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Isto
de tradições e...
São Martinho
Henrique J. C. de Oliveira |
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Temos
variantes em que o conselho é dado pela negativa e até
mesmo pelo ridículo. Vejamos um caso concreto. No
provérbio «Queres pasmar o teu vizinho? Lavra e
esterca no São Martinho.», é indicado ao lavrador que
a actividade agrícola, uma vez que se aproxima o
inverno, está reduzida a quase nada. Logo, nem lavrar,
nem estercar, a menos que se queira fazer figura de
parvo perante os vizinhos.
O
provérbio «Por São Martinho, nem favas nem vinho.»
alude também àquilo que não existe na época, embora
entre aparentemente em oposição com a maioria dos
outros provérbios, quando refere a ausência de vinho.
Certamente que não poderá significar a falta do vinho
nas pipas das adegas. Referir-se-á talvez à época das
vindimas e dos trabalhos na produção vinícola, que
há muito já passaram, a menos que o provérbio tenha
sido proferido por alguém a quem falte o vinho na adega
ou na pipa, ou até alguém que esteja na mesma
situação da desditosa Maria Parda de Gil Vicente, que
andava pelas ruas da amargura a lamentar-se devido ao
elevado custo do vinho e à falta de vinténs na
algibeira, sem os quais lhe não podia chegar.
O
provérbio seguinte funciona também pela negativa e
faz-nos reflectir um pouco acerca da sua eventual
correcção. Diz-se que «Pelo São
Martinho, nem nado, nem no cabacinho.» Será nado ou
nada? É que qualquer das palavras existe. «Nado»
tanto pode ser a forma verbal como o adjectivo verbal.
Não se nos afigura que possa ser forma verbal, mas
antes o mesmo que «coisa nascida» ou gerada. Por sua
vez, o vocábulo «cabacinho» anda normalmente
associado ao licor de Baco. E, durante os trabalhos
agrícolas, especialmente a partir de Novembro, nas
regiões mais quentes, até meados ou mesmo finais de
Janeiro, nas regiões mais frias do norte do país,
estamos na época da apanha da azeitona. E não há nada
como os trabalhadores andarem acompanhados com um
cabacinho de vinho, ou até mesmo de aguardente, para
matarem o bicho e os ajudar a melhor suportarem os
rigores do Inverno, durante os breves dias de trabalho
nos olivais.
Possivelmente,
e isto não passa de uma suposição, o «nem nado»
referir-se-á à letargia que se verifica nesta época
em toda a natureza em que, tirando as saborosas
castanhas para os magustos, poucos mais produtos nascem
nos campos e nas hortas. E se quisermos saber que
produtos agrícolas há nesta época, não há como
consultar o «Calendário Agrícola Português»,
inserido nas páginas do «Aveiro e Cultura».
Interessante
e talvez o mais longo dos provérbios em que figura São
Martinho deverá ser o seguinte: «O verão de São
Martinho, a vareja de São Simão e a cheia de Santos,
são três coisas que nunca faltarão.»
O
provérbio nada tem que não bata mais ou menos certo
num país com características simultaneamente
mediterrânicas e atlânticas como são as de Portugal.
Azeite e vinho são os dois grandes produtos
característicos da civilização mediterrânica. E, a
partir de Novembro, a vareja corresponde à colheita da
azeitona, cuja actividade começa cedo no sul,
estendendo-se até aos primeiros meses do ano seguinte
nas regiões mais frias do extremo norte do país.
Geralmente, também somos bafejados, salvo raras
excepções, com uns dias quentes a recordarem-nos a
estação já passada em que apetece ir para a praia. O
único obstáculo interpretativo levantado pelo
provérbio reside em «cheia de Santos». Teremos aqui
uma alusão às cheias que ocorrem com mais frequência
a partir de Novembro? Ou será alusão a uma mão cheia
de santos, na medida em nenhum fica de fora no dia de
Todos-os-Santos? O que quer que seja, a verdade é que
estamos perante três factos que não costumam faltar a
partir do dia de São Martinho.
O
último provérbio do grupo que temos estado a analisar
remete-nos já para os outros conjuntos em que
subdividimos os provérbios: «Pelo São Martinho, mata
o teu porquinho e semeia o teu cebolinho». Embora
aludindo ainda aos trabalhos agrícolas, remete-nos para
outra tradição da época: a matança do porco. Mas
desta nos ocuparemos no devido momento.
Analisado
o primeiro grupo de verbetes correspondentes à grande
categoria em que entram os conselhos agrícolas,
restam-nos quatro conjuntos que aludem a actividades que
não implicam uma relação de trabalho Homem-Terra. E
em todos eles há um elemento comum — o vinho. E
precisamente porque se trata de um elemento comum, não
constitui o elemento significativo que marca a
distinção. Os trinta e quatro verbetes com os
provérbios e suas variantes em que o nome de São
Martinho está sempre presente foram por nós
subdivididos em quatro conjuntos, em que os elementos
distintivos são a matança (10 verbetes), as castanhas
(7), os elementos ligados ao vinho, tais como a adega e
os pipos (14) e a água (3).
Comecemos
pelo conjunto mais pequeno, em que dos três só dois
estão correctos, embora tratando-se sempre de variantes
do mesmo provérbio. Consideramos como uma corrupção
do provérbio a versão que diz: «Pelo São Martinho
deixa a água pró vinho». Possivelmente, o que a
pessoa que indicou o provérbio pretendia dizer era que
pelo São Martinho deixássemos a água pelo vinho, ou
seja, que trocássemos uma coisa pela outra. E pensamos
isto porque é precisamente o que as duas variantes do
mesmo provérbio, cujo conselho agradará seguramente
aos que nada têm contra Diónisos, nos aconselham. O
primeiro, parco em palavras, diz-nos: «Pelo São
Martinho, deixa a água para o moinho». A variante
seguinte, diz-nos rigorosamente o mesmo, mas é mais
explícita: «Pelo São Martinho, bebe o bom vinho e
deixa a água para o moinho». E constitui, sem sombra
de dúvida, um conselho de pessoa avisada, de pessoa com
bom paladar e apreciador do bom sumo de uva fermentado,
porque tem o cuidado de qualificar devidamente aquilo
que se deverá beber. Não se deverá beber um vinho
qualquer, mas sim o bom vinho, a menos que este
qualificativo apresente outras conotações.
Eliminada
a água, que não é boa para o vinho, a não ser para
os que o vendem e o querem fazer render, baptizando-o e
enganando o cliente, passemos ao grupo dos 14 verbetes,
em que apenas é referido o vinho e tudo quanto lhe anda
ligado. São variantes do mesmo provérbio, no qual se
chama a atenção para o facto de que, por altura do
São Martinho, ou seja, por altura de Novembro, já o
vinho está pronto. É por isso chegada a altura de ir
à adega prová-lo e armazená-lo devidamente nos
recipientes adequados, consoante a quantidade produzida.
O
primeiro provérbio que passamos a referir distingue-se
de todos os outros. Deve ter sido proferido por alguém
que não é esquisito com a qualidade, porque, segundo
nos diz, «Por São Martinho, todo o mosto é bom
vinho.» E uma vez que já é altura de bom vinho,
encontramos variantes do mesmo provérbio que centram a
atenção ora no continente, ora no contido, ou seja,
ora centram a atenção no recipiente ora no vinho. E
estamos também frequentemente na presença da
sinédoque ou, talvez mais rigorosamente, da metonímia,
na medida em que se refere o continente pelo conteúdo.
Mas isto só naquelas variantes em que a atenção está
mais centrada na prova do vinho. Noutras, a atenção é
centrada nos cuidados a ter com os recipientes onde o
precioso líquido é guardado, tais como, por exemplo,
furar o pipo e abatocá-lo em seguida, isto é, fechar o
orifício com um batoque de cortiça. É o que nos é
dito nas duas variantes, que se completam: «No São
Martinho, fura o teu pipinho» e «Pelo São Martinho,
abatoca o teu pipinho». Menos explícita é a variante
em que apenas se diz que é necessário barrar o vinho:
«Por São Martinho, barra-se o vinho».Todavia, este
verbo pode ter um outro sentido, que não o de tapar o
vinho, como ouvimos de um especialista. É que, uma vez
metido o vinho em dornas ou barris, os espaços entre as
aduelas ou a tampa que veda a abertura do recipiente,
nos grandes reservatórios, deve ser barrado com uma
massa própria, para obtenção de um perfeito
isolamento, evitando-se a entrada de ar.
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