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BOLETIM CULTURAL E RECREATIVO - SECUNDÁRIA JOSÉ ESTÊVÃO - AVEIRO


 

A TORRE DE ANTO NA VERTIGEM POÉTICA DE MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO

 
 

O poeta “Anto”, de Sá-Carneiro, é uma homenagem a António Nobre, crismada com o nome do seu exílio literário.

A primeira quadra testemunha, pela fantasia das imagens, uma capacidade criadora que se realiza pela transposição de sensações ou sentimentos para a paisagem sugerida. As abstracções contidas em certas notações psicológicas como “enlevos” ou “saudades” são, de alguma forma, objectivadas nas sucessivas aproximações ao universo das impressões sensoriais. O tempo outonal é sugerido na atmosfera de abandono e melancolia, nas formas esguias e na nostalgia do luar. Este quadro desmaia na efemeridade de “febres” delgadas ou vaporosos “enlevos” e na inconsistência cinética da paisagem. O ambiente criado reveste-se de um pendor onírico através da elevação febril do ópio ou do abandono à volúpia. O quadro evasivo é mesclado de erotismo e sensualidade.

Depois de ter sido concebida, na primeira estrofe, a ilusão ambiental, é esboçado, na estância seguinte, o perfil poético de Anto. A veia aristocrática surge como nota dominante nos epítetos que moldam a segunda parte do poema (“pajem”, “príncipe” e “Senhor feudal”). Curiosamente, esta sucessão de sabor heráldico combina com a “Memória” profética de António Nobre: «Num berço de prata, dormia deitado, / três moiras vieram dizer-lhe o seu fado / (E abria o menino seus olhos tão doces): / — Serás um príncipe! mas antes... não fosses.» A sua estirpe poética vaticina-lhe o isolamento, o exílio ou a solidão. E a evocação artística do poeta, enclausurado na torre de marfim, é geminada com o refúgio do “insulado” na Torre de Anto. Nela, o ser predestinado viveu uma curta existência de encantamento e idealidade poética. A vivência do poeta surge também marcada pelo estigma do sentimentalismo (com a expressão eterna de doçura no olhar) e esta característica também figura no poema de Mário de Sá-Carneiro com os registos psicológicos contidos em “ternuras” e “carícias magoadas”. Ainda sob o signo do destino, a vida definha num quadro crepuscular de melancolia outonal, de acordo com a sugestão paisagística do poeta de “Indícios de Oiro”. Assim, a debilidade da natureza acompanha a fragilidade e decadência da vida humana.

A presença de António Nobre na obra de Mário de Sá-Carneiro veicula a consciência do significado dessa figura para a geração do “Orpheu”, destacando-se como precursor da poesia moderna. Segundo Fernando Pessoa, “de António Nobre partem todas as palavras com sentido lusitano que de então para cá têm sido pronunciadas."

No estudo crítico de João Gaspar Simões que prefacia as "Poesias” de Mário de Sá-Carneiro, este nome é citado a par de António Nobre em várias passagens desse texto introdutório. Ambos são referidos no grupo dos poetas considerados intensamente subjectivos ou introvertidos. O tema fundamental de cada um deles é a própria existência individual (“Nobre fala de si mesmo; Sá-Carneiro é de si mesmo que fala.”). A marca do subjectivismo alastrou na atmosfera do Simbolismo, conferindo à expressão literária nacional, corporizada por esses dois poetas, entre outros, uma grande originalidade. No fim da exposição de João Gaspar Simões, é revelado ainda um outro ponto de contacto entre os dois poetas, apreciando a sua evolução literária: “Sá-Carneiro era umas vezes vulcanicamente metafórico, outras quase reflectidamente analítico. Mas na fase derradeira há uma modificação completa. Sá-Carneiro deixa de todo o metaforismo abstracto: faz-se homem concreto. A voz de António Nobre vem fundir-se com a sua.”

 

Caprichos de lilás, febres esguias,
Enlevos de ópio — íris-abandono...
Saudades de luar, timbre de Outono,
Cristal de essências langues, fugidias...

O pajem débil das ternuras de cetim,
O friorento das carícias magoadas;
O príncipe das Ilhas transtornadas —
Senhor feudal das Torres de marfim...
Mário de Sá-Carneiro, Poesias.

Paula Tribuzi


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