse momento o governo que ocupa as cadeiras do poder
é altamente prejudicial aos interesses públicos.
Registo a definição desta situação. Não digo isto
por ironia registo-a, porque é a jaculação da
verdade, e a verdade é uma só e única.
Uma questão política para mim!...
E eu tenho umas poucas! Mas a câmara far-me-á
a justiça de crer que não empenharia as minhas
faculdades, o meu sossego e tranquilidade, e sobretudo
que não venceria um certo descoroçoamento sobre, não
digo a sorte final do nosso país, mas melhor
aproveitamento das suas coisas, durante a minha vida a
câmara há de fazer-me justiça, digo, de crer que não
fazia todos estes sacrifícios para assistir ao
pomposo espectáculo de ver no Diário de Lisboa os
decretos declarando que os ministros actuais tinham
servido a contento de sua majestade, e que iam para lá
outros que tornavam a ser demitidos passado tempo a
contento de sua majestade! Porque uma mudança política
sem substância, sem efeito imediato na causa pública,
declaro que a não concebo! Nem a louvo nem condeno.
Eu tenho uma questão política.
Mas a questão política para mim está na
reforma radical da administração desta terra, em
todos os seus pontos, em todas as suas estações esta
na reforma do sistema por que nós fazemos as leis;
está na reforma do nosso espírito político e
costumes parlamentares, desde a câmara até às sessões
da última junta de paróquia.
A minha reforma, a minha questão
política, é uma economia, não nos grandes soldos do
estado, porque os não há, mas uma grande economia no
tempo e braços que se consomem em tramites desnecessários,
em papeladas inúteis, que mostram a ignorância de
governar e que são muitas vezes o abandono dos negócios
públicos.
A minha reforma política consiste
na revisão de todos os tributos, não só antigos,
mas dos ultimamente lançados, para de todos se formar
um sistema pelo qual se possa distribuir a contribuição
com igualdade. (Apoiados.) As contribuições
novas que eu votei, e às quais reitero o meu voto, não
formam ainda um sistema completo e perfeito. E o
resultado é que a contribuição não tem atingido, já
não digo a igualdade possível, mas a igualdade tolerável,
porque os pequenos martírios que os homens
desvalidos, os homens do povo sofrem, são muitos, são
imensos. (Apoiados.) E é necessário procurar
dar remédio a esses males.
A minha reforma visa à clareza nos
negócios, e a exposição singela dos haveres de cada
corpo do estado e de cada cidadão particular. A minha
reforma não é de economias com corte, porque não se
podem fazer nenhuns, absolutamente nenhuns (é necessário
mesmo aumentar os ordenados a maior parte dos funcionários):
mas a supressão de serviços desnecessários, com
aproveitamento daqueles de que se não pode
prescindir, e a anulação talvez, eu não quero dizer
de sinecuras, porque as não há...
UMA VOZ: - Há, há.
O ORADOR: - ... mas de altos corpos
de administração. que podem talvez muito bem ser
suprimidos. (Apoiados.)
A minha reforma é a organização
da força pública, nos termos em que um ilustre
parlamentar, e até certo ponto meu amigo político,
terá talvez de apresentar hoje a câmara. A minha
reforma é a organização da força pública, nas
suas divisões naturais, de maneira que cada uma
preste para o fim a que é destinada, e que nem o exército
seja policia, nem a policia seja exército, nem que, a
pretexto de armar o país, se faça um grande alarme,
como se fez com a ideia da criação dos batalhões,
que só servia para nomear alferes e tenentes, dando
lugar a que esta organização se prestasse a uma
certa concatenação eleitoral, de modo que, com um
aparelho assim formado, nós perdêssemos todas as
liberdades públicas.
E, neste ponto, direi que a minha
opinião é que o país que quer ter a consciência da
sua força, preparar-se decorosamente para todas as
eventualidades, precisa fazer-se uma Suíça monárquica.
Estas e outras são as minhas
reformas. A enciclopédia não é completa, e não
serve de nada fazer enciclopédia de política
administrativa há resposta ao discurso da coroa; mas
perde-se tempo talvez, se depois de alguns dias se
sair de um debate longo, não tendo apurado a reputação
de ninguém, nem tendo aparecido uma ideia, uma
esperança que nos possa consolar nesta parte. E
sobretudo o que nós precisamos é nortear a nossa política,
e assentar em um certo número de princípios, que
devem ser a cartilha que todo o país aceita, que
aceita o governo e aceitam todas as situações,
deixando a divergência das parcialidades para estas
questões que não são substanciais.
Qual é a posição que nós
devemos ocupar na Europa? Quais são os meios por que
podemos dar mais duração a esta nacionalidade, que
todos queremos, (apoiados) que todos desejamos
conservar, (apoiados) e por que todos desejamos
morrer? (Muitos apoiados.)
Nisto é que não há divergências.
(Apoiados.) Não há ninguém que não tenha
estes princípios: são princípios comuns.
E isto que se chamava antigamente
segredos de gabinete, são hoje segredos dos novos.
Hoje o parlamento inglês dirige-se ao seu governo, e
pergunta-lhe quais são os princípios pelos quais ele
tem de continuar o poderio e a grandeza da sua nação.
Em França pergunta-se em toda a parte o que o governo
tem tenção de fazer a respeito das altas questões,
e diz-se que a França convém isto e aquilo. Depois
as parcialidades discutem as questões de administração
e outras.
Mas para que havemos de estar
questionando se os ministros têm feito muito ou têm
feito pouco? Digamos a verdade, porque é um facto: nós
parámos. Depois da agitação das nossas grandes
lutas políticas, seguiu-se uma grande sonolência,
que se tornou em sono pesado; acordámos em 1851,
esfregámos os olhos, vimos o tempo que tínhamos
dormido, envergonhamo-nos da nossa inércia, e com
frenesi e sofreguidão de quem se vê muito atrasado,
e de quem tem perdido muito tempo, lançam-nos a
empresas de incontestável utilidade. Mas depois cansámos
e parámos.
Desde o último governo da regeneração,
ou antes desde o primeiro, porque o último já foi um
pouco menos activo, o que é que nós fizemos? Nada.
Ficamos espantados do nosso arrojo, admirados de
estarmos acordados tanto tempo, e com desejo de voltar
a cama. E os próprios ministros declaram que não têm
senão a executar essa grande e importante obra de
dois caminhos-de-ferro. que é o que estamos vendo
fazer. E acabou-se tudo. Fizemos dois
caminhos-de-ferro, e ficámos aqui.
Senhores, o trabalho político é
incessante e continuado, e não podemos deixar de
atender ao cúmulo de assuntos que nos assoberba
porque há um cúmulo de assuntos esquecidos, e a
iniciativa dum governo. em países que têm atendido
às suas necessidades capitais, é uma iniciativa
muito diversa da dum país que por muito tempo
desprezou tudo isso.
Se eu quisesse fazer enciclopédias
políticas, teria muitas medidas a lembrar; mas entre
elas há uma que está chamando pela acção dos
poderes públicos: é a desamortização civil.
Imensos territórios estão sem cultura, sem
aproveitamento nenhum; uns, esperdiçados em pastos
comuns, cujos interesses é preciso regularizar outros, entregues às câmaras municipais para logradouros,
em que ninguém logra outros, ocupados com um certo
direito consuetudinário pelas primeiras pessoas que
lhes lançaram a enxada, e que não dão pelo uso
destes terrenos nenhuma retribuição às corporações
a que pertencem. (Apoiados.) Há imensos
assuntos que estão chamando os desvelos do governo, e
que os pagariam exuberantemente.
E seja-me permitido dizer que,
tendo-se criado um ministério de obras públicas (e
isto não tem nada com o ilustre ministro que
actualmente rege aquela repartição, é pecha
antiga), ministério
que compreende a indústria, a agricultura, o comércio
e as obras públicas, só têm tido vida as obras públicas,
estando imensas, estando as mais importantes questões
nacionais, sem ainda serem estudadas nem iniciadas,
incluindo as
mais próprias para derramar sobre este país a força
da população e a força da riqueza, e facilitarem a
polícia das multidões, porque só um país
grandemente povoado pode ser bem policiado. E todas
estas questões bem ao menos têm sido lembradas, nem
metidas nos programas de governação.
Mas a questão das irmãs de
caridade, o meu fim é, com a mão na minha consciência
e envidando todas as forças do meu carácter,
coadjuvar este ou outro qualquer governo para a
resolver no sentido das minhas opiniões, sem
suspeitar da intenção dos meus nobres adversários,
acatando os escrúpulos deles e tributando respeito e
consideração a instituições, que já não são
desta época, mas que nasceram das necessidades dos
tempos em que foram criadas, e são filhas legítimas
das ideias religiosas e filantrópicas desses tempos;
o meu fim é resolvê-la sem ofender este governo, nem
diminuir a força que ele precisa ter para gerir os
negócios públicos, nem também favorecer nenhuma
ambição de quem quer que o possa ou queira
substituir.
A minha intenção é, dentro dos
meus meios e com os meus recursos, concorrer para que
tiremos da tela pública, por uma vez, esta questão.
Se não ela há de ocupar-nos eternamente,
reaparecendo-nos, ora debaixo de escrúpulos
religiosos, ora debaixo de exigências estrangeiras,
umas vezes sob a forma de dissenções nas famílias,
outras vezes sob a de incompatibilidades
parlamentares, e muitas ainda inutilizando-nos homens
úteis para o governo do estado, que por ela se possam
julgar inibidos de entrar nas combinações que as
diversas situações políticas podem tornar necessárias.
O homem do governo, o indivíduo, o
corpo do estado, seja quem for que concorra para que
de uma vez saia dos nossos debates esta importantíssima,
mas desgraçada questão, faz um grande serviço a
esta terra. (Apoiados.) E, eu não creio que
ela se possa resolver, nem pelos meios que o governo
tem empregado até aqui, nem pelos meios que ele pensa
empregar para o futuro. Não se pode resolver senão
unindo-se num princípio patriótico e desinteressado
os homens que representam o seu país fazendo lei
segundo as conveniências dele, e dizendo-lhe: «Execute-a
quem quiser executar; e vós, se não a quereis
executar, saí do governo, que alguém a executará.»
Uma coisa que eu tenho observado é
que se trata nesta casa como questão de legalidade
uma questão que me parece de princípios, e que já
tem ocupado largo espaço na outra casa do parlamento,
empenhando-se todos os oradores em sustentar se era
legal ou não legal o procedimento do governo. Eu não
recopilo os argumentos
a questão está longa e fastidiosamente
tratada. Mas a minha opinião é que o governo
procedeu segundo as leis do país, e se ele ou algum
dos seus sucessores nos apresentar nesta casa uma
proposta que exija o voto do parlamento sobre este
ponto, eu já lhe ofereço a minha voz.
Sou pelo governo.
Entendo que em todas as medidas que tomou obrou
segundo as leis do país. Se este voto aproveita para
alguma coisa, está já dado; porque eu tenho mesmo a
opinião de que a permissão com que se introduziram
no país as irmãs da caridade não é uma lei, é um
decreto. E não apresento isto como opinião, mas
apresento-o como um ponto de dúvida aos
jurisconsultos que estão nesta casa.
O decreto que admitiu as irmãs da
caridade em Portugal foi de 14 de Abril de 1819 época é nefasta, e se tirarmos dela a interpretação benéfica,
ou a interpretação dos benefícios por que a concessão
se fizera, não podemos duvidar de que essa concessão
fosse feita em beneficio da religião. Mas este país
um ano depois, em que esteve a cumular-se e a
encher-se a taça da paciência pública abria mão
dos interesses religiosos que lhe promovia o seu
governo, assim como este tinha já aberto mão da sua
independência e da sua dignidade; porque em 1819
comandava o general Beresford o exército, e o geral
em Paris comandava as irmãs da caridade.
As irmãs da caridade em Portugal
foram introduzidas por piedosas senhoras.
S. Vicente de Paula não teve parte em tão
caridoso assunto; devia partir do coração das
senhoras.
Diz a lei: «Atendendo ao que as
suplicantes representam, e às grandes utilidades que
em serviço de Deus, meu, e do estado devem resultar
do pio estabelecimento que se propõem formar, em que
a classe mais indigente e desamparada dos meus
vassalos (e por isso a mais digna do meu paternal
desvelo e real protecção) encontra asilo e socorros
benéficos oferecidos e fomentados pelo mais fervoroso
zelo da humanidade e caridade cristã: hei por bem e
me praz conceder-lhes o meu real consenso, e as
precisas faculdades para que possam fundar em Lisboa a
congregação das servas dos pobres, denominadas também
irmãs ou filhas da caridade, segundo as regras e
direcções dadas por S. Vicente de Paula. E sou
outrossim servido dispensá-las das leis de amortização,
para que possam adquirir por compras, doações ou
legados, e possuir, para seu património, bens que
possam produzir um rendimento anual até ao valor de réis
8.000$000. A mesa do desembargo do paço, etc.»
A lei derroga na segunda parte as
leis da amortização para que as irmãs da caridade
possam possuir bens.
Então estavam confundidos os
poderes políticos na mão dos soberanos, confundidos
de facto, mas não confundida a doutrina. Eu pergunto
aos jurisconsultos se a primeira parte deste
decretamento pertencia ao poder legislativo, que
estava então nas mãos do soberano? Não o creio;
porque, suponhamos que era precisa a bula do papa para
fundar uma ordem destas: a primeira coisa a fazer era
dar o beneplácito à bula, e estava fundada a ordem.
Ora, dar o beneplácito à bula do papa pertence ao
poder executivo. Logo esse acto era um acto do poder
executivo, especialmente aqui que é um despacho a um
requerimento. E demais, então, estavam admitidas as
ordens religiosas em Portugal; não havia por consequência
senão usar desse direito real, e aplicá-lo a uma
ordem. O poder executivo, no exercício das suas
atribuições, admitia essa corporação.
Portanto eu suponho que as irmãs
da caridade foram agora legalmente expulsas pelo
governo, por que não estavam admitidas por uma lei. (Apoiados.)
E o decreto de 3 de Setembro de 1858, que deixava
entrar duas, três ou quatro, com estas ou aquelas cláusulas,
era realmente um decreto, e hão era lei.
Há mais. Nas nossas leis antigas,
em assuntos desta ordem e gravidade, quando o soberano
usava do poder legislativo aberta e solenemente dizia:
Por virtude desta lei, etc.; acompanhando
sempre isto de todos os adjectivos que lhe davam maior
consideração e maior força. Sirva de exemplo a lei
que aboliu os jesuítas, no tempo do marquês de
Pombal.
Ora, há tal empenho em Portugal em
dizer que o procedimento do governo nesta parte foi
ilegal que eu até ouvi apresentar o mais estranho de
todos os argumentos tirado da lei de desamortização:
«Fez-se este audacioso cometimento, cometeu-se este
pecado, este atentado contra a utilidade pública,
contra a lei de desamortização.» Lei que ainda não
era lei ao tempo em que foi decretada a dissolução
do instituto das irmãs da caridade, porque eu não
admito que fosse lei senão depois da sua última edição!
Ou esta congregação era religiosa
ou não era religiosa. Se não era religiosa, não
estava compreendida no decreto de 1834.
E se era religiosa - ouça-se bem! então muito
mais, porque em virtude de uma lei que ainda não era
lei não podia dissolver-se.
«As corporações religiosas não
podem ser dissolvidas senão canonicamente.» Isto era
mais do que dar efeito retroactivo a uma lei, era
fazer sentir a lei que não existia.
Se se aplicasse o mesmo princípio
a todas as corporações religiosas, todas estavam
ilegitimamente dissolvidas.
Mas parecia natural que o governo,
achando-se a braços com esta questão, logo que se
reuniu o corpo legislativo lhe expusesse o estado dela
no discurso da coroa, com as cautelas e reservas
necessárias, e viesse declarar diante de todas as
parcialidades do parlamento: «Esta é uma questão
grave, acha-se em tal estado. e eu peço aos poderes públicos
o auxílio que devem prestar para a resolver segundo
as conveniências do país.» Mas nem uma palavra a
este respeito!
Se o governo não fosse dado a
estes actos de candura, eu não estranhava.
mas sendo-o, estranho, e muito.
Por exemplo, houve um meeting em
Lisboa, e sem que nessa ocasião se discutisse a
resposta ao discurso da coroa que fez o Sr. presidente
do conselho com o juízo que todos nós lhe
reconhecemos? Veio ao centro da representação
nacional, e falou desse acto por modo que eu sempre o
louvarei e que mereceu a aprovação do parlamento.
Porque não veio então o governo,
e não disse, pouco mais ou menos, na resposta ao
discurso da coroa:
«Temos feito iodos os esforços possíveis,
dentro da esfera do nosso poder, para resolver a questão
das irmãs da caridade;
mas tendo encontrado resistências de diversas
ordens, algumas das quais vos comunicaremos em sessão
secreta (se elas fossem dessa natureza), pedimos ao
parlamento o seu auxílio para podermos satisfazer
aquele empenho.»
Eu reputo a questão das irmãs da
caridade muito mais importante do que a do meeting,
pelas suas muitas e variadas relações e por isso
pergunto ao governo. especialmente ao Sr. presidente
do conselho, porque julgo que sobre a cabeça de S.
Ex.a pesa principalmente a responsabilidade deste negócio,
pergunto a S. Ex.a se julga necessário o auxílio
especial do corpo legislativo para resolver a questão
das irmãs da caridade.
Digo que pesa fortemente sobre a cabeça de S.
Ex.a a responsabilidade desta questão, porque lho
posso provar, e por isso emprazo o nobre ministro a
que, na primeira ocasião em que tome a palavra,
declare francamente a câmara se se julga com força
suficiente para resolver a questão sem dependência
do corpo legislativo
para a resolver realmente, porque eu devo
declarar aos Srs. ministros que não sei qual é a força
do seu decreto.
Vão a Benfica e assistam a uma
profissão de irmã da caridade, - porque bem sabem
que as irmãs da caridade não estão em Santa Marta,
mas em Benfica.
Se o Sr. ministro, ou por contemplações
pessoais, ou por qualquer outro motivo, não pode
cumprir as leis do estado, não tome então
responsabilidades com que não pode, e não se sirva
da aureola que cerca o seu nome e pessoa para, com
essa influência, ter presa uma classe inteira deste
país, fazendo-lhe persuadir que a sua presença no
ministério trará a solução desta questão segundo
os seus instintos e opiniões. (Muitos apoiados.)
Os decretos estão passados as
portarias são imensas, está esgotado todo o arsenal
administrativo, - e, em passando amanhã, há uma
profissão de irmã da caridade!… E depois desta
entrar para a igreja, e pedir a benção aos pais
ter-se-á faltado ao
respeito devido a este país, escarnecido do
parlamento dos Srs. ministros e de mim mesmo, que
estou falando em vão e ocupando-me de futilidades;
porque não há nada mais fútil do que esta grande
luta de palavras para uma coisa que se sabe que não
se faz nem se executa.
Pergunto aos Srs. Ministros se
sabem desta profissão, se a autorizam, se estão
dispostos a proibi-la;
se esta irmã da caridade é portuguesa ou
francesa quem
são os padres que lá oficiam
e se é permitido nesta terra dar profissões
religiosas.
Esta é que é a questão.
Eu fui vítima da minha inocência,
porque quando via estes decretos, tão decididamente
infestos as irmãs da caridade, julgava une alguma
coisa se conseguiria com eles, e reputava os meus
correligionários políticos eivados duma certa veia
oposicionista ao dizerem-me que isto de nada valia.
«Pois é possível, dizia-lhes eu, que estes
decretos, que dizem dissolver a corporação das irmãs
da caridade, nada façam, e que elas se não vão
embora?!..» E como provavelmente o Sr. presidente do
conselho se havia rido de mim, eles riam-se também.
Todos conhecem as dificuldades da
questão; todos sabem o que é introduzir aqui uma vez
as irmãs da caridade.
Se de novo se introduzissem todas
as ordens religiosas em Portugal, de cruz alçada, com
o seu voto, com os seus prelados, com as suas casas
capitulares, em suma, com toda a sua sumptuosidade,
todas eram aceites, e depois havia de dizer-se que
eram legais e legalíssimas, e que os decretos que
contra elas se promulgaram não lhes diziam respeito.
E no meio destes ambages de interpretação e não
interpretação da lei, provavelmente fazia-se uma moção
para que todas pudessem continuar a existir entre nós
e para que nós todos fossemos filiar-nos em algumas
delas. (Riso.)
Esta insistência na legalidade da
questão, é que eu nunca cheguei a perceber.
Parecia-me antes uma questão de princípios, de
filosofia social e de organização de beneficência,
em que se tratava dos direitos do estado contra a
igreja dominante.
Pois para que quereis cobrir a
vossa cobardia doutrinal com a letra das leis e dos
decretos, em face de quem quer que seja, ou dos
poderes estrangeiros, ou das altas influências do país?
Quereis mostrar-vos coactos das leis! E supondo que não
havia leis?...
O que eu pergunto aos Srs.
ministros é se julgam as irmãs da caridade uma
instituição necessária, aceitável, sem perigos
para a governação pública; se, sem ofensa do nosso
pundonor nacional, se pode admitir essa instituição
nas circunstancias em que está, livre de toda a sujeição
aos poderes do estado se querem, se não querem esta
instituição; se têm ou não têm a coragem dos
grandes ministros do imperador para dizer num relatório
lucidíssimo, que se leu perante a Europa sem nos
fazer vergonha: «As ordens religiosas não servem
para nada, estão caducas, não as queremos.»
As leis!.. Mas estas leis não são
só para serem interpretadas por jurisconsultos, são
para serem sentidas por todos os homens públicos. (Muitos
apoiados.) Estas leis gemem, estas leis clamam, estas leis bradam, estas
leis cheiram a pólvora, estas leis escorrem sangue de
uma luta fratricida, - não parlamentar, porque nas
lutas parlamentares nunca há sangue escorrido; há-o
muitas vezes exaltado pela raiva ou congelado pelo
despeito! Estas leis fizemo-las nos, batemo-nos por
elas, defendemo-las debaixo da bandeira que arvoramos!
Estas leis levaram ao trono a dinastia da senhora D.
Maria II, que teve sempre um instinto finíssimo,
instinto feminino, dos princípios sobre que repousava
a sua dinastia porque nunca capitulou, dentro da
esfera do poder nem mesmo da das simpatias, com estas
invasões sorrateiras de influências eclesiásticas,
que para mim são suspeitas de serem contrárias ao
governo representativo.
Estas leis, estes princípios, e
outros de somenos importância, recordava o presidente
do conselho de ministros a mesma soberana, quando numa
representação disse àquela senhora:
«Respeitai os direitos constitucionais, por
segurança mesmo do vosso trono» - ameaça que hoje
se estranharia muito que se fizesse na boca do Sr.
Quadros. E essa representação era de um meeting,
de que era presidente o mesmo Sr. presidente do
conselho, e de que eu fui um indigno orador. E, no fim
de tudo, disse-se que o partido progressista praticara
um facto eminentemente e constitucional, digno de ser
imitado em todos os países onde existia sistema
representativo. Entremos pois neste caminho, porque
entramos no caminho constitucional respeitemos estas leis, porque vivemos por elas; são as
nossas leis, são o nosso coração. são a nossa
vida, são a nossa história!
Sr. presidente, estamos a 9 de
Julho! Faz hoje mesmo vinte e nove anos que, com essas
leis no pensamento, entrámos, sete mil perseguidos,
sete mil expatriados, numa cidade que ainda mais do
que nós as tinha no seu, porque vira nessas congregações
religiosas os instigadores e conselheiros de uma
tirania nefanda; porque vira sair dessas casas ou
corporações religiosas coortes de testemunhas
falsas, que tinham ido aos tribunais levantar com os
processos judiciais os patíbulos onde deviam cair as
cabeças daqueles que elas haviam marcado como
infestos ao seu predomínio! (Apoiados.) E quem
me diria que em uma assembleia, onde vejo alvejar
ainda tantas cabeças que tinham este mesmo
pensamento, onde vejo tantos braços que em sua defesa
se levantaram, se haviam de esquecer os perigos por
que passamos e o sangue que então se derramou!
MUITAS VOZES: - Não esqueceu, não
esqueceu!
O ORADOR: - Bem! Estimo bastante
ouvir a manifestação da maioria. Mas não basta
isso. É preciso que nos convençamos de que não
podemos salvar os objectos que veneramos, se não
reunirmos todas as nossas forças constitucionais e
morais para desfazer e contrariar
as intrigas e embustes, pelos quais se quer
repor outra vez no seu trono e predomínio estas
instituições que nós combatemos, destruímos e
desfizemos! (Apoiados.)
Sr. presidente, isto não é questão
de irmãs da caridade! Estão enganados.
É mais alguma coisa: e a questão das ordens
religiosas (apoiados) é a sua elevação ao
estado primitivo.
O
fanatismo religioso, querendo por meio duma
educação a seu modo desviar os nossos filhos dos
princípios e doutrinas que professamos, chama-lhes filhos
espirituais! Filhos espirituais! Como se eu
admitisse que algum filho meu fosse filho do espírito
de ninguém! (Risada geral.) A questão é
grave e delicada. e é necessário que não haja
flexibilidade nenhuma de espírito para a poder tratar
convenientemente. (Apoiados.) Com que arrogância
diz um padre: «Meu filho, filho espiritual, filho de
Deus e de mim, filho do meu espírito!» Filho de Deus
e da religião, sim, senhor! Filho de vossa senhoria,
de vossa reverendíssima, de vossa eminência ou de
você, que ousa ir adiante e entrar no limiar moral da
minha porta, não senhor! (Riso.)
Sr. Presidente, eu sou católico e
admito que todos os teólogos regulares ou
irregulares, leigos ou não leigos, inquiram os
quilates da minha religião. a sinceridade das minhas
crenças. Mas se fizerem iguais inquirições das
suas, hão de reconhecer que há uma razão suprema
que supre a escolha impossível neste assunto de
religião. Esta
razão suprema que supre a escolha da religião é a
tradição da família; porque o homem, quando vem ao
mundo, segue sempre a religião de seus pais. Eu sou
católico, porque meus pais e minha família eram católicos,
e isso bastava para eu preferir esta a todas as religiões,
por mais santa, clara e justa que tosse a sua
doutrina. Eu aconselharia sempre que se não
dispensasse nunca, na escolha de religião, a tradição
de família, e que ao dogma religioso se juntasse o
dogma dos nossos pais.
Da percepção das verdades supremas podemo-nos
desviar ou pela fraqueza ou pelo orgulho; e, no meio
destes desvios, a religião de família é uma
garantia, é um princípio de fé humana. Se o
religioso de bom senso
me perguntasse qual a minha religião, dir-lhe-ia: «Sou
católico». - «E qual a razão?» - «Porque meu pai
o era». Respondo
assim a todos os teólogos, a todos os
esquadrinhadores da minha consciência. (Apoiados.)
Sou inimigo das irmãs da caridade,
porque as considero como um ataque ao princípio da
família. (Apoiados.) A caridade atribuída a
uma certa instituição, com o piedoso fim de educar
as crianças e tratar dos enfermos nos diferentes países
da terra, é uma malícia ostentosa feita em nome de
Deus. Este cosmopolitismo não lhe parece necessário
nem útil. Um pai desvelado, no último quartel da
vida ou no vigor da idade, que tem todas as suas
esperanças em que seus filhos, ou filhas
principalmente, sejam o seu futuro, vê que as faces
duma se lhe vão descorando, vê que a fronte se lhe
inclina para a terra, vê-lhe a tristeza no rosto, e
inquire-a, interpretando por algum desregramento do
coração essa tristeza: «Que tendes, filha? que mal
vos preocupa o espírito?» «Nenhum, meu pai;
falou-me Deus, e a Deus entreguei a minha
vontade e espírito, que deviam ser vossos. Sou de
Deus, que me fez uma lima nas mãos dos seus obreiros,
como se vós não fosses o melhor obreiro. Sou de Deus
e vou em nome de Deus correr mundo, para limar as
asperezas da rusticidade, ensinando os ignorantes,
socorrendo os que sofrem, velando junto ao leito dos
enfermos.» E o pai há de deixá-la ir? Em nome de
Deus, não!
Eis como esses padres tratam de
atrair os corações dessas inocentes virgens.
Foi também em nome da religião que a inquisição
levantava com mão impenitente essas fogueiras onde
queimava as suas vítimas, e não só as suas vitimas,
mas até os santos instrumentos da doutrina de Deus,
os próprios livros da sua santa lei! (Apoiados. -
Vozes: - Muito bem.) Não se queima só, queimando
as carnes, carbonizando os ossos, queima-se apartando
do coração, desfazendo e levando para longínquas
paragens o que ele tem de mais caro! (Apoiados.)
Eu conheço o que pode haver de poético
e sublime nesta instituição das irmãs da caridade,
mas conheço também quanto nela há de arriscado e
perigoso, mesmo pelas eloquentes e calorosas palavras
com que o nobre e respeitável fundador desta instituição
descreveu as vantagens destes institutos e a sua
necessidade.
Depois de algumas considerações
ascéticas sobre o seu modo de vestir, trajar e comer,
que ainda hoje suponho que são rigorosamente
observadas, descreve ele os institutos das irmãs da
caridade do seguinte modo. (Leu.)
Mas no meio destas palavras saídas
da boca deste nobre e respeitável fundador, que
suspeitas, que escrúpulos de consciência, que nuvens
e que mil conjecturas se podem formar! Que perigos, e
que consequências gravíssimas se podem seguir!
Respeito os actos religiosos de S. Vicente de Paula:
mas a câmara não pode estranhar que eu empene todas
as minhas forças, que recorra a todos os meios, que
empregue a minha razão e inteligência para combater
esta doutrina, que julgo perniciosa ao sossego das famílias.
A câmara já sabe que eu sou adversário jurado
destas instituições.
A virtude da mulher é a modéstia
e o recato, junto de seus pais e debaixo das vistas da
sua família.
O padre Vieira, falando dos
governadores do ultramar, que já nesse tempo iam
encher-se de riquezas nas nossas possessões,
comparava-os com as nuvens (não sei se a figura filosófica
é bem cabida) que vão encher-se ao mar, e que
elevando-se ao firmamento vão despejar-se em longínquas
regiões. «Vinde cá, dizia ele, nuvens ingratas, que
viestes encher-vos aqui, e que levais o fruto que
colhestes para longínquas províncias.» Digo também
o mesmo. Virgem bela, que, educada debaixo das vistas
do vosso pai, ireis para ele o seu alívio, a sua
esperança, o seu contentamento e a sua congregação
religiosa, para que ides levar tão longe o fruto dos
exemplos paternos? (Vozes: - Muito bem, muito bem).
Acho desnecessária a instituição.
Pois há de ir uma irmã da caridade transportada em
vapor, em caminho-de-ferro, - para acudir aonde? Onde
está essa terra privilegiada de males e de doenças?
Onde não há doentes a tratar, crianças para
instruir ou velhos que precisem de ser consolados?
Para que é esta organização como a de um grande exército;
esta obediência as ordens dos superiores estas
marchas constantes para a América, da América para a
África, e da África para a Europa? Se isto se não
citasse, era bom. Mas tudo se cita, tudo se sabe, tudo
se reproduz no parlamento, tudo se escreve nos
jornais. Se Deus quer que a caridade seja tão oculta,
que a mão direita não saiba o que dá a esquerda,
para que é então decorar a cabeça das suas
sacerdotisas com um certo ornato, e cingir-lhes o
corpo com uma
certa e determinada fazenda, proclamando, festejando e
assinalando assim a caridade? (Apoiados. - Vozes: -
Muito bem.)
Eu queria que a caridade, podendo
ser, fosse invisível e as irmãs da caridade teriam
redobrado as suas virtudes se se vissem as suas obras,
sem nunca se saberem os nomes, ou se apontarem as
pessoas que as praticavam. A mulher, sobretudo das
altas classes, que vai com os pés mimosos costeando
as portas menos abertas à limpeza até cegar ao leito
do pobre, e que vai aí com a ignorância até da sua
família, envergonhando-se da sua própria virtude,
mas sempre fiel aos seus sentimentos. lembrando-se dos
sofrimentos dos seus semelhantes
essa mulher é mais cristã, mais senhora e
mais nobre que as irmãs da caridade. A mulher com uma
caridade verdadeira, sobretudo a mulher de uma alta
jerarquia, que ajoelha perante o leito mais intimo,
querendo praticar a caridade, não há de estar a
ver-se ao espelho das suas grandezas, nem a
recordar-se dos degraus do seu palácio; há de
esquecer-se de tudo isto, e lembrar-se unicamente que
está debaixo da mão de Deus e junto do povo que
nasceu do pó, pó como ela e como todos os grandes.
Esta é a verdadeira caridade.
A caridade, para mim, deve ser
livre, espontânea, (apoiados) instintiva,
isenta de toda a suspeita de vaidade humanas. A
caridade não adite recompensa, nem galardão, nem menção.
A caridade está toda dentro do coração do homem e
da mulher. O homem caridoso envergonha-se de que sejam
citadas as suas acções virtuosas.
Eu venero e respeito a instituição
das irmãs da caridade, venero os preconceitos donde
ela nasce, respeito as ideias erróneas que a
sustentam; mas acho que é exagerada e desnecessária,
e que não tem verdadeira consideração para com
sentimentos humanos que se devem respeitar.
A crença na virtude não dispensa o respeito
ao decoro público, assim como a religiosidade, no
sentido que lhe dão os teólogos, não dispensa o
culto externo; e o culto externo das irmãs da
caridade é pouco consentâneo com as formas, com os
costumes e com as prevenções da autoridade civil. Eu
prefiro a caridade que pode compreender o melhor serviço
de Deus e dos pobres, sem contudo ofender as
susceptibilidades humanas.
Mas, senhores, para que é tudo
isto? Nós temos duas associações, uma religiosa e
outra natural temos a paróquia e a família. Para que
havemos de entrar na questão escolástica da inteligência
de velhos estatutos, nem pôr em comparação diversas
escolas de caridade? Associemo-nos todos, cada um na
sua paróquia. A caridade em cada paróquia tem dois
chefes: o chefe da família para vigiar, regular e
acompanhar os actos de caridade dos diferentes membros
da sua família, e o pároco para ser o núcleo
religioso, o conselheiro, enfim o laço da caridade
humana com a caridade divina.
Eu também sou chefe de família e
caridoso (ainda que não é preciso ser casado para
ser caridoso); mas também tenho a minha família para
oferecer para esta reunião, e também tenho o meu pároco,
como todos o têm. Formemos sociedades de caridade.
Os melhores capitães de companhias
são aqueles que conhecem os soldados pelos números,
e que os conhecem não só pelos números, mas pelos
serviços que eles têm, pelos vícios a que são
dados; que sabem se são valentes ou não, se são
governados ou não, se têm pecúlio ou não têm.
Permuto eu uma caridade governada por estes princípios
não seria uma caridade muito mais solícita, muito
mais pronta, muito mais aproveitada, muito mais
discreta? Decididamente que era. E se pode haver a
relação circunstanciada, e anotada minuciosamente,
dos soldados de caridade que existem, por exemplo, na
Polónia, mais facilmente se pode obter com relação
às paróquias. Nós
temos um rol das pessoas que vão aos bailes, das que
jogam, das que vão ao Clube, das que vão ao grémio.
Tenhamos também um rol daquelas que são
necessitadas, dos recursos que têm, se são falsos
mendigos ou verdadeiros, se encobrem alguma coisa da
sua fortuna se têm parentes que se tenham esquecido
do dever do sangue, para os obrigar a socorrê-las.
Façamos a caridade assim, e creio
que facilmente se pode fazer. Por exemplo suponhamos
que a câmara vota que os institutos de caridade estão
perfeitamente satisfeitos, organizando-se as
sociedades de caridade com os chefes da família e com
o pároco em cada paróquia haverá algum cânon,
algum papa, alguma igreja, algum escrúpulo, alguma
doutrina, algum ministro estrangeiro mesmo, alguma
diplomacia. que se levante contra isto? Quando nos
viessem dizer «É
preciso que venham irmãs da caridade!» - nós
responderíamos: «Estamos todos feitos irmãs da
caridade, todos somos irmãs da caridade!» (Riso.)
Mas eu não queria merecer os risos da câmara nesta
ocasião, porque julgo isto extremamente razoável, e
isto, felizmente, já existe em Portugal. (Muitos
apoiados.)
A caridade é uma poesia do coração
e não admite regras; é como a poesia do sentimento,
que se lhe puserem ao lado os preceitos de Horácio, e
as três unidades de Aristóteles, perdeu-se o esforço,
fugiu o estímulo, morreu o génio. A caridade é uma
árvore imensa que cobre a humanidade toda, e que,
depois que foi regada com o sangue de Cristo, cresce
sempre na proporção do desenvolvimento do género
humano! Esta caridade vale muito mais que os bosquetes
recortados que só podem dar sombra às pessoas
mimosas que os cultivam, mas que não podem dar larga
sombra a toda a humanidade que sofre.
(Apoiados. - Vozes: - Muito bem.) E o
receio que eu tenho é este: é que, criando nos
oficiais públicos de um sentimento que até agora
todos nós temos tido, vamos matar o espírito
caridoso que é distintivo do nosso país. (Apoiados.)
As irmãs da caridade nasceram numa
época de bruteza, e de sentimentos menos dignos e
menos apurados de humanidade. (Apoiados.) Hoje
diz-se que a civilização moderna tem corrompido os
costumes, pois eu gosto muito mais da corrupção
destes tempos de agora, do que das virtudes do tempo
passado. (Apoiados.) Eu espero muito mais
destes princípios, que se dizem subversivos da
moralidade humana, do que espero daqueles que então
predominavam numas certas classes, que se assenhoravam
das consciências, julgando que eram coisa sua, (apoiados)
e também dos bens que possuíam, julgando que lhes
pertenciam. (Apoiados.) O sentimento nacional
de caridade é inesgotável entre nós, (apoiados)
está estabelecido em todas as classes e em todas as
localidades, (apoiados) por todos os modos e
maneiras; e não quero que haja uma corporação
especial para este fim, (apoiados) e é preciso
que a não haja, para que não esmoreça esse
sentimento com distinções dadas a uma classe que a não
merece, nem é digna de galardão porque foi
caritativa.
Uma mulher com quatro filhos que
choram de fome, que distribua, apesar disso, metade do
seu tempo, do seu carinho e do seu pão com uma
vizinha desgraçada, não gosta da diferença que se
faz da sua classe, que é dirigida pelo sentimento
natural de beneficência, quando vê uma outra
abastada, honrada, elogiada, correndo de carruagem,
pregoando a caridade. (Apoiados.) Eu não
participo desses preconceitos e reparos que se fazem,
porque a caridade se exerce de carruagem mas é
preciso que quem assim a exerce se lembre, não do
grande salto que deu para descer da carruagem, e
entrar na casa do pobre, mas do salto que deu para
subir a ela, porque a sua posição lhe trouxe o dever
de socorrer os desvalidos.
Eu tenho por mim uma grande
autoridade tenho
por mim o próprio instituidor das irmãs da caridade,
S. Vicente de Paula. E ainda que não me achasse
fortalecido com o testemunho de tão grande
autoridade, eu, não obstante, atrevia-me a emitir a
opinião que tenho, e que é a mesma do instituidor.
A caridade quer toda a atenção
aos preconceitos públicos, e respeito às opiniões
estabelecidas. Não nos deixemos ser cegamente levados
deste sentimento, crendo que não encontra obstáculos,
que lhe tolham os voos. As irmãs da caridade são uma
boa instituição, mas podem prejudicar o país pelas
considerações que já fiz, podem influir no
sentimento público, podem ofender a caridade
particular, podem quebrar o nexo que liga as pessoas
votadas a fazer o bem, podem ser um veículo de
indisposições, podem tolher a liberdade de acção
ao governo do país, enfim podem trazer mil
inconvenientes que é mister evitar. E note-se que eu
neste ponto não falo só a meu sabor, falo pela boca
de S. Vicente de Paula.
Sr. presidente é sabido que o
instituto de S. Vicente de Paula nasceu em Paris nos
salões mais distintos, mais ricos, da mais elegante
sociedade, porque as grandes virtudes, pelo seu carácter
moral e humanitário, não nascem privilegiadas mas são
de todas as condições e entram com igual
recolhimento tanto na choupana como no palácio. As
senhoras da sociedade mais distinta de Paris
lembraram-se e combinaram entre si estabelecer esta
instituição, e para esse fim pediram a S. Vicente de
Paula o seu conselho, que lho deu na seguinte
resposta. (Leu.)
Ora, Sr. presidente, depois disto não
tenho mais nada que dizer, (apoiados) senão
que ofereço aos Srs. ministros esta resposta de S.
Vicente de Paula, para que a metam em alguma nota
diplomática, (riso) se acaso têm sido ou
poderem ainda ser obrigados a enviar alguma sobre esta
questão. Eu dou-lhes de conselho que copiem
textualmente esta resposta, que é a melhor que podem
dar ao governo de Paris, quando os arguirem de terem
dissolvido por um decreto esta instituição), à
semelhança de outras que pelo mesmo modo e por este
meio foram dissolvidas em França, sem que se
levantassem as dúvidas e questões que se têm aqui
levantado. É porque a França é a França, (apoiados)
e Portugal é Portugal! (Apoiados.) É que, nas
nações pequenas, não se avalia a sua grandeza senão
pela grandeza de seus ministros. (Apoiados.) E
esta é a grande dificuldade de governar em pequenos
estados; porque quanto mais pequeno é um estado mais
importantes devem ser os homens que estejam à frente
dos negócios políticos.
E já que falamos neste Ponto, eu
ofereço aos Srs. ministros exactamente um discurso
dum ministro francês, para eles poderem fundamentar a
nota que devem dirigir a esse governo.
O ministro já disse que isto era uma questão
diplomática; se o não disse aqui, disse-o em outra
parte a sua maioria, e eu creio que era melhor tê-lo
dito nesta casa, porque, para assuntos desta ordem, o
governo sabe que não há maioria nem minoria. (Apoiados.)
Pois então em resposta a essas notas os
ministros podiam dizer: «Em casos semelhantes,
sucedidos em França, as razões são todas a nosso
favor.»
Tinham-se admitido em uma parte das
províncias francesas uns padres belgas da ordem
redentorista. A ordem é distinta, sua instituição não
sei qual é, mas o seu fim era não menos religioso
que este, porque foi instituída para ensino da
mocidade e para criar educadores populares; era uma
espécie de ensino às classes mais inferiores das
aldeias. Foram mandados estes padres para lá, porque
ali havia uma parte da população flamenga, e estes
falavam flamengo.
Para lá foram mandados os
redentoristas com o fim de educar o povo, porque a
linguagem era a mesma. Para cá mandam-nos as irmãs
da caridade que falam francês, porque as nossas crianças
todas falam francês! (Riso.) Em França era
esta a questão suprema. Não era uma questão canónica,
nem religiosa, era uma questão de língua; e não
haviam as almas de ficar sem o pasto espiritual, visto
que não havia outros padres que falassem o flamengo.
Cá é ao contrário: visto que somos portugueses,
venham franceses para ensinar os nossos filhos.
Mas, depois, alguns dos padres
desmandaram-se, e não sei mesmo se cegaram a cometer
alguns crimes; os criminosos foram julgados e
sentenciados, e o governo entendeu que devia proibir o
seu instituto.
«Os padres (disse alguém)
cometeram alguns crimes, não há dúvida; mas mandar
o governo acabar com a congregação só porque alguns
cometeram crimes!» Que respondeu a isto Mr.
Billault? Disse: «Os hábitos destes religiosos
podiam recordar as faltas que tinham cometido alguns e
por isso julgamos que era do decoro e obrigação do
governo tirar estes hábitos de diante dos olhos do
povo.»
Só nós é que não podemos dizer
isto; se o disséssemos, éramos um país selvagem, e
tão selvagem que nos admiramos de que se façam eleições
sem haver pancada! Então conserve-se o hábito, e não
se extinga a congregação, embora o povo a não veja
com bons olhos!
Os padres também eram bons, e
acusaram-nos; também prestaram serviços, e
dissolveram-nos.
Pois este caso é o nosso, exactamente o nosso.
E, assim, nós pedimos ao Sr. ministro que faça uso
deste facto, que dê a este acontecimento toda a
importância que ele tem, e o precedente alegado nesta
exposição será um meio de converter todas as
reclamações francesas em nosso favor. O Sr. ministro
da fazenda ri-se, porque acha todos estes argumentos débeis.
O SR. MINISTRO DA FAZENDA - Não.
O ORADOR - Pois era um serviço bem
feito; o ministro dos negócios estrangeiros, em França,
encarregou-se de tratar todas as questões, uma por
uma, em todas as hipóteses que efectivamente se dão
entre nós. (Apoiados.)
Ainda me resta dar parte à câmara
de um sucesso histórico. Nós também temos um santo
apostólico, e é questão grave a decidir à face dos
documentos qual será a personagem mais cristã, mais
piedosa e mais perseverante - se o santo francês, se
o santo peninsular. É matéria contestada.
O nosso S. João de Deus é um
santo do nosso bom Alentejo: um santo ali de
Montemor-o-Novo, creio eu... (Vozes: - Muito bem.)
É nacional, e foi o fundador da ordem das irmãs da
caridade.
Ora o santo foi muito menos feliz,
muito menos amado nas suas empresas, porque saiu da
sua casa e depois de grandes aventuras, tendo servido
amos que se não julgavam satisfeitos com os seus
serviços, tendo servido nas armas de uma nação, então
beligerante, e não se dando bem naquele género de
vida, encaminhou-se à Espanha. Em Granada,
consternado ante o aspecto asqueroso dos pobres
abandonados às imensas moléstias e às faltas de
todo o abrigo (porque os pobres enchiam as ruas e
estavam amontoados uns sobre os outros) passou por uma
rua e, vendo escrito numa porta casa para alugar,
- com uma resolução sobre-humana, não tendo nem com
que se cobrir, e reduzido a ir todos os dias aos
campos circunvizinhos fazer molhos de lenha para
vender na praça, disse «Alugo-a eu!» E foi, ajudado
ou só, buscar os pobres que encontrou, e levou-os
para lá. E tal era o seu fervor, tal foi a sua
perseverança, tal foi, sobretudo, a sua coragem para
resistir aos apupos, aos escárnios, aos maus tratos
da populaça, que pouco a pouco constituiu um
hospital. Não
faltaram recursos
e conta a história que uma vez, indo ele à
praça comprar o necessário para o seu
estabelecimento, encontrara na volta um ente
sobrenatural que vigiava os doentes. que ele
temporariamente tinha abandonado. Nunca se pode saber
ao certo quem era, mas suspeitou-se que fora o arcanjo
S. Rafael…
Eu, senhores, como católico,
simpatizo mais com o catolicismo milagreiro do que com
o catolicismo filosófico; e portanto gosto mais do
nosso catolicismo peninsular, salvo as fogueiras, que
as houve por muita parte, do que com o catolicismo
francês, que tem muitos laivos de filosofia mundana,
e que me parece mais uma escola filosófica rebocada
de religião, do que um grémio verdadeiramente católico.
(Deu, a hora.)
Creio que deu a hora. Estou
cansado, não posso acabar hoje, e tenho que dizer
duas palavras ao Sr. ministro dos negócios
estrangeiros sobre a questão da Itália. Por isso peço
para continuar amanhã.
(O orador foi cumprimentado de
todos os lados da câmara.)
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