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Fabrico Tradicional do Azeite em Portugal (Estudo Linguístico-Etnográfico), Aveiro, 2014, XIV+504 pp. ©

 

VIII

SISTEMAS DE DECANTAÇÃO

 

C) – ESCALDAR E SANGRAR AS TAREFAS: REGISTOS

Se na alínea anterior tivemos a oportunidade de evocar actividades a que nunca antes assistíramos, posteriormente pudemos observar e fotografar essas actividades em diversos lagares, registando em fita magnética os diálogos com os mestres que as realizavam. Não vamos agora transcrever todos esses diálogos. A descrição anterior é suficiente para dar a conhecer estas duas operações. Iremos apenas registar, muito brevemente, um ou outro caso mais significativo.

 

 
  Figura 148: Operação de sangrar as tarefas no lagar da Mata, P. 297, freg. Vila Nova do Ceira, conc. Góis, dist. Coimbra.  

Um dos lagares visitados que nos permitiu uma observação mais minuciosa e um registo sequencial de todas as actividades foi o lagar da Mata, P. 297, já várias vezes referido nos capítulos anteriores. Acerca do sangrar das tarefas, operação documentada na figura 148, passamos a transcrever parte do diálogo travado com o mestre:

«– Para que é esta varinha aqui [sobre o bordo da tarefa]?

Isto? Esta bara é com qui a gente bê adonde anda o azeite e a água. A gente chama-lh'as borras. E com isto é qu'a gente bai, apanha aquele carocinho, porque é assim que o fulano se tem que derigir, quando não, não sabia adonde estaba o azeite sem nada.

– Mas para que precisam de saber a altura do azeite?

Porque a gente não o pode medir nesta altura [isto é, quando está ao nível do colo]. O azeite pertence ficar deste colo p'ra cima.

– Há mais alguma coisa para baixo do colo?

Há outra igual, pouco menos. Isto é tudo ligado, é tarefa.

– E como tiram a água da tarefa?

É por aqui. Tem um buraco imbaixo e òpois a gente destapa, tem uma espichas, uma espicha, e adepois é qu'a gente empurra p'a dentro e depois a água [sai. Em seguida] solta aquilo e aquilo é que tapa.

– Mas a espicha fica pelo lado de dentro?

É metida aqui por dentro.

...   ...   ...   ...   ...   ...   ...   ...

– Quanto tempo demora o azeite a separar-se da água?

Quatro, cinco horas. É conforme.

– E fica pronto a ser medido?

Fica sim.

– E não misturam aqui água a ferver?

Ah, pois, misturemos. É para o azeite ficar mais bem apaladado. Às bezes sempre tem um paladarzinho ò berde, qu'àzeitona este ano, alguns andam àpanhar berde e àzeitona mais ou menos o azeite, tem às bezes um gosto ò berde. E é por causa disso, qu'a água tira-lhe muito acidez e mesmo enxuga o baganho (...).» (Ponte da Mata, P. 297, freg. Vila Nova do Ceira, conc. Góis, dist. Coimbra).

 

 
  Figura 149: Operação de escaldar as tarefas, no lagar de Fornos do Pinhal, P. 78, conc. Valpaços, dist. Vila Real.  

Nos excertos do diálogo, que intencionalmente saltámos a meio para evitar repetições desnecessárias (vd. excerto que falta na pág. 325), encontramos explicada a razão da necessidade de sangrar a tarefa e uma explicação para o escaldar do azeite. Segundo o informador, além de facilitar a depuração do azeite, a água quente permite que ele fique mais bem apaladado, perdendo o gosto ao verde.

Outra explicação pormenorizada sobre a utilização da vareta nos lagares com tarefas de barro foi-nos dada pelo informador do Dianteiro, P. 256, no concelho de Coimbra. Já anteriormente transcrevemos parte do diálogo aqui travado, quando vimos a explicação sobre a maneira como ele desviava o azeite e as águas que escorriam das seiras para uma ou outra das duas tarefas de barro (vd. págs. 329 a 331). Agora, para terminarmos este capítulo, vamos transcrever outro excerto onde nos é explicada a maneira como o mestre sangra a tarefa, explicação que vem reforçar a que ouvimos no lagar de Souselas.

Intencionalmente, a transcrição inicia-se na parte final da explicação dada pelo mestre sobre a maneira como são caldeadas as seiras:

«(...) É precisamente qu'i a gente põe águ'à freber p'ra depois a águ'à freber escald'àquilo tudo, puxa, as olhas pegam log'a cair aqui no alguerbi para ir p'à talha. E depois da talha, 'stá o mestre im cima c'uma piquena vareta a desconhecer a água do azeiti, porque dá um sinal.

– Não fica misturada a água com o azeite?

A água fica com azeite. O que é, água é mais pesada, bai pó fundo. E o azeite é mais lebe, fica por cima.

– Separa-se?

Justamente. Inquié a gente conhece c'um a bareta, porque adonde for, a gente peg'àssim na bareta, a procurar. Adonde for azeiti, é mais lebi e q'ando chegamos abaixo à água a bareta prende. É ness'altura que a gente conhece onde é qu'está a água. Depois, há aqui im baixo um torno, o senhor está a ber aqui? O tipo está aqui assim, o mestre agarra nesta bareta, peg'assim, peg'à cair. E [o mestre começa a fazer um movimento com a vara, em cruz] a gente pegamos assim. De maneira que isto aqui é muito mais largo do qu'é p'ra baixo, porqu'isto p'ra baixo bai instreitar. É um cântaro, é um funile. Depois a gente peg'à prucurare. Se aqui a gente, o azeite instando isto cheio aqui, é claro, nós temos ter um meio de basar. Porque se nós...

– Tirar-lhe a água?

Pois, mas s'a gente, porqu'acolá cuntinua sempr'a correr. E isto enche. P'r'ond'é qu'à dir? A gente tem aqui baixo um torno, aqui...

– Um torno?!

Pois, aqui um buraco e tem aqui um torno; e a gente bai, impurra p'ar dentro o buraco, o torno, e a água sai e caminha por a ribeir'àbaixo. Tá compreender?

– Isso tem outra talha?

Não senh... pois, tem uma talha, por baixo desta tem outra, mas, mas isso não chega... isto aqui não é a base, isto aqui, isto aqui é só... o que interessa ò senhor é preguntar o meio de vasar, num é?

– Como é que fazem, então? está o mestre aí?

Não, o mestre 'stá aqui im cima. E o mancebo qu'está, que é criado, chama-se criado [está em baixo, acocorado, como se documenta na figura 148]... O que é mestre está sempre assim aqui im cim'à procurar... Bai procurando e bai bendo. Isto bai abatendo, bai arriando porqu'istá aqui a sangrar. Está um aqui àbrir as goelas a isto e a águ'à sair pru baixo, porqu'a água está no fundo do azeite e o azeite 'stá por cima. E o mestre, qu'é mestre, chama-se mestre, 'stá continuando assim [a cortar o azeite com a vareta] a procurar. Im vendo qu'está lá munto p'ra baixo, já a chegar, porque s'a gente deixa ir o azeite p'r'àli [para baixo do colo da tarefa] bai-s'imbora e a gente nunca mais o bê. Bai junto c'ua água. E é preciso o mestre ter uma prática do qu'está a fazer. Conhecer a água do azeiti. E p'ra isso mesmo como o mestre conhece o qu'está a fazeri, está a mandar um que num sabe, que tem prática ali a empurrar o rolho e tapari e puxari e tal, isso qualquer um. Agora o qu'está aqui im cima é que tem o segredo, porque se deixa ir p'ra baixo munto pó sito, cumbém sempre deixar a talha, eu não sou mestre, mas no meu azeite ninguém cá mexi. (...)» (Dianteiro, P. 256, freg. Torres do Mondego, conc. e dist. Coimbra).

 

 

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