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Aspecto da Fonte dos Amores, tal
como podia ser vista in illo tempore, em meados da década de
1950, e que viria a ser demolida duas décadas mais tarde, existindo
actualmente parte dos seus elementos a cerca de cinquenta metros do
mesmo local. Imagem retirada da colecção de fotografias de um
aveirense, o Senhor Fausto Ferreira. |
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Não encontrei melhor forma de denominar
uma série de escritos sobre coisas, pessoas e factos que se foram
cruzando com a minha vida do que esta: FONTE DOS MEUS AMORES. Eu
explico: com efeito, foi ali, no sítio onde já lá não está, que eu
passei parte da minha meninice e da minha adolescência; exactamente na
Fonte dos Amores, no lado esquerdo do princípio da Rua de Ílhavo,
actualmente Rua do doutor Mário Sacramento. Uma pequena fonte que, hoje,
se esconde no final da Avenida de Araújo e Silva, quase que envergonhada
do seu passado, no começo de um caminho mal amanhado que dá acesso a uns
campos de ténis do nosso parque municipal. O resquício da que presidia
ao largo verdejante onde ela, a fonte, foi rainha, não só do espaço a
que dava o nome, mas de todos nós, os seus frequentadores.
Desses tempos, já lá vão seis décadas
bem medidas, resta parte das casinhas, quase todas térreas, na que foi a
viela da Fonte dos Amores. A placa toponímica ainda lá está, na casa da
esquina com a travessa do mesmo nome. Eu morei no primeiro andar do
número cinquenta e três, um prédio que foi destruído, não há muitos
anos, certamente por interesses imobiliários. No vazio do que foi um
pequeno quarteirão de casas de habitação e de dois pequenos
estabelecimentos – uma oficina de reparação de bicicletas, a do senhor
Adriano, que ficava mesmo por debaixo da casa da minha avó Joaninha, a
senhora Joaninha do Gaspar, como lhe chamava tão carinhosamente a
vizinhança; e outro, uma mercearia/taberna, separada esta daquela só por
precaríssima vedação de madeira para satisfazer exigência legal então em
vigor, e onde todo o bairro se abastecia. O prédio que albergava este
último estabelecimento só foi destruído muito recentemente. No vértice
do triângulo que era definido pelo princípio da Rua de Ílhavo e pelo fim
da Avenida Araújo e Silva, ficava o bonito posto da Polícia de Viação e
Trânsito, com o seu amarelo-torrado a presidir a um jardim que os seus
agentes, sempre garbosamente fardados, sabiam manter com um carinho
inexcedível.
Nos meus seis anitos de vida, que os
tinha quando para ali fui morar, ido da casa da Rua Gustavo Ferreira
Pinto Basto, ainda não havia a enorme balança, construída mais tarde e
onde eram pesadas as camionetas que os agentes desconfiavam exceder a
carga autorizada por lei. Nunca esqueci as caras transidas de medo dos
condutores dos veículos, quando eram mandados avançar para cima do
grande estrado de ferro da balança. Os miúdos do bairro, eu também, eram
preciosos auxiliares dos polícias nas manobras de medição das alturas
das cargas, que também tinham limites impostos por lei. Quando foi
construída a báscula instalada no vazio de enorme buraco, foi aberta uma
curta estrada a ligar a Rua de Ílhavo à Avenida Araújo e Silva, deixando
bem visível o grande portão de ferro do quintal do senhor Zé Pinto da
Farmácia. A Rua de Ílhavo já tinha um piso consistente; mas ao da
Avenida bastava uma pequena chuvada para o converter num mar de lama.
Tinha sido aberta não há muito tempo, pois que dos passeios, que ainda
hoje lá estão, só existia o esboço com uns paus especados ao alto, aos
quais se arrimavam os raquíticos arbustos que os anos transformaram em
árvores. Quem ia do Jardim do Infante D. Pedro, do lado direito, era
quase tudo limitado pelo alto muro da quinta do Genrinho. Do lado
oposto, eram vários os muros e de diferentes alturas, correspondendo
cada naco ao seu quintal.
Quando íamos da Escola Primária da
Glória, (não esta que lá está agora mas as outras, a masculina com o
edifício da Primeira República e a outra, a das meninas, mais
envergonhada na sua construção, quase pespegada à Igreja das
Carmelitas), sempre em bando, antes mesmo de irmos cada um para sua
casa, tínhamos paragem obrigatória na relva do largo da Fonte dos
Amores. Descalços, pois que os sapatos, alpergatas ou botas já vinham ao
ombro pelas atacas, lá brincávamos o tempo justo para que ninguém
estranhasse demoras que só viriam a comprometer o outro recreio, esse
mais longo, depois de feitas as obrigações de casa. Aquele espaço, em
parte hoje ocupado pelas traseiras do edifício onde actualmente se situa
o restaurante “Ceboleiro”, era verdadeiramente um espaço mágico, o
autêntico centro das nossas vidas de crianças. Da Rua de Ílhavo
acedíamos à relva de corar a roupa por uns degraus que interceptavam o
muro, que definia o lado poente do rectângulo. Pelo sul, havia o riacho
que vinha, pelos quintais fora, dos lados do cemitério e seguia, por
debaixo da Rua de Ílhavo, até à quinta do Genrinho, sendo-nos garantido,
de ciência certa, pelos adultos do bairro que ele ia, por ínvios
caminhos, desaguar ao lago do Parque. Do lado nascente, lá estava a
nossa Fonte dos Amores, encostada ao muro encimado de ameias e com as
armas do Duque de Aveiro nele embutidas, separando-a do quintal onde se
situava a casa dos pais do meu bom amigo José Júlio, hoje um dos
gerentes da Casa Espanhola, da Rua Direita: o senhor João Gualter Dias,
o sapateiro do sítio, casado com a senhora Maria Lourenço, uma das três
lavadeiras profissionais dos tanques anexos. Foram estes os pais de
prole numerosa: do Amílcar, do Jonas, da Violeta, da Verídica, do
António e, claro, do José Júlio. Perfazendo o outro lado do recinto,
para sul, ficava a casa da senhora Constância, mãe da senhora Armanda
Caçola e da senhora Carolina, esta casada que foi com o senhor Pinheiro,
barbeiro do Seminário e de quase toda a gente do bairro.
A dona Carolina, mãe do meu amigo
Fernando Pinheiro, também era lavadeira profissional nos tanques da
Fonte dos Amores, autêntica lavandaria de então desta cidade de Aveiro.
Completando o trio das profissionais, havia ainda a senhora Maria dos
Lençóis, sogra do ti Damásio e mãe da Maria Helena e da Marília. Tudo
isto sem esquecer o ti Norberto da Concertina, pai do músico José Vieira
Rodrigues, meu velho colega da escola primária, que toda a gente
conhecia e continua, felizmente, a conhecer por Fagote. E o senhor
Neiva, pai da Odete, do Carlos e da Joaninha, já falecidos, e da Mininha
e da Marília que se veio, posteriormente, a casar com o grande artista
aveirense, o barrista e pintor cerâmico Zé Augusto. Vizinha da minha avó
Joaninha, vivia, paredes-meias, a senhora Blandina, casada com o
primeiro-sargento Agenor. Do lado de lá da Travessa da Fonte dos
Amores, ficava a casa da senhora Miquinhas do Bagão, este também
sargento no Regimento de Infantaria 10, ambos pais dos meus amigos
Amílcar e Carlos Bagão. E, mesmo ao lado, morava a senhora Amandina,
casada com o senhor Tobias, que andava ao mar, no bacalhau, à semelhança
do meu pai Manuel.
A relva onde se corava a roupa de meio
Aveiro era também o nosso recreio. Era lá que se jogava “à bandeira”, à
“macaca”, à “mona” e ao “pião”, à “malha”, ao “berlinde”, à “uma-lá-uma”,
às escondidas, aos “índios e cowboys”, atirando flechas de varetas de
guarda-chuva, onde se corria ao “arco” com rodas de bicicleta, sem aros,
que se compravam no senhor Raul das Cinco Bicas e com carros feitos de
caixotes de madeira. Era lá que se trocavam os “bichos” e os “jogadores”
da colecção. Era lá que se combinavam as “penhoras”. Era lá que, de vez
em quando, se rachava uma cabeça. Era lá que surgiam os motivos fortes
para largarmos à desfilada até às nossas casas, lavados em lágrimas que
de pronto ficavam secas por conta de adequada reprimenda. Era para lá
que fugíamos quando éramos apanhados a fazer alguma das nossas pelo
fiscal da Câmara, o senhor Evaristo. E continuava a ser o nosso refúgio
sempre que o senhor Adriano, guarda do Parque, nos surpreendia a cortar
uma cana-da-índia para fazer uma “pesca” para o Poço de Santiago. Este
percurso, que em si mesmo já era uma aventura, facultava-nos, nas
alturas próprias do ano, a apanha das folhas de amoreira para os
bichos-da-seda, que criávamos em caixas de cartão que íamos pedir às
sapatarias.
Era lá que nos juntávamos, quando íamos
buscar um jarro de água, ou quando íamos buscar leite à vacaria do
doutor Pompeu Cardoso, na Rua das Pombas, e que o senhor Carlos,
responsável pelos animais, (e que tinha tanto de bom como de alto e
forte), nos dava a provar, fazendo com que o leite saísse de jacto,
quente, direitinho do úbere da vaca para a nossa boca, aberta a
preceito. Era por lá que eu parava um pouco a caminho da casa do senhor
Vieira, grande lavrador que vivia já quase fora de portas, no meio dos
campos de Santiago, numa linda vivenda, onde vim a descobrir um violão
saído das mãos de artista do meu avô materno, António Gaspar, melómano
amigo do saudoso fundador das Faianças dos Santos Mártires e da Fonte
Nova, o senhor João Aleluia que, para além de brilhante empreendedor
industrial, foi talentoso pintor cerâmico.
Voltarei a esta Fonte dos meus Amores
por conta de algumas coisas que, aqui e agora, deixo somente apontadas.
Ainda que a saudade dos tempos idos custe e roa.
GASPAR ALBINO –
7-02-2005