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BOLETIM CULTURAL E RECREATIVO - SECUNDÁRIA JOSÉ ESTÊVÃO - AVEIRO


 


A FONTE DOS meus AMORES - II
Quase um conto de Natal

 


 
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Aspecto da Fonte dos Amores, tal como podia ser vista in illo tempore, em meados da década de 1950, e que viria a ser demolida duas décadas mais tarde, existindo actualmente parte dos seus elementos a cerca de cinquenta metros do mesmo local. Imagem retirada da colecção de fotografias de um aveirense, o Senhor Fausto Ferreira.

 

Não encontrei melhor forma de denominar uma série de escritos sobre coisas, pessoas e factos que se foram cruzando com a minha vida do que esta: FONTE DOS MEUS AMORES. Eu explico: com efeito, foi ali, no sítio onde já lá não está, que eu passei parte da minha meninice e da minha adolescência; exactamente na Fonte dos Amores, no lado esquerdo do princípio da Rua de Ílhavo, actualmente Rua do doutor Mário Sacramento. Uma pequena fonte que, hoje, se esconde no final da Avenida de Araújo e Silva, quase que envergonhada do seu passado, no começo de um caminho mal amanhado que dá acesso a uns campos de ténis do nosso parque municipal. O resquício da que presidia ao largo verdejante onde ela, a fonte, foi rainha, não só do espaço a que dava o nome, mas de todos nós, os seus frequentadores.

Desses tempos, já lá vão seis décadas bem medidas, resta parte das casinhas, quase todas térreas, na que foi a viela da Fonte dos Amores. A placa toponímica ainda lá está, na casa da esquina com a travessa do mesmo nome. Eu morei no primeiro andar do número cinquenta e três, um prédio que foi destruído, não há muitos anos, certamente por interesses imobiliários. No vazio do que foi um pequeno quarteirão de casas de habitação e de dois pequenos estabelecimentos – uma oficina de reparação de bicicletas, a do senhor Adriano, que ficava mesmo por debaixo da casa da minha avó Joaninha, a senhora Joaninha do Gaspar, como lhe chamava tão carinhosamente a vizinhança; e outro, uma mercearia/taberna, separada esta daquela só por precaríssima vedação de madeira para satisfazer exigência legal então em vigor, e onde todo o bairro se abastecia. O prédio que albergava este último estabelecimento só foi destruído muito recentemente. No vértice do triângulo que era definido pelo princípio da Rua de Ílhavo e pelo fim da Avenida Araújo e Silva, ficava o bonito posto da Polícia de Viação e Trânsito, com o seu amarelo-torrado a presidir a um jardim que os seus agentes, sempre garbosamente fardados, sabiam manter com um carinho inexcedível.

Nos meus seis anitos de vida, que os tinha quando para ali fui morar, ido da casa da Rua Gustavo Ferreira Pinto Basto, ainda não havia a enorme balança, construída mais tarde e onde eram pesadas as camionetas que os agentes desconfiavam exceder a carga autorizada por lei. Nunca esqueci as caras transidas de medo dos condutores dos veículos, quando eram mandados avançar para cima do grande estrado de ferro da balança. Os miúdos do bairro, eu também, eram preciosos auxiliares dos polícias nas manobras de medição das alturas das cargas, que também tinham limites impostos por lei. Quando foi construída a báscula instalada no vazio de enorme buraco, foi aberta uma curta estrada a ligar a Rua de Ílhavo à Avenida Araújo e Silva, deixando bem visível o grande portão de ferro do quintal do senhor Zé Pinto da Farmácia. A Rua de Ílhavo já tinha um piso consistente; mas ao da Avenida bastava uma pequena chuvada para o converter num mar de lama. Tinha sido aberta não há muito tempo, pois que dos passeios, que ainda hoje lá estão, só existia o esboço com uns paus especados ao alto, aos quais se arrimavam os raquíticos arbustos que os anos transformaram em árvores. Quem ia do Jardim do Infante D. Pedro, do lado direito, era quase tudo limitado pelo alto muro da quinta do Genrinho. Do lado oposto, eram vários os muros e de diferentes alturas, correspondendo cada naco ao seu quintal.

Quando íamos da Escola Primária da Glória, (não esta que lá está agora mas as outras, a masculina com o edifício da Primeira República e a outra, a das meninas, mais envergonhada na sua construção, quase pespegada à Igreja das Carmelitas), sempre em bando, antes mesmo de irmos cada um para sua casa, tínhamos paragem obrigatória na relva do largo da Fonte dos Amores. Descalços, pois que os sapatos, alpergatas ou botas já vinham ao ombro pelas atacas, lá brincávamos o tempo justo para que ninguém estranhasse demoras que só viriam a comprometer o outro recreio, esse mais longo, depois de feitas as obrigações de casa. Aquele espaço, em parte hoje ocupado pelas traseiras do edifício onde actualmente se situa o restaurante “Ceboleiro”, era verdadeiramente um espaço mágico, o autêntico centro das nossas vidas de crianças. Da Rua de Ílhavo acedíamos à relva de corar a roupa por uns degraus que interceptavam o muro, que definia o lado poente do rectângulo. Pelo sul, havia o riacho que vinha, pelos quintais fora, dos lados do cemitério e seguia, por debaixo da Rua de Ílhavo, até à quinta do Genrinho, sendo-nos garantido, de ciência certa, pelos adultos do bairro que ele ia, por ínvios caminhos, desaguar ao lago do Parque. Do lado nascente, lá estava a nossa Fonte dos Amores, encostada ao muro encimado de ameias e com as armas do Duque de Aveiro nele embutidas, separando-a do quintal onde se situava a casa dos pais do meu bom amigo José Júlio, hoje um dos gerentes da Casa Espanhola, da Rua Direita: o senhor João Gualter Dias, o sapateiro do sítio, casado com a senhora Maria Lourenço, uma das três lavadeiras profissionais dos tanques anexos. Foram estes os pais de prole numerosa: do Amílcar, do Jonas, da Violeta, da Verídica, do António e, claro, do José Júlio. Perfazendo o outro lado do recinto, para sul, ficava a casa da senhora Constância, mãe da senhora Armanda Caçola e da senhora Carolina, esta casada que foi com o senhor Pinheiro, barbeiro do Seminário e de quase toda a gente do bairro.

A dona Carolina, mãe do meu amigo Fernando Pinheiro, também era lavadeira profissional nos tanques da Fonte dos Amores, autêntica lavandaria de então desta cidade de Aveiro. Completando o trio das profissionais, havia ainda a senhora Maria dos Lençóis, sogra do ti Damásio e mãe da Maria Helena e da Marília. Tudo isto sem esquecer o ti Norberto da Concertina, pai do músico José Vieira Rodrigues, meu velho colega da escola primária, que toda a gente conhecia e continua, felizmente, a conhecer por Fagote. E o senhor Neiva, pai da Odete, do Carlos e da Joaninha, já falecidos, e da Mininha e da Marília que se veio, posteriormente, a casar com o grande artista aveirense, o barrista e pintor cerâmico Zé Augusto. Vizinha da minha avó Joaninha, vivia, paredes-meias, a senhora Blandina, casada com o primeiro-sargento Agenor. Do lado de lá da Travessa da Fonte dos Amores, ficava a casa da senhora Miquinhas do Bagão, este também sargento no Regimento de Infantaria 10, ambos pais dos meus amigos Amílcar e Carlos Bagão. E, mesmo ao lado, morava a senhora Amandina, casada com o senhor Tobias, que andava ao mar, no bacalhau, à semelhança do meu pai Manuel.

A relva onde se corava a roupa de meio Aveiro era também o nosso recreio. Era lá que se jogava “à bandeira”, à “macaca”, à “mona” e ao “pião”, à “malha”, ao “berlinde”, à “uma-lá-uma”, às escondidas, aos “índios e cowboys”, atirando flechas de varetas de guarda-chuva, onde se corria ao “arco” com rodas de bicicleta, sem aros, que se compravam no senhor Raul das Cinco Bicas e com carros feitos de caixotes de madeira. Era lá que se trocavam os “bichos” e os “jogadores” da colecção. Era lá que se combinavam as “penhoras”. Era lá que, de vez em quando, se rachava uma cabeça. Era lá que surgiam os motivos fortes para largarmos à desfilada até às nossas casas, lavados em lágrimas que de pronto ficavam secas por conta de adequada reprimenda. Era para lá que fugíamos quando éramos apanhados a fazer alguma das nossas pelo fiscal da Câmara, o senhor Evaristo. E continuava a ser o nosso refúgio sempre que o senhor Adriano, guarda do Parque, nos surpreendia a cortar uma cana-da-índia para fazer uma “pesca” para o Poço de Santiago. Este percurso, que em si mesmo já era uma aventura, facultava-nos, nas alturas próprias do ano, a apanha das folhas de amoreira para os bichos-da-seda, que criávamos em caixas de cartão que íamos pedir às sapatarias.

Era lá que nos juntávamos, quando íamos buscar um jarro de água, ou quando íamos buscar leite à vacaria do doutor Pompeu Cardoso, na Rua das Pombas, e que o senhor Carlos, responsável pelos animais, (e que tinha tanto de bom como de alto e forte), nos dava a provar, fazendo com que o leite saísse de jacto, quente, direitinho do úbere da vaca para a nossa boca, aberta a preceito. Era por lá que eu parava um pouco a caminho da casa do senhor Vieira, grande lavrador que vivia já quase fora de portas, no meio dos campos de Santiago, numa linda vivenda, onde vim a descobrir um violão saído das mãos de artista do meu avô materno, António Gaspar, melómano amigo do saudoso fundador das Faianças dos Santos Mártires e da Fonte Nova, o senhor João Aleluia que, para além de brilhante empreendedor industrial, foi talentoso pintor cerâmico.

Voltarei a esta Fonte dos meus Amores por conta de algumas coisas que, aqui e agora, deixo somente apontadas. Ainda que a saudade dos tempos idos custe e roa.

GASPAR ALBINO 7-02-2005

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7 - A Torre de Anto na vertigem poética de Mário de Sá-Carneiro     8 - Notícias breves da Escola
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