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BOLETIM CULTURAL E RECREATIVO - SECUNDÁRIA JOSÉ ESTÊVÃO - AVEIRO


 

O QUE DEUS FAZ É PELO MELHOR


Havia um médico, bom homem, em corte de um poderoso rei, sem refolho de malícia, que visitando Sua Alteza, ainda que o achasse afligido com qualquer trabalho ou dor não mostrava entristecer-se, mas, aplicados os remédios que entendia lhe eram necessários, consolava el-rei dizendo: que se não agastasse, que sofresse seu trabalho com paciência, porque tudo o que Deus faz é pelo melhor.

Aconteceu que morreu o príncipe herdeiro do reino, pelo que el-rei esteve encerrado e muito triste; e querendo este médico visitá-lo e consolá-lo, como todos faziam, o fez com as palavras de seu costume, dizendo-lhe:

— Senhor, não vos agasteis tanto, que seja ocasião de perda de vossa pessoa; tudo que Deus faz é pelo melhor.

El-rei não teve paciência a este dito em tal tempo, e disse:

— Que pior me podia ser a mim acerca do príncipe, que morrer-me ele? Prometo de me vingar deste simples e ver se lhe dará por melhor a morte que lhe mandarei dar, se deixá-lo viver.

E chamou dois homens, que eram para isso, e disse-lhes:

— Ide após Fuão, que agora vai daqui, e dizei-lhe que lhe quereis dar um recado meu, e como chegar a ouvi-lo matai-o que eu o mando; não temais a justiça.

Os quais foram a casa do médico e acharam a porta da escada fechada, porque, como todos traziam dó pelo príncipe, ele também quando chegou a sua casa vinha muito afrontado, e para comer despiu-se por desabafar, ficando em calças e gibão, e por não ser achado assim se alguém o buscasse, que lhe pareceu que estava desonesto, mandou cerrar a porta da rua, e os que o vinham matar disseram que traziam recado de el-rei, e o médico alvoraçado com isto lançou sobre si o capuz de dó, e quis ir adiante dos moços a abrir-lhe ele a porta, e com a pressa ao descer empeçou no capuz e de tal maneira se atravessou na porta que quebrou uma perna pela coxa, de que dava grandíssimos gritos. Acudiram os servidores de casa; tirando-o dali o lançaram na cama, que os brados que dava era lastimosa coisa de ouvir. Foi curado por donas de sua casa, como ele mandou, e respondido aos homens que estavam à porta que se fossem e dissessem a Sua Alteza o que acontecera; e eles o fizeram assim. E o médico esteve mais de seis meses em uma cama, que cuidaram que morresse daquilo; porém sarou, e depois que se ergueu, coxeando da perna foi beijar as mãos a el-rei, e el-rei vendo-lhe o defeito que tinha e o trabalho passado, o quis consolar com palavras meigas; mas o médico pelo costume que tinha não aceitou consolação:

— Não me pesa disso, porque o que Deus faz é pelo melhor.

Ouvido por el-rei e visto como em causa própria, teve-o dali por diante por bom homem, e perdeu o rancor que contra ele tinha; e visto na verdade ser por melhor o quebrar-lhe a perna, que se a não quebrasse morrera, como ele mandava, lhe fez mercê para seu gasto, e aceitou seu conselho.

(Trancoso, Contos e Histórias, parte II, conto III.)

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Nota: Acha-se no Conde de Lucanor, de D. João Manuel, n.º XVII (ed. 1642, fl. 81, v). Indubitavelmente esta redacção do século XIV tem uma fonte árabe. Pág. 78 deixámos outra redacção portuguesa do msanuscrito do século XIV, Orto do Esposo.

In: Teófilo Braga, Contos Tradicionais do Povo Português, col. Portugal de Perto n.º 15, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1987, vol. II, pp. 128-129. Ilustração de Gaspar Albino.


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