Uma
Questão de Felicidade
Dei hoje a
minha segunda aula deste ano a uma turma do nono ano, onde,
embora predominem as raparigas, mesmo assim ainda existem nove
rapazes, cujas idades oscilam entre os treze e os dezasseis
anos. Após a elaboração do sumário da aula anterior, que
me serve muitas vezes como forma de articulação entre as
aulas, pedi a toda a turma que prestasse atenção ao texto
que íamos passar a ouvir.
A turma ficou
silenciosa. Carreguei na tecla do gravador e uma música
melodiosa, tendo como instrumento central o piano, fez-se
ouvir, ajudando a criar um ambiente agradável e propício à
actividade pretendida. Ao mesmo tempo, um dos miúdos,
espevitadito, por sinal, mas não irreverente, com gestos
solenes, simulava sobre a carteira o percurso ágil dos dedos
ao longo do teclado do piano. Achei graça ao miúdo, mas nada
disse, fazendo como se de nada me tivesse apercebido, tanto
mais que a turma se mantinha atenta e em profundo silêncio.
A pouco e
pouco, a música começou a perder-se ao longe, com os acordes
do piano sobressaindo cada vez mais distantes, para dar lugar
à pessoa que emprestara a voz a Sebastião da Gama. Às
primeiras palavras, extraídas do Diário deste
professor e escritor, uma aluna abre ostensivamente o caderno
diário, chamando a atenção das colegas para o texto que
toda a turma já possuía, quebrando a magia do momento.
Desliguei o
gravador. A atmosfera de êxtase havia sido abruptamente
destruída. E pedi à miúda e aos que a imitaram que
fechassem os cadernos, pois ninguém lhes pedira para ler, mas
sim para ouvirem com os ouvidos da imaginação. Um professor
de outra disciplina, inadvertidamente, vendo na secção de
reprografia o texto que os professores de Português tinham
seleccionado e mandado imprimir, para iniciarem a primeira
unidade didáctica, pedira à funcionária uma fotocópia e,
duplicando-a, distribuíra um exemplar a cada aluno,
perturbando, irreflectidamente, todo o ambiente que se
procurava criar na aula de Português, para uma melhor
exploração das ideias do texto.
Fechados
novamente os cadernos, rebobinei a fita e, uma vez mais, pedi
aos alunos que, por momentos, se concentrassem apenas na
audição e procurassem, usando a imaginação, não o
coração, recuar no tempo e viver a situação que Sebastião
da Gama registara no seu Diário. Voltou-se a ouvir a
música, por sinal bastante agradável e evocadora de um
ambiente calmo, ameno, recolhedor, mesmo de acordo com as
ideias do texto. No final da audição, pedi à turma que se
pronunciasse acerca do que ouvira, falando cada um na sua vez,
como aliás sugeria o próprio texto. Todos tinham gostado e
mostravam ter captado o essencial da mensagem.
Na fase
seguinte, procurei com toda a turma reflectir mais
profundamente sobre o conteúdo do texto, não sem antes o ter
completado. O colega que o passara no computador, além de se
ter esquecido da referência bibliográfica, subtraíra uma
frase completa, sem a qual a mensagem deixada por Sebastião
da Gama ficaria irremediavelmente truncada. Para isso, pedi
aos alunos que efectuassem uma leitura atenta do texto, ao
mesmo tempo que íamos ouvindo o autor através do locutor que
lhe emprestara a voz. Toda a turma se apercebeu da lacuna. E a
frase importante, em falta, foi por todos acrescentada:
«...lealdade.
Lealdade para comigo, e lealdade de cada um para cada outro.»
Completado o
texto, pedi a um aluno que relesse todo o excerto, para
verificarmos a globalidade da mensagem que nos tinha sido
legada pelo autor: «...E pedi, mais que tudo, uma coisa
que eu costumo pedir aos meus alunos: lealdade. Lealdade para
comigo, e lealdade de cada um para cada outro. Lealdade que
não se limita a não enganar o professor ou o companheiro:
lealdade activa, que nos leva, por exemplo, a contar
abertamente os nossos pontos fracos ou a rir quando temos
vontade (e então rir mesmo, porque não é lealdade deixar
então de rir) ou a não ajudar falsamente o companheiro.»
Lido todo o
excerto — e por sinal lido com correcção pelo aluno —,
pedi que indicassem, utilizando as ideias do texto e os seus
próprios conhecimentos, as condições necessárias para que
uma aula possa ser simultaneamente um espaço de prazer e de
tempo bem passado, agradável e proveitoso para todos, alunos
e professor. Um a um, os alunos foram indicando essas
condições: assiduidade, respeito pelos outros, falar cada um
na sua vez, respeitar a opinião dos outros, ainda que
contrária à nossa, atenção inteligente a tudo quanto se
passa na aula, realização atempada das actividades dentro e
fora da sala de aula, etc. Para terminar a exploração do
texto, efectuando como que uma síntese, reli a primeira
frase: «O que eu quero principalmente é que vivam
felizes.» E perguntei qual era, no fundo, o objectivo que
todos nós deveríamos procurar alcançar. O aluno que, no
começo da aula, simulara o dedilhar do teclado do piano,
levantou o braço para que o deixassem responder. Dei-lhe a
palavra e ele, muito sério, respondeu que o que deveríamos
ter era a Felicidade.
Os rapazes,
primeiro, as raparigas, pouco depois, desataram todos a rir
com vontade perante a minha brevíssima estupefacção: é que
me veio logo à lembrança a professora Felicidade, rapariga
nova, bonita e simpática, directora desta turma, dando-me
igualmente vontade de rir. E sem qualquer premeditação,
terminava a aula de uma maneira caricata, humorística,
ilustrando as palavras do próprio Sebastião da Gama que, se
aqui estivesse, também ele não deixaria de rir, confirmando
a autenticidade das suas próprias palavras: «...rir só
quando temos vontade (e então rir mesmo, porque não é
lealdade deixar então de rir)... »
Henrique J. C.
de Oliveira
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