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BOLETIM CULTURAL E RECREATIVO - SECUNDÁRIA JOSÉ ESTÊVÃO - AVEIRO


 


A FONTE DOS meus AMORES - I
Quase um conto de Natal

 


A minha filha tinha-nos pedido para ficarmos com as suas crianças pois tinha que se deslocar a Lisboa com o marido. Já não era a primeira vez que tal acontecia. Mas, para mim e para a minha mulher, é sempre uma alegria poder desfrutar da sua presença, com tudo o que ela implica: uma proximidade sem interferências de qualquer espécie, permitindo um aumentar das permanentes descobertas que os nossos netos nos vão facultando.

Chegada a noite, não sei bem como, dei comigo a ir dormir numa cama com o meu neto João, enquanto a minha mulher se ia acomodar noutra com a minha neta Ana. O tamanho deles já não permitia que dormíssemos todos juntos como até há não muito tempo tinha sido possível.

Foi uma noite memorável, daquelas que ficam para sempre.

O João dormiu de um fôlego. Não estranhou nada; parecia um anjo; parecia o meu menino Jesus. Aí pelas oito da manhã abriu os olhos, deu comigo a seu lado e sorriu. Aconcheguei-o e perguntei-lhe se tinha dormido bem, se estava a gostar da cama quentinha. Respondeu-me com um aceno afirmativo. Eu já o estava a ver, aí desde as seis da manhã, a apreciar o seu sossego e a fazer aquilo que faço todos os dias a partir do momento em que acordo: uma revisão da véspera, um ordenar de ideias para o dia que começa e, depois, o deixar que do passado vão saltando reminiscências, vislumbres mais ou menos definidos daquilo que vivi, do que tenho vivido.

Ao olhar para o meu neto, irresistivelmente me veio à ideia a primeira noite, das poucas, em que dormi com o meu avô “ti Luís Manco”. Tinha-me desafiado para ir com ele, lá para o esteiro de Esgueira, pescar à chincha. Teríamos de partir logo de madrugada, por volta das cinco horas. Na minha meninice dos oito anos, aceitei, verdadeiramente encantado, o desafio que me fora lançado. Ao fim da tarde da véspera, despedi-me da minha avó materna, Joaninha, com quem vivia diariamente, e lá fui eu de longada até à Beira-Mar, para casa dos meus avós paternos. A porta do pequeno aido, como sempre, estava no trinco. Mal dera dois passos à direita e já estava dentro da cozinha de chão batido, coberto de junco. Só por o calcar, o seu cheiro saltava com uma frescura intensa, extremamente agradável. O meu avô Luís já me esperava, sentado no seu banquito a que ele sempre chamava de mocho, na lareira rasa. No brasido, a panela preta de ferro fundido, de três pés, continha uma outra, onde, em lento banho-maria, descobri que estava a fazer mais uma das suas maravilhosas caldeiradas de peixe. A minha avó Guilhermina estava a acabar de pôr os talheres e os copos na mesa baixa à volta da qual já estavam colocados mais três mochos. Cumprimentei-os, como sempre fora educado a fazer, com um beijo. Como sempre, também, senti que estava a ser recebido com incontida alegria. Aqueles meus avós gostavam mesmo muito de mim, apesar de eu não viver sempre com eles.

Em casa da minha avó Joaninha, viúva e matriarca de família larga, comia-se numa sala de jantar, com uma mesa e cadeiras normais, sobre um soalho de sã madeira de pinho, sempre muito lavado com sabão amarelo. Por essa altura morávamos num primeiro andar da então chamada rua de Ílhavo, mesmo em frente ao desaparecido posto da Polícia de Viação e Trânsito.

Ir comer a casa dos meus avós paternos, para mim era verdadeiramente uma festa. Tudo era diferente. Era a nossa beira-mar no seu mais profundo, na rua que levava à capelinha da Nossa Senhora das Febres, paralela ao canal de São Roque. Uma casinha térrea, onde só a sala do Senhor e os quartos tinham soalho. O resto era tudo de terra batida coberta de junco. Vi a minha avó Guilhermina levar junto do meu avô uma travessa redonda, de esmalte azulado, a que chamava bacia. E foi para ela que o meu avô foi tirando da panela, com enorme cuidado, as peças de peixe e as rodelas de batata à mistura com quartos de cebola. Disse-me que tinha cozinhado tudo com um pouco de unto de pão. Por cima da caldeirada, deitou um fio de azeite e um pouco de vinagre de vinho branco. Ainda hoje tenho saudades do cheirinho maravilhoso que se desprendia da comida. A minha avó trouxe para a mesinha a bacia. Só então percebi porque não tínhamos pratos. Era directamente da bacia que cada um de nós ia tirando a sua garfada. Sempre que se repetiu, pela minha vida fora, este jeito de comer, senti que se conjugava de forma admirável a palavra comungar. Quer a minha avó, quer o meu avô iam levando à boca, alternadamente, o pequenito garrafão do vinho tinto que repousava sobre o junco, no meio dos dois. A broa era uma delícia, acabada de sair do forno da padaria próxima do Zé Nhã. A seguir ao conduto, a minha avó foi à panela que continuava sobre o brasido para servir umas malgas da sopa da caldeirada. Com este remate de eleição, o aconchego das nossas barrigas ficou perfeito. Os meus avós falaram ainda um pouco, mas, a breve trecho, a minha avó despediu-se de nós e foi para o seu quarto. Eu fiquei com o meu avô até que ele se agarrou à bengala e se dirigiu para uma cama de casal que havia numa sobreloja, do lado da lareira, para a qual se subia desde o chão da cozinha por uma estreita escada servida de um tosco corrimão de madeira. Ele tinha-me dito para esperar um pouco enquanto se preparava para se deitar. Chamou-me logo de seguida. Subi e fui dar com ele, com uma camisa vestida que lhe chegava até aos pés (parecida com as da minha mãe…) e um barrete enfiado na cabeça. Nunca tinha visto nada assim! Vesti o meu pijama e o meu avô disse-me para me deitar do lado de dentro da cama, pois que, assim, dormiria mais tranquilo. Deu-me um beijo na cara, afagou-me o cabelo e desejou-me um bom sono. Tudo era tão novo para mim que até estava cansado. Contudo ainda me ficou nos ouvidos o dizer-me que não poderíamos perder a maré e, por isso, tínhamos que dormir depressa.

Tudo isto me foi perpassando pela cabeça e ainda o meu neto João dormia a meu lado. Quando ele acordou, não resisti a contar-lhe estes momentos que eu tinha vivido há já mais de meio século. Ele ouviu tudo com um silêncio religioso, com uma enorme atenção. No fim, a rir-se, com os seus olhos matreiros, disse-me:

– Avô, ainda te hei-de ver de camisa e barrete enfiados como o teu avô Luís Manco.

GASPAR ALBINO – NATAL 2004

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1 - Editorial      2 - Contos tradicionais portugueses     3 - Dez milhões de estrelas
4 - A Fonte dos meus Amores    5 - As raízes da Arte Abstracta - 1910 a 1920      6 - Angústia para um Natal
7 - A Torre de Anto na vertigem poética de Mário de Sá-Carneiro     8 - Notícias breves da Escola
9 - Evolução da vida - História por acabar     10 - Escrita da Casa - Poesia     11 - Hora do Recreio


 

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