Como
                        dizia um dos maiores apreciadores do humor e da boa
                        pedagogia subjacente a uma obra que aparentemente tinha
                        como objectivo distrair os leitores, «rir é próprio
                        do homem». E o rir, desde que não alarvemente e
                        denotante de uma certa insanidade mental, é uma atitude
                        saudável, bem mais agradável que o chorar, apesar
                        desta última poder também assumir uma função
                        importante na «psique» humana, na medida em que uma
                        dor chorada é uma dor aliviada.
                        Já
                        agora, porque empregámos uma frase que não é nossa,
                        mas que apropriámos e consideramos como rigorosamente
                        certa, convém lembrar aquele que primeiro a proferiu e
                        que é uma ilustríssima figura da literatura europeia.
                        Estamos a referir-nos a um padre francês que, além de
                        tratar das almas dos paroquianos, procurava também
                        distraí-los e ensiná-los, desde que tivessem o cuidado
                        de fazer como os cães, que um sábio da antiga Grécia
                        considerava como o mais filósofo dos animais. E sabemos
                        que o cão era considerado o mais filósofo dos animais
                        graças a Rabelais, porque é deste célebre escritor
                        que estamos a falar. Na introdução daquela obra
                        extraordinária que dá pelo nome de «Gargântua e
                        Pantagruel», aludindo à sua gigantesca criação, onde
                        o humor e, por vezes, sequências de palavras que as
                        senhoras de bem corariam se tivessem de as pronunciar,
                        Rabelais diz-nos que rir é a atitude mais saudável que
                        o Homem pode assumir. E, por isso, na sua gigantesca
                        obra, as pessoas não devem coibir-se de rir, sempre que
                        as situações disso sejam dignas. Mas acrescenta que a
                        sua obra é muito mais do que isso. Acrescenta que o
                        leitor não deverá ficar-se pelo riso e pelo divertido
                        das situações que nos narra. Ele deverá também fazer
                        umas pausas e seguir o exemplo dos cães, quando têm a
                        felicidade de agarrar um suculento osso. E chama-nos a
                        atenção para o sábio e paciente comportamento deste
                        animal. O que é que ele faz quando encontra um bom
                        osso, que não seja excessivamente duro de roer?
                        Agarra-o na boca. Procura um lugar onde possa estar
                        sossegado e não seja incomodado por outro que lhe
                        cobice o osso. Parte o osso em bocados, utilizando a
                        paciência e a força das suas poderosas mandíbulas. E,
                        pacientemente, procura extrair-lhe a substantífica
                        moela, que é como quem diz o tutano.
                        Quando
                        lemos as aventuras, por vezes grosseiras e obscenas, mas
                        bastante hilariantes, daquela família de gigantes,
                        especialmente de Gargântua, não nos devemos ficar pelo
                        riso, mas antes deveremos procurar extrair os
                        ensinamentos subjacentes à obra. E eles são muitos,
                        inclusive de índole pedagógica. Além de criticar pelo
                        ridículo e absurdo o ensino universitário da época,
                        antecipa-nos, em muito no tempo, os ensinamentos
                        divulgados por Rousseau, especialmente no Emílio. E as
                        teorias pedagógicas presentes nestas obras continuam a
                        manter-se válidas no nosso tempo, apesar de todas as
                        inovações tecnológicas de que o ensino actual pode
                        dispor como instrumentos de aprendizagem.
                        Uma das
                        melhores formas de aumentarmos os nossos conhecimentos
                        reside na observação directa dos próprios factos, na
                        sua reflexão ponderada e também na experiência
                        reflectida dos muitos ensinamentos que a própria vida
                        nos vai fazendo adquirir. E é precisamente isto que o
                        protagonista é levado a fazer. Viaja pelo mundo e
                        adquire conhecimentos pelo contacto directo com a
                        realidade. É uma viagem que, no fundo, não passa de
                        uma visita de estudo de longa duração.
                        Se a boa
                        disposição e a vida no-lo permitirem, falaremos um
                        pouco mais alargadamente acerca disto num próximo
                        número do “Alternativas”. E na companhia do
                        próprio Rabelais, procuraremos dar a conhecer um pouco
                        da vida da gigantesca família, onde o humor e os
                        ensinamentos se cruzam.
                        Mas onde
                        é que já vamos?! Era suposto esta rubrica de
                        «receitas para o fígado» ser um espaço de boa
                        disposição e a continuação do número anterior. E
                        está-nos o seu autor para aqui a arengar com umas
                        tretas sobre pedagogia e literatura e a falar-nos de um
                        padre francês de antanho que não temos sequer o prazer
                        de conhecer.
                        
                        Têm os
                        leitores toda a razão. Por isso lhes pedimos que nos
                        desculpem. E, se tiveram paciência de lerem até aqui,
                        acabem o resto da leitura em boa disposição, porque
                        vamos respigar mais umas histórias engraçadas dos
                        nossos registos. Por enquanto, ainda temos muitas e boas
                        receitas para o fígado na compilação que começámos
                        a elaborar, in illo tempore, no tempo em que
                        começámos a ser estudantes e numa altura em que
                        andávamos com a veleidade de elaborar uma compilação
                        de textos divertidos, alguns forjados por nós, outros
                        recolhidos aqui e além e produzidos por autores
                        anónimos, que preferiram ficar no esquecimento.
                        —
                        Chiça! Este tipo nunca mais se cala. Saia lá a
                        história e deixemo-nos de conversas. — estão vocês
                        a pensar e com toda a razão.
                        Então
                        aqui vai ela. Vai, e vai muito bem! E nem vai ela,
                        porque, desta vez, vão elas. Vamos transcrever dois
                        textos autênticos. Foram recolhidos há muitos anos,
                        éramos nós ainda uma criança despreocupada e alegre,
                        mas já em idade escolar e não desprovida do sentido de
                        humor e do prazer de umas boas gargalhadas.
                        Os textos
                        que se seguem datam da década de 1950. São textos
                        produzidos por alunos que fizeram o exame da quarta
                        classe em Pombal. Vão transcritos tal como nos chegaram
                        às mãos.