BOLETIM   CULTURAL   E   RECREATIVO   DO   S.E.U.C.  -   J.  ESTÊVÃO


PÁGINA 1
Editorial
Alcino Carvalho
PÁGINA 2
Um presépio humano
Bartolomeu Conde
PÁGINA 3
Contos tradicionais portugueses
PÁGINA 4
A reforma do
SEUC
João Paulo
PÁGINA 5
Isto de Tradi-
ções e...
Henrique Oliveira
PÁGINA 6
Cenários de
Violência
Isabel Bernardino
PÁGINA 7
Plantas carní-
voras
João Paulo
PÁGINA 8
Receitas para
o fígado
H.J.C.O.
PÁGINA 9
Sebastião da
Gama

Paula Tribuzi
PÁGINA 10
Aveiro, de vila
a cidade
Claudete Albino
PÁGINA 11
Hora do
Recreio
PÁGINA 12
Fac-símile da 1ª página
 

Sebastião da Gama:
O Mistério da Criação Poética

                                                                                 Ana Paula C. Dias Tribuzi

Ao longo da obra de Sebastião da Gama figuram várias referências ao Poeta e à sua relação com a escrita, delineando certos contornos que poderiam gizar um quadro conceptual de arte poética.

No livro Serra-Mãe, o texto com o mesmo título apresenta o poeta numa ligação embrionária com a Natureza e a sua voz errante funde-se com o murmúrio da terra quase adormecida. A noite solitária convida o ente poético a procurar a verdade dos sonhos, encantado também pela música da Serra. No poema "Céu", a condição do poeta é igualmente sugerido numa relação afectiva com o universo — uma fusão profunda, motivada por um desejo essencial que faz vibrar “os soluços do Sol quando declina”, “as carícias azuis do Luar de Agosto” ou “os tons rosa da Tarde que se fina...”. Numa noite de amor, aliviado do peso humano, o poeta mergulharia numa sede imensa de comunhão cósmica. Este sentido de união corpo-terra projecta uma outra direcção na “Elegia para a minha campa”: a via da elevação espiritual, já pressentida no desprendimento humano idealizado no poema “Céu”. Em “Excesso”, num delírio febril de mordedura de serpente, o poeta ambiciona o sono feérico da alma ausente, desligada do ventre telúrico.

A última secção da obra Serra-Mãe contempla um texto fundamental para a análise da arte poética de Sebastião da Gama.

 

                                       POESIA

Ai deixa, deixa lá que a Poesia
no perfume das flores, no quebrar
das ondas pela praia,
na alegria
das crianças que riem sem porquê
— deixa-a lá que se exprima, a Poesia.

Fica sentado aí onde estás, Poeta,
e não mexas os lábios nem os braços:
deixa-a viver em si;
não tentes segurá-la nos teus braços,
não pretendas vesti-la com palavras...

Se a queres ter,
se a queres sempre ver pairando à flor das coisas, fica aí
no teu cantinho, e nem respires, Poeta, e não te bulas,
p’ra que ela não dê por ti.

Não a faças fugir, toda assustada
Com a tua presença...
Deixa-a, nua, pairando à flor das coisas
que ela não sabe que a viste,
nem sabe que está nua,
nem sequer sabe que existe...

 

O próprio título — “Poesia” — prenuncia uma visão metapoética do acto de criação. O texto é uma configuração dialógica e didáctica que coloca o poeta em situação de aprendiz, ao encontro da poesia. A revelação surge “pairando à flor das coisas”, despida da presença do Poeta. Esta concepção estética encontra eco, de forma teorizada, num fragmento de O Segredo é Amar: «O verso (...) é um rito, uma invocação». É proposta a mesma atitude mística de acesso ao conhecimento poético. A fonte expressiva brota da própria Poesia, confundida com o perfume das flores, a música do mar ou a pureza da infância.

Esta mensagem repercute-se também em várias composições do Cabo da Boa Esperança. Na “Canção inútil”, o sujeito assume-se como “o Poeta das manhãs fecundas”, num hino à natureza. É ainda a manhã, sentida poeticamente pelo brilho casto e absoluto de um olhar extasiado, que aflora no texto “As Crianças”. A mesma concepção artística é ilustrada no poema ritmado pelo refrão «Da minha janela / vê-se a Poesia».

A transparência matinal alterna, em alguns textos, com a densidade noctívaga, invadida pelos sentidos agudos do poeta. “Nocturno” é um quadro sinfónico de murmúrio e de silêncio para os “ouvidos atentos do Poeta”. Esta empatia adquire toda a plenitude afectiva numa expressão modelar contida na obra Campo Aberto: «Noite, Mãe dos poetas».

Como ilustração peculiar da arte de Sebastião da Gama, merece uma referência documental o retrato esboçado nas palavras seguintes:

                                       O POETA

                                              1

Era nas suas mãos que terminavam
as coisas infinitas e as finitas.
Por isso as suas mãos eram abismos
aonde se perdia o Pensamento.

                                              2

Tudo ganhou sentido num momento...
Água mansa com choupos reflectidos,
teu olhar descansava no do Poeta;
e a poesia das coisas sem Poesia,
que no olhar do Poeta dormitava,
de súbito nas coisas acordava
— tão natural, tão íntima, tão própria,
como se fora delas que nascera...
(in Cabo da Boa Esperança)

 

O Poeta abrange toda a dimensão cósmica e confere sentido à vida. É a magia do criador que desvenda a existência à sua própria imagem.

A visão do poeta e da sua obra está ainda patente, de modo expressivo, em várias composições do livro Itinerário Paralelo. Um dos textos, representativo em termos conceptuais, com o título genérico de “Forma”, modula o poeta no sentido da perfeição, de acordo com um princípio estético de criação. Tal busca colide, porém, com a dimensão infinita do mundo do espírito, num eterno jogo dialéctico. Também numa outra composição, a poesia é concebida, ingenuamente, como procura incessante de “Expressão”, depois sentida como profunda revelação, numa aproximação da génese criadora.

Extremamente significativo quanto à concepção de arte é o ritual de “Sagração” que baptiza o Poeta segundo uma ordem divina e num compromisso esotérico: «eu te sagro Poeta, meu Irmão, / a mandato de Deus, / que no sagrar-te por meus lábios / para sempre me dá o Seu perdão».

Por fim, no livro Pelo sonho é que vamos, o texto “Viesses tu, Poesia” atribui à mensagem poética, em tom profético, o mistério da definição universal: «Bem sei: antes de ti foi a Mulher, / foi a Flor, foi o Fruto, foi a Água... / Mas tu é que disseste e os apontaste: / — Eis a Mulher, a Água, a Flor, o Fruto. / E logo foram graça, aparição presença, / sinal...».

Ana Paula C. Dias Tribuzi


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