Ao longo da obra
                        de Sebastião da Gama figuram várias referências ao
                        Poeta e à sua relação com a escrita, delineando
                        certos contornos que poderiam gizar um quadro conceptual
                        de arte poética.
                        No livro Serra-Mãe,
                        o texto com o mesmo título apresenta o poeta numa
                        ligação embrionária com a Natureza e a sua voz
                        errante funde-se com o murmúrio da terra quase
                        adormecida. A noite solitária convida o ente poético a
                        procurar a verdade dos sonhos, encantado também pela
                        música da Serra. No poema "Céu", a
                        condição do poeta é igualmente sugerido numa
                        relação afectiva com o universo — uma fusão
                        profunda, motivada por um desejo essencial que faz
                        vibrar “os soluços do Sol quando declina”, “as
                        carícias azuis do Luar de Agosto” ou “os tons rosa
                        da Tarde que se fina...”. Numa noite de amor, aliviado
                        do peso humano, o poeta mergulharia numa sede imensa de
                        comunhão cósmica. Este sentido de união corpo-terra
                        projecta uma outra direcção na “Elegia para a minha
                        campa”: a via da elevação espiritual, já
                        pressentida no desprendimento humano idealizado no poema
                        “Céu”. Em “Excesso”, num delírio febril de
                        mordedura de serpente, o poeta ambiciona o sono feérico
                        da alma ausente, desligada do ventre telúrico.
                        A última secção
                        da obra Serra-Mãe contempla um texto fundamental
                        para a análise da arte poética de Sebastião da Gama.
                         
                                                              
                        POESIA
                        Ai
                        deixa, deixa lá que a Poesia
                        no perfume das flores, no quebrar
                        das ondas pela praia,
                        na alegria
                        das crianças que riem sem porquê
                        — deixa-a lá que se exprima, a Poesia.
                        Fica
                        sentado aí onde estás, Poeta,
                        e não mexas os lábios nem os braços:
                        deixa-a viver em si;
                        não tentes segurá-la nos teus braços,
                        não pretendas vesti-la com palavras...
                        Se
                        a queres ter,
                        se a queres sempre ver pairando à flor das coisas, fica
                        aí
                        no teu cantinho, e nem respires, Poeta, e não te bulas,
                        p’ra que ela não dê por ti.
                        Não
                        a faças fugir, toda assustada
                        Com a tua presença...
                        Deixa-a, nua, pairando à flor das coisas
                        que ela não sabe que a viste,
                        nem sabe que está nua,
                        nem sequer sabe que existe...
                         
                        O próprio título
                        — “Poesia” — prenuncia uma visão metapoética
                        do acto de criação. O texto é uma configuração
                        dialógica e didáctica que coloca o poeta em situação
                        de aprendiz, ao encontro da poesia. A revelação surge
                        “pairando à flor das coisas”, despida da presença
                        do Poeta. Esta concepção estética encontra eco, de
                        forma teorizada, num fragmento de O Segredo é Amar:
                        «O verso (...) é um rito, uma invocação». É
                        proposta a mesma atitude mística de acesso ao
                        conhecimento poético. A fonte expressiva brota da
                        própria Poesia, confundida com o perfume das flores, a
                        música do mar ou a pureza da infância.
                        Esta mensagem
                        repercute-se também em várias composições do Cabo
                        da Boa Esperança. Na “Canção inútil”, o
                        sujeito assume-se como “o Poeta das manhãs fecundas”,
                        num hino à natureza. É ainda a manhã, sentida
                        poeticamente pelo brilho casto e absoluto de um olhar
                        extasiado, que aflora no texto “As Crianças”. A
                        mesma concepção artística é ilustrada no poema
                        ritmado pelo refrão «Da minha janela / vê-se a
                        Poesia».
                        A transparência
                        matinal alterna, em alguns textos, com a densidade
                        noctívaga, invadida pelos sentidos agudos do poeta. “Nocturno”
                        é um quadro sinfónico de murmúrio e de silêncio para
                        os “ouvidos atentos do Poeta”. Esta empatia adquire
                        toda a plenitude afectiva numa expressão modelar
                        contida na obra Campo Aberto: «Noite, Mãe dos
                        poetas».
                        Como ilustração
                        peculiar da arte de Sebastião da Gama, merece uma
                        referência documental o retrato esboçado nas palavras
                        seguintes:
                                                              
                        O POETA
                                                                     
                        1
                        Era
                        nas suas mãos que terminavam
                        as coisas infinitas e as finitas.
                        Por isso as suas mãos eram abismos
                        aonde se perdia o Pensamento.
                        
                                                                     
                        2
                        Tudo
                        ganhou sentido num momento...
                        Água mansa com choupos reflectidos,
                        teu olhar descansava no do Poeta;
                        e a poesia das coisas sem Poesia,
                        que no olhar do Poeta dormitava,
                        de súbito nas coisas acordava
                        — tão natural, tão íntima, tão própria,
                        como se fora delas que nascera...
                        (in Cabo da Boa Esperança)
                        
                         
                        
                        O Poeta abrange
                        toda a dimensão cósmica e confere sentido à vida. É
                        a magia do criador que desvenda a existência à sua
                        própria imagem.
                        A visão do poeta
                        e da sua obra está ainda patente, de modo expressivo,
                        em várias composições do livro Itinerário
                        Paralelo. Um dos textos, representativo em termos
                        conceptuais, com o título genérico de “Forma”,
                        modula o poeta no sentido da perfeição, de acordo com
                        um princípio estético de criação. Tal busca colide,
                        porém, com a dimensão infinita do mundo do espírito,
                        num eterno jogo dialéctico. Também numa outra
                        composição, a poesia é concebida, ingenuamente, como
                        procura incessante de “Expressão”, depois sentida
                        como profunda revelação, numa aproximação da génese
                        criadora.
                        Extremamente
                        significativo quanto à concepção de arte é o ritual
                        de “Sagração” que baptiza o Poeta segundo uma
                        ordem divina e num compromisso esotérico: «eu te sagro
                        Poeta, meu Irmão, / a mandato de Deus, / que no
                        sagrar-te por meus lábios / para sempre me dá o Seu
                        perdão».
                        Por fim, no livro Pelo
                        sonho é que vamos, o texto “Viesses tu, Poesia”
                        atribui à mensagem poética, em tom profético, o
                        mistério da definição universal: «Bem sei: antes de
                        ti foi a Mulher, / foi a Flor, foi o Fruto, foi a
                        Água... / Mas tu é que disseste e os apontaste: / —
                        Eis a Mulher, a Água, a Flor, o Fruto. / E logo foram
                        graça, aparição presença, / sinal...».
                        Ana Paula C. Dias
                        Tribuzi