Nos capítulos anteriores,
vimos essencialmente as diferentes fases da extracção do azeite, para as
quais concorrem aparelhos importantes, tais como o moinho e os sistemas
de prensagem e decantação. Mas muitos outros elementos fazem parte,
senão de todos os lagares, pelo menos de uma boa parte deles, sendo
alguns indispensáveis para a laboração oleícola.
Entre os elementos que
iremos ver ao longo deste capítulo, figuram a fornalha com a respectiva
caldeira, os quartos para os mestres e pessoal que trabalha no lagar, a
bagaceira, a centrifugadora e o inferno ou poços de decantação. Existem
ainda muitos outros objectos indispensáveis, susceptíveis de permitir um
capítulo interessante para um futuro trabalho..
FORNALHA E CALDEIRA
Para
um bom trabalho de extracção do óleo da azeitona há uma condição que, no
dizer de António do Casal(1)
é indispensável: a temperatura constante de 16 graus. E como em Portugal
não se pode adiar o fabrico, como faziam os antigos, para dias mais
quentes, daqui resulta que todos lagares, durante o período da laboração
– situável entre os meses de Dezembro e de Fevereiro, conforme as
regiões –, necessitam de possuir uma fornalha que aqueça simultaneamente
o ambiente e a água na caldeira, tão necessária para as duas fases de
extracção: a prensagem e a decantação.
Mas é também sabido que, se o calor é
fundamental para a extracção do azeite, os fumos libertados pela
fornalha podem danar-lhe a qualidade, pelo que, ao longo dos tempos, as
regras relativas à fornalha e caldeira têm sido várias vezes motivo de
reflexão e de advertência.
No
século XVIII, Dalla Bella(2)
refere que a fornalha poderá servir não só para «aquentar
a água», mas também como estufa, fornecendo um conjunto de normas
que constam das regras XVIII e XIX, onde refere que a «a caldeira
deve ser colocada de tal sorte, que seja cómoda ao lagareiro, mas que
dentro do lagar não entre fumo algum do fogo que a aquenta; porque o
fumo e a ferrugem bastam para alterar a perfeita qualidade do azeite».
É por esta razão que ele aconselha que «a boca da fornalha, dentro da
qual se introduz a lenha, deverá ser da parte oposta ao muro que encerra
o lagar, e provida de uma boa chaminé, pela qual o fumo possa livremente
sair».
Apesar de todas
as recomendações e regras elaboradas(3)
para uma melhor qualidade do azeite, a verdade é que, nos lagares
tradicionais, como tivemos oportunidade de verifica
de visu, a fornalha com a respectiva
caldeira fica, salvo raras excepções, dentro da sala principal, variando
a sua localização de lagar para lagar, como em breve iremos ver. No
entanto, em todos eles, se a localização é variável, é pelo menos
constante o facto de ficar numa zona próxima, que facilita as operações
para as quais a água quente é indispensável: a prensagem e a decantação.
Antes de apresentarmos os casos mais
significativos que encontrámos em diversos lagares tradicionais, vejamos
o aspecto linguístico.
Pelo
facto de, no conjunto dos objectos do lagar, o que sobressai é
geralmente a fornalha e não a caldeira que lhe está colocada por cima,
na maioria dos lagares, quando procurámos saber do que se tratava, o
elemento que os informadores nomeavam primeiro era a
fornalha, nome que deverá ser comum a
todo o território(4).
Apenas em um lagar do distrito de Coimbra o informador disse ser uma
bailarina(5),
termo que se aplica a um tipo específico de aparelho de
aquecimento, muito diferente dos sistemas tradicionais que encontrámos
nos antigos lagares de vara. Durante as várias explicações, só depois de
referida com certa minúcia a fornalha e de nos ter sido indicado qual o
combustível utilizado vinha a referência à
caldeira.
Relativamente ao combustível, além de lenha, era utilizado em alguns
lagares o próprio bagaço da azeitona. A este respeito é curiosa a
informação que se lê no
Regimento do lagar de Azeite(6)
da cidade de Coimbra, que proíbe a utilização da
baganha. Em virtude de não permitir
um aquecimento suficiente da água, necessário para que «os azeites
fiquem bem escouçados, e naquela perfeição que cumpre, e sempre fez»,
a baganha só podia ser utilizada para ajudar a acender o fogo.
A
fornalha é, pois, o elemento que mais sobressai. Enquanto a caldeira se
reduz a um recipiente metálico de formato cilíndrico, de dimensões
relativamente reduzidas e embutido, que passa quase despercebido, a
fornalha constitui, nos lagares tradicionais, uma estrutura de grandes
dimensões, construída geralmente com blocos de tijolo cimentados e
exteriormente rebocados. É uma estrutura formada por diversas partes:
fornalha propriamente dita, onde é queimada a lenha, e tendo por baixo
um depósito para a cinza; caldeira, embutida na estrutura e colocada por
cima, recebendo directamente as chamas; uma chaminé para tiragem dos
fumos, somente existente em
alguns dos muitos lagares visitados.
Feita a apresentação genérica da fornalha
com os respectivos constituintes, vejamos alguns dos casos mais
característicos que tivemos a oportunidade de registar.
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Fig. 4: Canelas de Cima. |
Fig. 45: Canelas de
Cima. |
Fig. 46:
Canelas de Baixo. |
Dos lagares mais primitivos por nós
visitados destacam-se os de Canelas de Cima e Canelas de Baixo, ambos no
concelho de Arouca (dist. Aveiro), já anteriormente referidos nos
capítulos I e II e documentados nas figuras 4, 45 e 46. De formato
rectangular, com paredes feitas de blocos de pedra sobrepostos – o de
canelas de Baixo – e de placas de ardósia – o de Canelas de Cima –, sem
qualquer vestígio de cimento a uni-las e com telhados feitos de placas
de ardósia, as fornalhas ficam a um canto do lagar.
Em
Canelas de Cima (ver fig. 45
▲), a fornalha está a um canto do
lagar, tendo à esquerda um enorme pio rectangular de granito para a água
e, à direita, a prensa da vara. Encontra-se entre a parede e a zona mais
elevada, cerca de um metro acima do nível do solo, onde se efectua o enseiramento e prensagem. Por cima da fornalha, uma grande caldeira
permite que a água seja tirada durante as operações de caldeamento por
meio de um
coco de
metal. A fornalha não possui chaminé, escapando-se os fumos
pelos
interstícios do telhado.
No lagar de Canelas de Baixo, o sistema
de aquecimento consegue ser ainda mais rudimentar que o anterior, como
se pode concluir pela observação da figura 140
◄. Também ao
canto do lagar, é uma construção muito rudimentar. Se no lagar anterior
as paredes da fornalha e caldeira eram revestidas de argamassa ou
cimento, aqui são apenas formadas por largas placas sobrepostas de
pedra. Do mesmo modo, o fumo invade a parte superior do edifício, saindo
pelas frestas do telhado.
Qualquer um dos lagares, se fosse
visitado por Dalla Bella, suscitaria as suas críticas e seria
seguramente utilizado como exemplo do que não se deve fazer em prol de
uma melhoria da qualidade do azeite.
Ainda no mesmo distrito e concelho, o
lagar de Vila Viçosa, construído com blocos sobrepostos de granito sem
qualquer argamassa, apresentava o conjunto fornalha-caldeira dotado com
uma chaminé de tijolo de secção quadrada, que se erguia encostada ao
canto das paredes.
Dos
muitos lagares de vara visitados no distrito de Coimbra, vamos analisar
apenas seis(7),
um dos quais só pudemos conhecer indirectamente, quer através de
fotografias cujos negativos nos foram cedidos, quer das palavras do
informador que nele trabalhou. Trata-se do lagar das Carvalhosas, na
freguesia de Torres do Mondego, lagar que, no dia 6 de Agosto de 1969,
procurámos em vão.
Nesse dia, munidos de gravador portátil
de cassete, pasta, tripé, máquina fotográfica e duas fotografias obtidas
a partir de negativos cedidos pelo senhor Carlos Alberto Barbas,
delegado da então Junta nacional do Azeite, deslocámo-nos ao lugar das
Carvalhosas, pequena povoação a cerca de três quilómetros de Coimbra,
mesmo em frente à povoação de Torres do Mondego, na margem esquerda do
rio. A penosa deslocação para esta aldeia teve de ser feita a pé, pelas
catorze horas, com todo o material a tiracolo e debaixo de um sol
escaldante.
Logo à entrada da povoação, duas mulheres
informaram-nos que o lagar há muito tinha sido desmantelado e
transformado, mas que, apesar disso, ainda podíamos falar com o senhor
Vieira, que lá trabalhara durante muitos e bons anos e que nos poderia
descrevê-lo e explicar o que pretendíamos.
Foi em casa do informador, sentados na
semi-escuridão de uma fresca cozinha, que mostrámos as duas fotografias
que possuíamos do lagar. Causaram uma certa comoção no senhor Manuel
Vieira, mas tiveram o condão de lhe avivar memórias de um passado já um
tanto remoto.
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Figura
150: Reconstituição da planta do lagar das Carvalhosas, P.
286, freg. Torres do Mondego, conc. Coimbra (ver nota 8) |
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Figura
151: Aspecto da vara e fornalha do lagar das Carvalhosas, P.
286, freg. Torres do Mondego, conc. e dist. Coimbra (negativo cedido
por Carlos A. Barbas). |
No
seu tempo de laboração, o lagar das Carvalhosas(8)
era um dos melhores de vara existentes na região. Era uma sala ampla
rectangular (ver figura 150), de chão cimentado e paredes altas, bem
rebocadas e caiadas. A um dos cantos, um enorme moinho de três galgas,
com as paredes do vaso rodeadas de um largo passeio para o boieiro, moía
de cada vez uma grande quantidade de azeitona, graças à força paciente
de um único boi. Na metade oposta, a zona de enseiramento e prensagem,
onde existia uma única vara, cujo peso encaixava numa concavidade
circular do chão. A meio da vara,
três degraus permitiam o acesso à plataforma
de enseiramento. Junto delas e amparando a vara, as alçapremas
(‘duas barras verticais de madeira’) separavam o alguerbe da
tarefa. Encostada à tarefa, erguia-se a estrutura em alvenaria
constituída pela fornalha e caldeira (ver fig. 151), dotada de uma larga
chaminé, cuja tiragem, segundo o informador, era perfeita, impedindo que
fumos nefastos se espalhassem pelo edifício.
A
conversa com o senhor Manuel Vieira prolongou-se por umas duas horas bem
puxadas, durante as quais falámos pormenorizadamente de todos os
aparelhos do lagar, das actividades aí desenvolvidas e também, como
complemento, da apanha da azeitona e costumes locais. E foi ao fim de
uma tarde que regressámos, descendo por uma quelha bastante íngreme.
Atravessámos a vau o Mondego, cuja água nos dava quase pela barriga. E
foi com as calças ainda húmidas, que o forte calor de Agosto ainda não
tinha tido tempo de enxugar completamente, que, nas Torres do Mondego,
apanhámos a camioneta de
regresso a Coimbra.
Os cinco restantes lagares, que
intencionalmente separámos do das Carvalhosas, distinguem-se deste não
só pela qualidade do edifício, mas sobretudo pelo facto de possuírem
duas prensas de vara. Tirando estas diferenças, o plano é idêntico ao
que apresentámos na figura 150. Se colocarmos uma prensa de vara por
cima da tarefa da direita, identificada com o nº 4, obteremos
rigorosamente o plano dos lagares, salvaguardadas as eventuais
diferenças relativas às áreas dos edifícios.
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Fig. 132:
Lagar do Pereiro, P. 262, freg. Souselas, conc. Coimbra. De cada
lado da fornalha, as duas tarefas, entre a zona de enseiramento e o
fuso da vara. |
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Fig. 152: Aspecto do
lagar de Varrelas, freg. Carvalho, conc. Penacova., dist. Coimbra.
Ao centro, entre as tarefas, a fornalha, dotada de uma chaminé. |
Nos
cinco lagares de duas varas, a
fornalha, com uma altura quase igual
à que vai desde o solo ao nível da zona de enseiramento, fica situada
entre as duas tarefas, que ficam por baixo das varas, entre as zonas de
enseiramento e os fusos, como se documenta na figura 132 (pág. 298) e
152. À excepção dos lagares de Varrelas (fig. 152) e da Mata (fig. 74,
pág. 172), não existe chaminé, pelo que o fumo da fornalha invade a
parte superior dos edifícios, saindo para o exterior pelos interstícios
dos telhados, dado que não existe um forro que isole a sala de laboração
e impeça a fuga do calor, tão importante para uma boa extracção do
azeite. Em todos os lagares, facto que é bem visível nas imagens que
apresentamos, estão uma vez mais plenamente contrariados os conselhos de
Dalla Bella. Em vez da boca da fornalha estar na «parte oposta ao
muro que encerra o lagar e provida duma boa chaminé», encontra-se em
pleno centro da sala onde é extraído o azeite e muito perto dele, entre
as duas tarefas onde se processa a decantação e depuração.
No distrito da Guarda, região onde o
granito e a oliveira são elementos frequentes da paisagem, as fornalhas
que encontrámos, em alguns lagares mais antigos, eram feitas de grandes
blocos de pedra sobrepostos.
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Fig. 153: Aspecto do que resta do moinho e fornalha do lagar
de Santo António, P. 207, freg. S. Pedro, conc. Celorico da Beira,
dist. Guarda. |
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No
arruinado lagar de varas de Santo António, P. 207, a fornalha ficava
encostada à parede, ao lado do moinho de uma galga, accionado por meio
de uma roda de água. De secção aproximadamente quadrada, era constituída
por três paredes formadas de blocos de granito, encostadas à parede do
edifício, e tinha uma ampla abertura rectangular, por onde era
introduzida a lenha. Na parte superior ficava embutida a caldeira, onde
era aquecida a água para «escaldear»
o azeite.
Fornalha parecida com a do lagar de Santo António encontrámo-la no lagar
de prensas hidráulicas de Vilhagre, P. 211 (freg. Vide-entre-Vinhas), no
mesmo concelho. Mas neste a fornalha, de maiores dimensões, tinha sido
construída com enormes blocos graníticos cimentados. A fornalha
propriamente dita ficava a cerca de um metro de altura do solo, tendo
por baixo uma zona onde caíam as cinzas e brasas pequenas, que eram
retiradas para o exterior por meio de uma espécie de rodo de ferro. Com
elas eram aquecidas, junto à fornalha, grandes panelas esféricas de três
pés, para preparação das
refeições. Ao contrário de Santo António, a fornalha estava dotada com
uma chaminé para libertação dos fumos. É muito provável que a fornalha
do arruinado lagar de Santo António também possuísse uma chaminé.
Todavia, quando o visitámos, o seu estado de ruína ia já bastante
avançado. Há muito tempo sem telhado, apenas os elementos mais
resistentes continuavam a fazer frente à fúria destruidora das chuvas e
do tempo(9).
Fornalhas de secção quadrada, com cerca de um metro de altura e também
construídas de granito, foram por nós encontradas em lagares do distrito
do Porto, em Cadeado, no concelho de Baião, e em Fundo de Vila, P. 57,
no distrito de Amarante. No lagar de Cadeado, a fornalha está encostada
à zona de enseiramento, ficando o seu topo com a caldeira coberta por
uma tampa circular de madeira alguns centímetros acima do nível da zona
de enseiramento, tal como se pode observar na figura 143
▼. À
semelhança de outros lagares tradicionais, não possui chaminé. No lagar
de Fundo de Vila, a fornalha
com a respectiva caldeira ocupa o centro do lagar, situando-se entre
o
moinho e a zona de enseiramento. Dela é visível parte na figura 57
▼.
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Figura 143:
Lagar de Cadeado |
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Figura 57:
Lagar de Fundo de Vila |
Terminamos este aspecto do nosso trabalho
com uma breve referência a um dos sistemas de aquecimento de água, que
encontrámos em lagares de prensas hidráulicas.
Apresentamos unicamente, como exemplo, o caso do lagar de cerejais, P.
90, no concelho de Alfândega da Fé, distrito de Bragança. Aqui, a
fornalha e caldeira para aquecimento da água são constituídos por um
cilindro metálico com um diâmetro ligeiramente inferior a um metro. Na
parte inferior fica a secção de aquecimento, formada pela zona onde arde
a lenha, por cima, e o cinzeiro, por baixo. Sobre esta parte, está o
reservatório cilíndrico da caldeira, constituindo com a zona de
combustível um coluna cilíndrica que se ergue a uma altura razoável. A
tiragem do fumo faz-se por um cano
metálico de reduzido diâmetro, situado na
parte posterior do aparelho. O facto de todo o conjunto
fornalha-caldeira ser metálico permite que o calor irradiado pelas
paredes aqueça o ambiente do lagar, tornando a temperatura interior
amena e favorável à extracção do azeite.
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