BOLETIM   CULTURAL   E   RECREATIVO   DO   S.E.U.C.  -   J.  ESTÊVÃO


PÁGINA 1
Editorial
Alcino Carvalho
PÁGINA 2
Um presépio humano
Bartolomeu Conde
PÁGINA 3
Contos tradicionais portugueses
PÁGINA 4
A reforma do
SEUC
João Paulo
PÁGINA 5
Isto de Tradi-
ções e...
Henrique Oliveira
PÁGINA 6
Cenários de
Violência
Isabel Bernardino
PÁGINA 7
Plantas carní-
voras
João Paulo
PÁGINA 8
Receitas para
o fígado
H.J.C.O.
PÁGINA 9
Sebastião da
Gama
Paula Tribuzi
PÁGINA 10
Aveiro, de vila
a cidade
Claudete Albino
PÁGINA 11
Hora do
Recreio
PÁGINA 12
Fac-símile da 1ª página
 

Contos tradicionais portugueses
AS FIANDEIRAS

Era uma mãe que tinha uma filha e só pensava em casá-la bem. Foi a casa de um mercador que vendia linhagem, e pediu-lhe para que lhe vendesse uma pedra de linho, porque a filha fiava tudo num dia. Trouxe o linho para casa e disse à filha:

— Tens de me fiar esta pedra de linho hoje mesmo, porque amanhã vou buscar mais. Quando voltar a casa quero achar o linho todo fiado.

— A pequena foi sentar-se à porta, a chorar, sem saber como obedecer à mãe. Passou uma velhinha:

A menina o que tem, que está a chorar desse modo?

— O que hei-de ter! É minha mãe que quer à força que lhe fie num dia uma pedra de linho, e eu não sei fiar.

— Deixe a menina estar, que eu lhe fio tudo se me promete que no dia do seu casamento me há-de chamar três vezes tia.

A menina olhou para dentro de casa, e viu o linho remexido, e todo fiado. No dia seguinte a mãe foi à loja, gabou muito a habilidade da filha, e pediu outra pedra de linho para ela fiar. A pequena foi-se sentar à porta, a chorar, esperando que passasse a velhinha da véspera. Passou uma outra:

— A menina o que tem, que está a chorar dessa maneira?

A pequena contou-lhe as ordens que tinha recebido da mãe.

Pois se a menina me promete que no dia do casamento me há-de chamar três vezes sua tia, o linho há-de aparecer fiado.

A pequena prometeu que sim, e olhando para dentro de casa deu com o linho remexido e pronto.

A mãe foi buscar mais outra pedra de linho, e repetiu-se o mesmo caso; até que passou uma terceira velhinha, que lhe fez tudo com a mesma promessa. O comerciante sabendo daquela habilidade quis ver a rapariga, achou-a bonita e esperta e quis casar com ela; a mãe ficou bem contente porque o noivo era muito rico. O comerciante mandou-lhe um grande presente, com muitas rocas e fusos, para que, quando casassem, as suas criadas todas fiarem. No dia do casamento, fez-se um opíparo jantar, a que todos os seus amigos assistiram; quando estavam à mesa bateu à porta uma velhinha:

— Ai! É aqui que mora a noiva?

— Entre, minha tia; sente-se aqui, minha tia; coma alguma coisa, minha tia.

Ficaram todos pasmados de verem uma velha tão corcovada com um nariz muito pencudo. Mas calaram-se. Instantes depois, bateram à porta; era uma outra velhinha:

— É aqui que mora a noiva que se casou hoje?

— É, minha tia; entre, minha tia; jante connosco, minha tia.

A velha sentou-se e todos ficaram pasmados do enorme aleijão que ela tinha nos queixos. Mas continuaram a jantar. Bateram outra vez à porta; era outra velhinha, que fez a mesma pergunta.

— Ora entre, minha tia; cá a esperávamos, minha tia; há-de jantar connosco, minha tia.

Também não causou menos pasmo esta velha toda corcovada e com as costelas embicadas para fora; mas desta vez os curiosos, principalmente o noivo, perguntaram porque tinham aquelas suas tias tamanhos aleijões.

Disse a primeira:

— Tenho assim o nariz, porque fiei muito, muito, e as arestas do linho puseram-me assim.

— E eu, meu sobrinho, tenho assim os queixos, porque fiei muito, e fiquei assim por tanto riçar os tomentos.

— Pois eu, sobrinho, fiquei com estas corcovas por estar sempre para um canto com a roca à cinta.

O marido tanto que ouviu aquilo, levantou-se e foi pegar nas rocas, fusos, sarilhos, dobadouras e sedeiro e atirou tudo para a rua, declarando que na sua casa nunca mais se havia de fiar, porque não queria que lhe acontecessem à sua mulher iguais desgraças. (Algarve)

IN: Teófilo Braga, Contos Tradicionais Portugueses, vol. I, pp. 97-98.

NOTA — Nas Fire Side stories of Ireland, de P. Kennedy, acha-se este conto, e traduzido por Brueyre com o título A Preguiçosa e Suas Tias. (Contes populaires de la Grande Bretagne, n.º XXXII, pág. 159). Entre as diferentes fontes, cita a versão escocesa da colecção de Chambers, Whooppiry Storie (op. cit, p. 245, de Brueyre); há uma lição francesa Histoire du Ric Din-Don de MIle Lhéritier; no Pentanwrone de Basile, o conto italiano, e na Novelline di Santo Stefano, de Gubernatis. La Comprata. No Norske eventyr, de Asbjörnsen e Moe, As Três Tias; e na colecção sueca de Cavallius e Stephens. A Rapariga Que Não Podia Fiar Ouro com Lama e Palha, e As Três Corvinhas. Jacob Grimm, nos seus Kinder und Hausmärchen, n.º 14, traz As Três Fiandeiras; traduzido nos Contes choisis, de Fred Baudry, p. 128. Há alguns vestígios em Rumpelstilzchen; na colecção de Bürching. Volksagen, Märchen, und Legenden, é o das Três Fiandeirinhas. Há uma outra versão portuguesa traduzida por G. Ralston nos Portuguese Folk-Tales, de Consiglieri Pedroso, n.º XIX, com o título As Tias. Na Mythologie des plantes, t. 11, p. 212, Gubernatis traz um conto popular da Calábria, cujo maravilhoso versa sobre o poder de fiar concedido pelas fadas a uma mulher.


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