BOLETIM   CULTURAL   E   RECREATIVO   DO   S.E.U.C.  -   J.  ESTÊVÃO


PÁGINA 1
Editorial
Alcino Carvalho
PÁGINA 2
Um presépio humano
Bartolomeu Conde
PÁGINA 3
Contos tradicionais portugueses
PÁGINA 4
A reforma do
SEUC
João Paulo
PÁGINA 5
Isto de Tradi-
ções e...

Henrique Oliveira
PÁGINA 6
Cenários de
Violência
Isabel Bernardino
PÁGINA 7
Plantas carní-
voras
João Paulo
PÁGINA 8
Receitas para
o fígado
H.J.C.O.
PÁGINA 9
Sebastião da
Gama
Paula Tribuzi
PÁGINA 10
Aveiro, de vila
a cidade
Claudete Albino
PÁGINA 11
Hora do
Recreio
PÁGINA 12
Fac-símile da 1ª página
 

Isto de tradições e...
São Martinho

                                                                                                                        Henrique J. C. de Oliveira

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Os restantes provérbios à volta do vinho constituem uma espécie de convite à sua prova. Constituem uma colecção de variantes em que a ideia é rigorosamente a mesma, apenas variando a expressão circunstancial de tempo, que ora explicita, ora omite a palavra dia: «No dia de...», «No São Martinho...», «Em São Martinho...» ou «Pelo São Martinho...».

A variante mais simples refere apenas a prova do vinho: «Pelo São Martinho, prova o teu vinho». Outras são mais explícitas, referindo-se ao local da prova: «No dia de São Martinho, vai à adega e prova o (teu) vinho.» Outra variante deixa-nos intrigados, porque nos diz que «No dia de São Martinho, fecha a adega e prova o teu vinho». Fechar a adega para quê? Para poder ficar mais à vontade, sem o perigo de alguém entrar e o apanhar com uma valente piela, podendo assim «entornar-se» sem impedimentos até que caia para o lado? E se isto se tornar num hábito, nem será necessário esperar tanto tempo para acontecer o que diz o provérbio seguinte: «Pelo São Martinho, prova o teu vinho; ao cabo de um ano, já te não faz dano».

O grupo seguinte, constituído por 7 variantes, tem a característica de aliar a pinga ao prazer dos magustos. É altura de ir aos soitos, é altura de apanhar as castanhas. E junto ao lume, se estamos em terras frias, não há como um delicioso magusto na companhia dos amigos. Se alguns provérbios se restringem às regiões onde há castanheiros, outros abrangem qualquer região do país, porque por alturas de Novembro, em qualquer local de Portugal se encontram as castanhas. Até mesmo nas grandes cidades ainda se podem encontrar os vendedores de castanhas assadas e aquecer os dedos com as deliciosas «quentes e boas», acabadinhas de sair do assador.

O primeiro provérbio do grupo diz-nos apenas: «Pelo São Martinho, larga o soitinho». O que é que ele nos quer dizer? A quem é que se destinará? Certamente que será dirigido àqueles que possuem soitos e têm ainda o hábito de apanhar as castanhas. Mas nada mais diz do que largar o soito, ou seja, interromper o trabalho. E para quê? Porque já chega de andar curvado a apanhar as castanhas e a britar os ouriços? Talvez o provérbio seguinte seja o desenvolvimento deste, porque é muito mais explícito. Diz-nos ele que «Pelo São Martinho, prova o teu vinho, larga o soito e mata o porquinho». Quer isto dizer que começa a chegar o fim do período da castanha e a aproximar-se a altura da matança? Talvez! E talvez que devemos passar, também nós, à análise dos outros verbetes? Sem dúvida que sim, mas não sem antes aqui referirmos outras variantes, que nos chamam a atenção para uma prática social bastante agradável.

Estas duas variantes são o mesmo provérbio: «Dia de São Martinho, castanhas e vinho»; «Dia de São Martinho, comem-se as castanhas e bebe-se o vinho». Com a segunda versão, não há o perigo de beber as castanhas e comer o vinho. Como nem todos são bons entendedores e as palavras são baratas, não há como ser claro e preciso. Os três verbetes finais em que se faz referência às castanhas não são mais do que duas variantes do mesmo provérbio. E dizem-nos: «No São Martinho, lume, castanhas e vinho»; «Em São Martinho, vai à adega, prova o teu vinho e faz um magustinho».

O último grupo de verbetes, com 10 variantes, caracteriza-se por efectuar uma referência a um costume bem português, a uma actividade tradicional em que, com a ajuda de amigos e vizinhos, se procede à matança do porco. Sacrifica-se o animal no altar para gáudio dos presentes, porque é dia de convívio e de umas boas febras, além de que se enchem as arcas com a carne do porquito e se obtêm os produtos necessários para a constituição do fumeiro. Sem o sacrifício do animal não se podem fazer as boas chouriças, as escuras morcelas e as loiras farinheiras. E com o largo período de frio e mau tempo, que impede o trabalho nos campos, as lareiras ficam acesas dias a fio. Não há como passar uns bons serões à lareira, com os enchidos pendentes do tecto e, de vez em quando, na companhia dos amigos, colocar umas chouriças a assar na grelha, ou mesmo enfiadas entre as brasas, depois de convenientemente embrulhadas numas folhas de couve ou, na falta delas, em folhas de alumínio. E como também há castanhas, é um convívio completo: castanhas, enchidos e uma boa pinga ou jeropiga a acompanhar.

Passemos aos provérbios, antes que comecemos a fazer concorrência ao cão de Pavlov e fiquemos com água na boca.

Subdividimos os 10 verbetes em que se refere a matança em quatro grupos. O primeiro, com quatro variantes, limita-se apenas a dizer-nos: «Por São Martinho, mata o teu porco e prova o teu vinho». Apenas muda a introdução ao complemento circunstancial de tempo ou, então, substitui-se o verbo beber por provar. Não é que beber e provar seja bem a mesma coisa, mas... Apenas uma variante amplifica a ideia, na medida em que nos diz: «Em São Martinho, tapa o teu portalzinho, ceva o teu porquinho e fura o pipinho». Estamos na presença de um provérbio constituído por quatro segmentos frásicos, que dariam uma quadra monórrima perfeita se a métrica estivesse exacta. E esta nossa suposição não deixa de ter a sua lógica, porque é possível obter uma quadra em redondilha menor, sem grandes exercícios de transformação: «Pelo São Martinho // Tapa o portalzinho // Ceva o teu porquinho // E fura o pipinho.»

O único problema na análise do provérbio reside, quanto a nós, no portalzinho. A que se referirá este «portalzinho»? Será ao portal com que se tapa o «aido», isto é, o curral (1) dos porcos? Talvez! Porque é fechando o portal e correndo a trabinca de madeira que se impede que o bicho fuja ao suplício da faca no momento da matança. E esta suposição não deixa de ter lógica, porque, das poucas vezes em que assistimos a este ritual «bárbaro», constatámos que, ainda no aido, já o animal estava aos berros, grunhindo desesperadamente, como que pressentindo o triste e doloroso fim que lhe estava destinado, para gáudio da gula dos seus algozes.

Os três verbetes seguintes fazem referência à matança, mas convida-nos depois ao magusto junto do lume e com um bom vinho para acompanhar. Como as três variantes dizem praticamente o mesmo, transcrevemos apenas a versão mais explícita, que nos diz: «No dia de São Martinho, mata o porquinho, chega-te ao lume, assa castanhas e bebe o teu vinho».

E terminamos a nossa análise dos provérbios em torno de São Martinho com dois que não vamos comentar. São dois provérbios antagónicos, que espelham talvez a maneira de ser de quem os proferiu: «Pelo São Martinho, mata o porquinho, prova o teu vinho e não te esqueças do teu vizinho.» - «No dia de São Martinho, mata o porquinho, abre o pipinho, põe-te mal com o vizinho.»

Henrique J. C. de Oliveira

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(1) - Embora o termo mais generalizado em todo o País para o local onde se encontram os porcos seja «pocilga», e não a palavra curral que aqui empregámos, em algumas regiões nortenhas tivemos oportunidade de ouvir e registar a palavra «aido».


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5 Tradições e S. Martinho  -  6 Cenários de Violência  -  7 Plantas carnívoras  -  8 Receitas para o fígado
9 Sebastião da Gama  -  10 Aveiro, de vila a cidade  -  11 Hora do Recreio  -  12 Fac-símile


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