A NARRAÇÃO
O vocábulo narração apresenta
actualmente uma multiplicidade de sentidos, chegando mesmo a ser utilizado
incorrectamente na mesma acepção de
narrativa. Tem a sua origem na palavra
latina NARRATIONE(M), cujo significado é 'acção de narrar, acção de tornar
conhecido'.
Se consultarmos
um dicionário de linguística[1],
encontraremos o
seguinte como definição: «Chama-se
narração [cfr. fr. récit]
a um discurso ligado a uma temporalidade passada (ou imaginada como tal)
relativamente ao momento da enunciação».
Se consultarmos
um dicionário de termos literários ou um dicionário de narratologia,
encontraremos outras definições[2].
Segundo o que
nos é indicado no dicionário de
M. Moisés, o vocábulo narração
apresenta duas acepções distintas, de acordo com a área em que se enquadra: na
oratória ou na prosa de ficção.
No campo da
oratória, a
narração é designada pelo vocábulo
narratio e constitui a «exposição pormenorizada, parcial e encarecedora»
de tudo quanto foi apresentado, de modo sintético, na proposição. Constitui o
desenvolvimento do assunto enunciado na primeira parte.
O vocábulo
narração designa também uma das quatro partes em que se divide a
epopeia (proposição, invocação,
dedicatória e narração), constituindo a componente dominante, pois é nela que se
apresenta o relato de todos os acontecimentos, de todos os episódios heróicos,
mitológicos, históricos, humorísticos, etc.
No domínio da
criação literária, o vocábulo designa um dos vários modos de expressão
literária, sendo, como já dissemos, confundido com o conceito de narrativa, isto
é, com uma das três formas naturais da literatura.
Para nós,
narração deverá entender-se não apenas como 'o acto de narrar' ou, melhor
dizendo, 'o processo de enunciação narrativa', sentido que encontraremos em
qualquer dicionário, mas igualmente como o resultado desse acto. Narração
é o acto de narrar, de contar, oralmente ou por escrito, um determinado
acontecimento, real ou fictício, um episódio sério ou humorístico, um facto
histórico, uma lenda, etc.
A narração pode
reduzir-se a um pequeno relato de acontecimentos, de modo seco, objectivo e
sintético, visando apenas a função informativa e utilitária (caso, por exemplo,
do relato de um acidente), mas pode também adquirir características que a tornem
uma leitura agradável e susceptível de despertar o interesse de qualquer leitor.
Significa isto que poderemos encarar a narração segundo duas perspectivas: numa
perspectiva funcional e utilitária, podendo reduzir-se ao simples relato
de acontecimentos; numa perspectiva artística e literária, constituindo o
grande modo de expressão literária, ao lado do diálogo, da descrição, do
monólogo e da efusão lírica.
O relato de
natureza funcional e utilitária, tantas vezes indispensável na vida prática,
apresenta uma relativa facilidade. Caracteriza-se pela sua objectividade, com
total ausência de adjectivos com valor conotativo, uma vez que ele visa
essencialmente a função informativa. Ele não admite "floreados" por parte do
autor e muito menos marcas da sua presença. Como predomina a função referencial,
deve procurar apresentar os factos objectiva e friamente, procurando que a
comunicação se estabeleça de maneira eficaz. Aquele que efectua um relato de
carácter técnico deverá ser objectivo, claro, preciso e conciso, evitando o
emprego de palavras carregadas de conotação. O seu trabalho deverá obedecer a um
plano cuidadoso, devendo os factos ser apresentados segundo uma sequência
cronológica. O relato deverá conter as respostas às questões fundamentais:
Quando? Onde? Quem? O quê? Como? Porquê?
Na sua expressão
mais simples, a
narração
funcional ou informativa poderá reduzir-se a uma notícia
de um determinado acontecimento, como é o caso, por exemplo, de todo o relato
referente a um acidente, seja ele ferroviário, rodoviário ou de qualquer outro
tipo.
Mas se efectuar
um relato de acontecimentos numa perspectiva utilitária e funcional é
relativamente fácil, tornar esse mesmo relato uma leitura agradável e cativante,
uma expressão artística e literária, ultrapassando as barreiras do trivial, é já
uma actividade mais complexa e que exige de quem a pratica o domínio de várias
aptidões: habilidade, equilíbrio, sensibilidade e conhecimentos da arte de
narrar. Daí que, quem dominar perfeitamente a
narração no
domínio literário, não terá dificuldades de maior
na criação de relatos de carácter funcional. No entanto, habilidade, equilíbrio
e sensibilidade são aptidões que não podem ser ensinadas; são aptidões que
deverão ser cultivadas e desenvolvidas por cada um. Estas adquirem-se com tempo
e perseverança, quer pela leitura de bons autores, quer pelo treino da expressão
escrita. E para o perfeito domínio da arte de narrar, torna-se indispensável a
aquisição de diversos conhecimentos, que passaremos a abordar.
Comecemos por
reflectir sobre dois textos, efectuando, primeiramente, a leitura do texto A:
Texto A
FERA ABATIDA
POR UM PADRE
Na noite de 23
de Novembro, padre de uma paróquia de Vila Real abateu a tiro um lobo corpulento
que, dias antes, pusera em alvoroço uma aldeia da região.
Na noite de 23 de Novembro, em que se registaram temperaturas baixíssimas e
caiu um forte nevão, o padre de uma paróquia de Vila Real, o Padre Vasques,
foi obrigado a deslocar-se a uma povoação isolada na encosta da Serra de
Alvão, nos limites do concelho, a fim de aí prestar a extrema unção a um seu
paroquiano. Essa povoação, com um reduzido número de habitantes, encontra-se
ainda praticamente isolada, sendo o seu acesso feito por meio de um trilho.
Durante o percurso, a pé e completamente só, quando atravessava um outeiro já
relativamente próximo da povoação, um lobo esfomeado saltou-lhe ao caminho.
Conservando a calma, o Padre Vasques empunhou a carabina, que sempre o
acompanha quando tem de se deslocar só e a horas menos convenientes a
povoações isoladas e, com dois tiros certeiros, abateu a fera.
Na manhã seguinte, populares da povoação deslocaram-se ao local para ver a
fera abatida. Verificaram tratar-se de um animal jovem e bastante corpulento,
possivelmente o mesmo que, dias antes, rondara os povoados da região,
provocando grande alvoroço entre os habitantes. O animal foi abatido com dois
tiros certeiros que, passando-lhe pela espádua, o atingiram no coração.
Tendo sido perguntado ao Padre Vasques como se sentira no momento em que foi
atacado pelo lobo, disse-nos que, «ao princípio, quando ouviu ao longe os
uivos do animal, sentiu um certo calafrio subir-lhe a espinha.» No entanto,
acrescentou que «a sua experiência de caçador lhe foi de grande ajuda, pois
procurou manter a calma e esperou que o lobo aparecesse, só tendo disparado
quando o mesmo se encontrava a cerca de trinta passos, a fim de ter a certeza
de que não desperdiçaria nenhum dos tiros.»
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Antes de
passarmos à leitura do texto seguinte, efectuemos uma pequena reflexão,
procurando dar resposta às seguintes questões:
1 - Onde
poderemos encontrar textos do mesmo tipo do transcrito?
2 - Como está
estruturado?
3 - Verifique
se responde às questões fundamentais:
3.1 - Quando?
3.2 - Onde?
3.3 - Quem?
3.4 - O quê?
3.5 - Como?
3.6 - Porquê?
4 - Poderemos
considerá-lo um texto claro, objectivo e conciso?
5 - Assinale
com uma cruz [x] a afirmação que considera mais completa:
[
] A - O texto é uma notícia jornalística.
[
] B - O texto é uma narração.
[ ] C - O
texto é simultaneamente uma narração e uma notícia jornalística.
Efectuemos agora a leitura do
texto B:
A MORTE DO LOBO
Uma noite de Novembro, caía neve e os aspectos do céu, profundamente frio,
tinham umas estrelas trémulas, lucilantes, e um luar álgido que dava às
concavidades nevadas a claridade nítida duns lagos de prata fundida.
O padre vestia polainas de saragoça assertoadas, tamancos ferrados e suspensos
nas fortes presilhas das polainas, jaqueta de peles e uma carapuça alentejana,
escarlate, que lhe abafava as orelhas. Debaixo da lapela da véstia, resguardava
a escorva da clavina, e caminhava curvado, com as mãos nas algibeiras e os olhos
vigilantes nas gargantas dos serros.
Uivos longínquos de lobo ouviam-se e punham-lhe vibrações na espinha e um terror
grande naquela imensa corda de serras, onde ele, àquela hora, se considerava o
único ente exposto a ser comido pelas feras esfomeadas.
Pulava-lhe o coração. Ao trepar a um outeiro, entaliscado de rochedos que
pareciam resvalar de encontro a ele, ouviu o uivo ali perto, para lá da espinha
do serro. Tirou a clavina do sovaco e, lívido, com a sensação estranha do fígado
despegado, meteu o dedo tremente, automático, no gatilho. Fez um acto de
contrição: provava quanto as religiões são importantes, urgentes, nas crises,
nos conflitos sérios do homem com o lobo. Esperou. A fera assomara na lomba
do outeiro, recortando-se esbatida no horizonte branco com uma negrura imóvel,
sinistra: parecia um bronze, um emblema de sepulcro.
Ela quedou-se por largo espaço num aspecto de admiração, de surpresa. Depois,
descaiu sobre as patas traseiras, com ares contemplativos de uma pacatez
fleumática. Mediam trinta passos entre a fera e o frade. Estava ao alcance da
bala o lobo; mas o frade, caçador astuto, manhoso, receava perder um dos tiros.
Pôs-lhe a pontaria com um gesto de espalhafato; dava gritos como quem açula
cães:
─ Boca! Pega!
Cerca! Aí vai lobo!
Ecos respondiam e a fera, menos versada na física dos sons reflexos, olhava
crespa, espavorida, para o lado em que percutiam os brados. Ergueu-se e desceu,
mui de passo, com uns vagares irónicos, com a cauda de rojo e o dorso eriçado, a
ladeira da colina.
O padre via-a negrejar na linha flexuosa do declive. Pensou retroceder, mas o
lugarejo de Felícia estava mais perto que a sua aldeia e, para aquele lado,
latiam cães dum faro que adivinha o lobo antes de lhe ouvir o uivo e o fariscam
pela inquietação das reses nos currais. Trepou afoito ao teso do outeiro.
Ganhara ânimo: bebera uns tragos de aguardente duma cabaça atada com o
polvorinho no correão.
Sentiu-se capaz de afrontar o rebelde, se ele o não respeitasse como rei da
criação, segundo afirmativas de teólogos que nunca viram lobo. Do topo
olhou para baixo: não o avistou. Carcavava-se um algar emaranhado de bravio
espesso onde se embrenhara.
Estugando o passo, ganhou uma chã ladeada de extensas leiras de feno, alvejantes
como um estendal de lençóis; e, quando olhava para trás, receoso, viu a
alimária, a grandes passos, com a cabeça alta, a atravessar a leira da esquerda,
parecendo querer cortar-lhe o passo na extrema do caminho que entestava com a
aldeia.
O padre agachou-se, coseu-se com o valo de urze e giestas que formavam o tapume
das terras cultivadas, e, muito derreado, arquejando com o dedo no gatilho e a
fecharia rente da barba, caminhou paralelo com o lobo, que o farejava de focinho
anelante e as orelhas fitas; e, assim que a fera passou de perfil em frente do
tapigo, o rei da criação, que o era pelo direito do bacamarte, despediu-lhe a
primeira bala, com a destra pontaria de quem havia já matado águias com
zagalotes.
O lobo, varado pela espádua até ao coração, decaiu sobre um dos quadris,
escabujou em roncos frementes, espargindo flocos de neve, ergueu-se ainda,
inteiriçado numa grande agonia, e morreu.
CAMILO CASTELO
BRANCO
Façamos também uma breve
reflexão sobre o texto que acabámos de ler.
Procure
igualmente responder às questões:
1 - Qual o
assunto do texto?
2 - Poderemos
estabelecer alguma relação entre este e o texto anterior?
2.1 - Porquê?
3 - Verifique
se o texto B também responde às questões fundamentais indicadas para o texto A.
4 - Assinale
com uma cruz o texto que melhor corresponde às afirmações:
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A |
B |
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4.1 - Dos dois
textos, o mais sintético é o texto
............................................................... |
[ ] |
[ ] |
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4.2 - Dos dois
textos, o mais completo é o texto .............................................................. |
[ ] |
[ ] |
|
4.3 - O que
melhor permite visualizar os factos é o texto
................................................ |
[ ] |
[ ] |
|
4.4 - O que
melhor mostra as reacções e sentimentos da personagem é o texto........
|
[ ] |
[ ] |
|
4.5 - O que
mais me agradou é o texto
.............................................................................. |
[ ] |
[ ] |
|
5 - Determine a
estrutura do texto B.
6 - No texto B,
encontram-se partes sublinhadas. Serão importantes para o texto, ou será que
este ficaria melhor se o Autor as não tivesse incluído?
Verificamos, pela leitura dos
dois textos, que, embora visando objectivos diferentes, ambos abordam um facto
que, se não é o mesmo, é pelo menos bastante idêntico. O primeiro, mais
sintético, apresenta os factos de uma maneira seca, objectiva, limitando-se
apenas ao essencial dos acontecimentos; o segundo, mais desenvolvido,
permite-nos acompanhar toda a situação de uma maneira mais pormenorizada,
permite-nos imaginar e viver a situação recriada pelo autor, dada a riqueza de
informação. Sabemos como se vestia o padre, sabemos como reage e quais as
sensações sentidas perante as diferentes situações. Permite-nos acompanhar a par
e passo o desenrolar dos acontecimentos como se os fôssemos também vivendo.
Escusado será dizer que se trata de um texto literário e, como tal, fictício.
Exceptuando os apartes do narrador, por nós sublinhados e que poderemos
considerar como supérfluos, perfeitamente dispensáveis e extemporâneos, tudo o
mais contribui para nos espevitar o interesse e manter a expectativa, que só
termina com a morte do lobo e o afastamento do perigo.
Qualquer um dos
textos responde às questões fundamentais formuladas na alínea 3 das questões de
reflexão, que apresentámos a seguir a cada um deles, constituindo uma narração.
Ambos apresentam um relato organizado de acontecimentos, reais ou imaginários,
constituídos pelo conjunto de elementos obtidos na resposta às questões
fundamentais. Esse conjunto de elementos fundamentais constitui aquilo que
designamos por «elementos
constitutivos da narração ou, como é
habitualmente designado nos manuais, por «categorias da
narrativa»: a acção ou enredo; as
diferentes entidades presentes na narrativa; a estrutura ou sequência narrativa;
o espaço ou cenário onde decorre a acção; o tempo.
No caso do texto
B, encontramos como personagens o Padre e o Lobo. A acção decorre numa noite
fria de Novembro, numa zona isolada em plena serra, entre a aldeia do padre e o
lugarejo de Felícia. A sequência narrativa é linear, podendo nela ser encontrada
uma estrutura dividida em três partes: a
introdução ou
exposição, formada pelos
dois primeiros parágrafos, na qual é apresentado o cenário (tempo e lugar) e as
personagens (o padre e o lobo), uma delas ainda longe, o que cria uma certa
expectativa; o
desenvolvimento
ou enredo, do terceiro até
ao penúltimo parágrafo, durante o qual encontramos diferentes momentos (as
reacções do padre ao ouvir o lobo; o aparecimento da fera e as reacções de ambos
─ homem e animal;
estratégias de um e outro, no antepenúltimo parágrafo; homem e animal frente a
frente, no penúltimo parágrafo); a
conclusão, desenlace
ou desfecho, no último parágrafo, em que
vemos o perigo afastado com a morte do lobo, dando-nos uma sensação de alívio
após os momentos anteriores de tensão sempre crescente.
Vejamos, agora,
ainda que de maneira bastante sintética, cada um dos diferentes elementos
constitutivos da narração, começando pela acção.
A acção ou
enredo é o elemento fundamental da
narração. Consiste no processo de desenvolvimento de todos os factos que
constituem a história narrada. É a consequência das acções ou movimentos
efectuados pelas personagens. Deve formar um conjunto de acontecimentos
devidamente organizados, de tal modo que estimulem e prendam a atenção do
leitor, podendo levar ou não a um desenlace ou desfecho.
A acção depende
ou está subordinada a três elementos importantes: um ou mais sujeitos actuantes,
empenhados em maior ou menor grau nos acontecimentos; um tempo determinado, mais
ou menos longo, em que a acção se desenrola; um ou vários espaços onde decorre
essa mesma acção.
De uma maneira
geral e, sobretudo, na sua forma mais simples, a acção deverá desenrolar-se de
acordo com o esquema atrás apresentado relativamente ao texto B: uma
introdução ou
exposição, em que se
apresentam as personagens e o cenário; um desenvolvimento ou
enredo, em que se vão apresentando os
acontecimentos à medida que se vão desenrolando temporalmente, até atingirem um
clímax; um
desfecho,
desenlace ou
conclusão, em que se apresenta,
geralmente, a resolução do conflito.
No entanto, o
esquema apresentado nem sempre se verifica, pois a acção varia não só de acordo
com os géneros narrativos, mas também com a criatividade do escritor. No
conto, a acção é
singular e concentrada, pois não existem desvios nem perdas de tempo, podendo
mesmo reduzir-se, como sucede com alguns contos modernos, a pouquíssimas linhas.
Igual facto se verifica em geral em narrações de factos concretos, quando nos
situamos no domínio do texto não literário, em que os factos deverão ser
apresentados de maneira sintética e objectiva, não havendo desvios para aspectos
secundários e irrelevantes. Na
novela, a acção é mais
demorada, podendo mesmo ser constituída por várias «micro-acções» protagonizadas
pela mesma personagem. No
romance, a acção pode
desdobrar-se em várias acções paralelas, podendo chegar a ocupar várias
gerações, o que implica uma maior multiplicidade de espaços e de épocas, bem
como um elevado número de personagens[3].
Embora o estudo
da acção implique uma multiplicidade de aspectos, iremos centrar a nossa atenção
apenas em três aspectos importantes, que apresentamos de modo esquemático no
quadro da figura 61.
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Figura 61: A acção tem em conta três
aspectos: grau de importância, grau de solução e organização das sequências
narrativas. |
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Enquanto num conto apenas existe
uma única acção, numa novela é possível haver mais do que uma. Num romance, são
frequentes múltiplas acções. Ao lado de uma acção central, que constitui o eixo
em volta do qual se desenrola toda a acção, podem existir múltiplas acções
secundárias que, convergindo ou não para a acção central, ajudam a completar e a
compreender o desenrolar dos acontecimentos, funcionando como um universo
envolvente da acção principal e contribuindo para o seu enriquecimento.
Quanto ao grau de
solução da intriga ou acção, uma obra narrativa pode ou não apresentar todos os
aspectos da acção completamente resolvidos. Quando a acção é solucionada até ao
mais pequeno pormenor, quando, por exemplo, sabemos o que acontece a todas as
personagens, nada ficando por dar a conhecer ao leitor,
dizemos que a
narrativa é
fechada. Quando a acção
é apenas parcialmente desenvolvida, ficando o desfecho ao critério da imaginação
do leitor, dizemos que se trata de uma narrativa aberta.
A
organização das
sequências narrativas pode apresentar diferentes estruturas, de acordo com a
técnica utilizada pelo escritor. Sem dúvida que a estrutura mais simples será a
da narração singular, isto é, a da narração que apenas apresenta uma única acção
e em que os acontecimentos se sucedem linearmente, de acordo com o fluxo
cronológico. Mas um texto narrativo pode apresentar mais do que uma acção,
independentemente do seu grau de importância. Neste caso, poderemos encontrar
três tipos de
sequência narrativa: encadeamento, alternância e
encaixe.
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Figura
62: Esquema da sequência
narrativa encadeada. Cada acção ao terminar dá lugar à imediatamente a seguir,
podendo as acções sucederem-se N vezes antes de se chegar ao fim. |
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Quando as
sequências são apresentadas linearmente, constituindo como que elos de um
cadeado, em que o final de cada acção determina o começo da seguinte, estamos na
presença do chamado
encadeamento.
É o tipo de
estrutura que encontramos, por exemplo, no chamado romance picaresco[4] e que está representado na
figura 62. A
cada episódio vai-se sucedendo outro e mais outro, e assim sucessivamente,
enquanto o autor o desejar.
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Figura 63: Esquema da sequência narrativa
em alternância. |
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Quando duas histórias são
contadas alternadamente, isto é, quando uma sequência é interrompida para
podermos saber o que entretanto aconteceu noutro local com outras personagens,
mantendo-se assim um revezamento quase constante ou, pelo menos, frequente,
estamos na presença de
alternância. Há, pois, dois percursos
narrativos paralelos. Suponhamos, por exemplo, que queremos contar a vida de
duas pessoas que só se encontram ao fim de toda uma série de peripécias vividas
separadamente. Ele (H), numa determinada cidade; ela (M), numa povoação
distante. Representando graficamente este tipo de estrutura, obteremos um
esquema idêntico ao da figura 63. À medida que vamos avançando na leitura e que
o tempo da história vai avançando, ora tomamos contacto com o que o elemento H
faz num determinado período de tempo e lugar ora, de repente, voltamos atrás no
tempo, para sabermos o que o elemento M fazia entretanto noutro local e no mesmo
período de tempo. E a intriga vai avançando, até que, a certa altura, por um
acaso do destino, H e M se encontram e travam conhecimento um com o outro,
passando, a partir daí, a acção a decorrer em conjunto.
Quando uma ou
várias histórias surgem embutidas no meio de outra, que as engloba, podendo
surgir pelos mais diversos motivos e podendo ou não ter ligação com a acção
principal, estamos na presença de encaixe.
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Figura 64: Estrutura narrativa com
encaixe, em que histórias diferentes surgem embutidas numa principal, como é o
caso de Viagens na Minha Terra, de Garrett. |
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Por exemplo, nas Viagens na Minha
Terra, de
Almeida
Garrett (figura 64),
o relato da viagem de Lisboa a Santarém é interrompido a partir do capítulo X
para dar lugar à «novela da casa do vale», no momento em que o narrador chega
ao vale de Santarém e depara com a janela meio aberta de uma habitação antiga
(Recorde-se o texto descritivo transcrito na parte referente à descrição.). Interrompe depois a novela, no capítulo 26, para voltarmos
à viagem propriamente dita. Mais adiante surgem outras narrativas também
encaixadas na narração da viagem, tais como a lenda de Santa Iria e o episódio
de S. Frei Gil. É durante a visita à cidade de Santarém que o narrador uma vez
mais interrompe o relato da viagem, no capítulo 32, para nos dar como que o
"segundo acto" da novela, após o que continua a sua visita a
Santarém. E só no regresso a Lisboa o narrador nos apresenta o desfecho da
novela, a partir do capítulo 43, recorrendo ao artifício de se fazer encontrar
com uma das personagens. Tomando como exemplo a obra citada, obteremos um
esquema de encaixe no estilo do apresentado na figura 64.
O
espaço é também um
dos elementos importantes, pois constitui todo o conjunto de aspectos
envolventes da acção, onde esta se desenrola e onde as personagens actuam. O
espaço pode ser considerado sob diversos ângulos, sintetizados no quadro da figura
65: sob os aspectos físico, psicológico e social.
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Figura : Três perspectivas de análise
do espaço. |
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Sob o aspecto físico,
o
espaço pode ser considerado tendo em conta várias características, tais como a
área abrangida, os seus limites e as suas características geográficas: meio
urbano, rural, montanha, praia, floresta, etc. Fala-se em aspecto
psicológico quando predomina ou é valorizado o mundo subjectivo, quando o
narrador põe em evidência o mundo interior das personagens, mostrando-nos
os seus pensamentos, as suas emoções, os seus sonhos, os seus conflitos
psicológicos. Este aspecto é evidente quando nos encontramos perante o chamado
monólogo
interior e a efusão lírica.
O
espaço é
social quando
predominam os aspectos sociais, o meio social, com a presença de personagens
tipo e de figurantes, que são o fruto e exemplo de um determinado ambiente.
De todas as categorias da narrativa,
uma das que mais tem sido objecto de estudo é o tempo. Este pode
ser encarado sob múltiplos aspectos: tempo da história ou cronológico; tempo
meteorológico; tempo psicológico; tempo do discurso; tempo gramatical.
Vejamos de maneira sintética cada um
destes aspectos.
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Figura
66: O tempo pode ser encarado
sob múltiplos aspectos. |
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O tempo da
história ou cronológico tem a ver com
as indicações relativas à passagem do tempo: horas, dias, semanas, meses, anos,
etc. Constitui os marcos temporais que enquadram a história, marcos esses
fornecidos pelo narrador e que nos permitem situar cronologicamente os
diferentes acontecimentos. O tempo da história pode, em alguns casos,
corresponder a determinados tempos históricos, isto é, a determinados períodos
da História da Humanidade. Recordemos, por exemplo, o caso dos escritores do
período romântico, que situam por vezes a acção dos seus romances num período
histórico específico
─ a Idade
Média. É o que sucede com os chamados romances históricos, cuja acção decorre
na sua grande maioria nessa época.
O tempo
meteorológico tem
unicamente a ver com as indicações relacionadas com o estado do tempo ou com a
época do ano. Poderá também assumir, em alguns casos, simultaneamente um valor
cronológico, embora sem o mesmo rigor. Por exemplo, num relato do tipo «Era no
começo da Primavera. O sol brilhava e a vida começava a renascer... (...) O
Verão ia já a meio. Sob um sol escaldante e inclemente, que secava as nascentes
e queimava a erva nas pastagens, ...», verificamos que a sequência temporal nos
é fornecida pelas estações do ano que, neste caso, são simultaneamente um
factor meteorológico e cronológico.
O tempo
psicológico consiste na
percepção subjectiva do tempo cronológico, sendo por isso variável de pessoa
para pessoa e de situação para situação. Enquanto o tempo cronológico é sempre
igual, o psicológico pode reduzir-se ou alargar-se. Quando, por
exemplo, em Os Maias,
de Eça de Queirós, Carlos afirma, já no final do romance, «É curioso! Só
vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar metida a vida inteira.»,
estamos na presença do tempo psicológico.
O tempo
gramatical tem
unicamente a ver com o tempo enquanto categoria gramatical. Está relacionado
com o emprego dos tempos verbais, com os quais se podem obter determinados
efeitos estilísticos. Por exemplo, o uso dos verbos no imperfeito permite
conferir à acção um determinado valor durativo. O uso do presente do indicativo
é frequentemente usado com valor histórico, em vez do pretérito perfeito.
O
tempo do
discurso tem a ver com
a sequência da representação narrativa do tempo da história. Caracteriza-se
pela sua linearidade, o que faz com que o tempo da história ou tempo
cronológico seja obrigado a frequentes recuos e avanços, a progressões mais
rápidas ou mais lentas, de acordo com a importância dos factos narrados. Numa
obra narrativa em que entrem várias personagens, cada uma delas vive o seu
próprio tempo individualmente e por vezes em locais diferentes e afastados.
Durante a narração, não é possível apresentar os acontecimentos relativamente a
todas as personagens em
simultâneo. Se o narrador está a apresentar o que se passa em
determinado local com esta ou aquela personagem, para sabermos o que outros
estão a fazer durante esse mesmo período de tempo, terá de interromper esse
relato e voltar atrás no tempo, para poder apresentar o que eles fizeram. Por
exemplo, em
Uma família
inglesa, de Júlio Dinis, assistimos a
tudo quanto se passa em casa de Mr. Richard Whitestone entre determinadas
horas. De repente, voltamos outra vez ao começo do período de tempo anterior
para, no capítulo seguinte, irmos saber o que aconteceu, no mesmo espaço de
tempo, em casa de Manuel Quintino.
Noutros casos, observamos saltos de
vários anos no tempo cronológico, saltos estes que tanto podem ocorrer no
sentido do futuro, como no sentido do passado. Por exemplo, na obra já várias
vezes por nós referida,Viagens na
minha terra, quando o
narrador, uma vez chegado ao vale de Santarém, no capítulo X, começa a narração
da novela da casa do vale, recuamos de 1843 para uma tarde de Verão de 1832,
altura em que a casa, agora abandonada, ainda era habitada. E dentro da novela,
encontramos ainda outros recuos no tempo. Quando se recorda o passado de Frei
Dinis, recuamos sete anos, até 1825, para ficarmos a saber quem fora no século
Dinis de Ataíde.
O tempo do
discurso está, pois,
sujeito a três aspectos susceptíveis de análise: a ordem, a velocidade
e a frequência. Destes três aspectos, apenas iremos referir os dois primeiros,
cuja importância se nos afigura maior. Relativamente ao terceiro, o seu
conceito pode ser facilmente apreendido consultando-se um dicionário de
narratologia.
A
ordem tem a ver com
a maneira como as sequências narrativas se encontram organizadas, dando lugar a
sequências cronológicas várias, podendo haver recuos ou avanços no tempo ou
seguir, no caso de uma acção singular e linear, a sequência cronológica dos
factos.
Vejamos um caso concreto. Quando a
narração de
Os Lusíadas se inicia, a
viagem de
Vasco da Gama está já
aproximadamente a meio. É a estrutura típica das epopeias, cuja acção
deve começar
in media res. Só a partir
de determinada altura sabemos, através das palavras do próprio Gama, a parte da
viagem desde a partida das naus da praia do Restelo, em Lisboa, até à chegada a
Melinde. A estes saltos no tempo para trás ou para a frente damos a designação
técnica, respectivamente, de
analepse e de
prolepse.
Por analepse
ou flash-back entende-se «todo o movimento temporal retrospectivo
destinado a relatos de eventos anteriores ao presente da acção e mesmo, nalguns
casos, anteriores ao seu início[5].»
O movimento temporal oposto à
analepse é a prolepse e consiste na antecipação de acontecimentos cuja
ocorrência é posterior ao presente da acção.
A
velocidade da
narrativa tem a ver com
a relação entre a duração da história narrada, medida cronologicamente
(segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses ou anos) e a extensão do texto,
medida no número de linhas ou de páginas despendidas na narração dos
acontecimentos. Esta velocidade pode ser maior ou menor, aproximando-se
ou afastando-se o tempo do discurso do tempo da história (ou tempo
cronológico). Assim, podemos falar de
isocronia e de anisocronia. Embora a isocronia
efectiva seja impossível, dizemos que esta existe quando o narrador procura
respeitar o mais fielmente possível as dimensões temporais da história, a par e
passo com o desenrolar dos acontecimentos, o que faz com que o ritmo ou
velocidade da narrativa seja lento. Esta isocronia é evidente nas modernas
telenovelas. Nestas, verificamos um ritmo narrativo lento, arrastado, que chega
a prolongar-se de maneira monótona e cansativa ao longo de vários dias.
Um casamento está para ocorrer? Antes dele, assistimos a todos os preparativos
com dias de antecedência. Chega o dia do casamento? Antes de entrarmos na
igreja, vemos a noiva a vestir-se, primeiro; a seguir, damos um salto no
espaço e passamos para a casa do noivo, onde este também se prepara para a
cerimónia. Chega o momento de entrarem na igreja? Ei-los que chegam e que
entram, lentamente, ao som da marcha nupcial. E a cerimónia arrasta-se
por longos minutos, quando não calha ficar a meio, para só no dia seguinte se
assistir ao fim da cerimónia. E todo o resto da cerimónia é apresentado
demorada e pormenorizadamente, aproximando-se o ritmo narrativo da
própria realidade, quando não calha ficar mais extenso que a cerimónia na vida
real.
Mas, frequentemente, o tempo é
condensado e, em poucas linhas ou páginas, vemos as folhas do calendário saltar
dias, semanas, meses e anos. Estamos, neste caso, na presença de um ritmo
rápido, em que se verifica a
anisocronia.
Quando falamos de
entidades da
narrativa, englobamos
nesta expressão um conjunto de entidades fictícias
─ no caso da
obra literária
─ constituído
pelo narrador, narratário e personagens. No caso da narração ficcional, estas
entidades só existem dentro do universo literário e, embora tendo semelhanças
com entidades reais, não devem ser confundidas com estas.
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Figura 67: Entidades da narrativa. |
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No domínio da obra literária, o
autor cria um universo fictício, ainda que, muitas vezes, semelhante ao universo
real, no qual se situam o narrador, o narratário e as personagens. Estas
entidades são frequentemente confundidas com entidades reais, especialmente
quando se trata dos dois primeiros conceitos
─ narrador e
narratário. O primeiro é frequentemente confundido com o conceito de autor,
enquanto o segundo é associado ao leitor real.
Os conceitos de
narrador e
autor pertencem a
universos diferentes e inconfundíveis. Enquanto o autor é uma entidade real,
que nasce, vive e morre, e sem a qual a obra literária não poderia existir, o narrador
é uma entidade fictícia, imortal enquanto a obra não for destruída, criada pela
imaginação do autor e, não raras vezes, com alguns traços idênticos aos do seu
criador.
O narrador é pois uma
entidade fictícia, inventada, pertencente ao universo da ficção literária, a
quem compete a tarefa de enunciar o discurso, isto é, de narrar todos os
acontecimentos e prestar todas as informações necessárias para que a história
seja devidamente compreendida pelos leitores. O esquema da figura 67 permite-nos
distinguir o universo real do universo ficcional, criado pela imaginação do
autor.
Enquanto o autor e os leitores
pertencem ao mundo real, nascem, vivem e morrem, as entidades da obra literária
pertencem ao mundo da ficção e só existem a partir do momento em que o autor
escreve a obra literária, tornando-se então como que imortais enquanto um
exemplar da obra continuar a existir. Confundir autor com narrador é tão
erróneo como confundir narratário com leitor.
O narrador enuncia o discurso, isto
é, narra a história tendo em vista o
narratário. Ele
narra para alguém, para uma entidade que pode ou não ser explicitamente indicada
na obra, a que se dá o nome de
narratário. Quando, por
exemplo, em Viagens na minha terra, o narrador se refere ao leitor
dizendo-lhe «não seja pateta, senhor leitor, nem cuide que nós o somos»
(capº V) ou «benévolo e paciente leitor...» (capº IX) ou ainda «...ainda
assim, belas e amáveis leitoras, entendamo-nos...» (capº X), o «senhor
leitor» e as «belas e amáveis leitoras» correspondem ao narratário,
do mesmo modo que o «nós» se refere ao narrador.
O narrador como entidade
enunciadora do discurso, isto é, como entidade encarregada de narrar os
acontecimentos e de prestar as necessárias informações para uma melhor
compreensão da história, pode assumir várias posições, quer quanto ao grau de
participação nos factos, quer quanto ao grau de conhecimentos ou perspectiva
assumida durante o relato dos eventos. Como ele pode assumir capacidades
divinas, pode não só viajar por mundos fantásticos, como entrar, inclusive, na
mente das próprias personagens. Recorde-se, por exemplo, o momento em que
o narrador de Viagens na minha terra penetra na mente da personagem
─ de Carlos
─ dando-nos,
«por um processo milagroso de fotografia mental» aqueles belos momentos
de prosa poética acerca da cor dos olhos de Joaninha (capº XXIII). Mas o
narrador pode também assumir características mais próprias de um simples mortal
e limitar-se a narrar objectivamente aquilo que observa ou observou.
Temos, portanto, a considerar dois
aspectos importantes relativamente ao narrador:
· o seu grau de participação (ou
presença);
· o seu grau de conhecimentos (ou ciência, focalização
ou ponto de vista).
Quanto ao
grau de
participação na diegese, isto é, na
história, o narrador pode ou não participar nela. Se ele está fora da história
que narra, se não participa nela, estaremos na presença de um narrador não
participante ou, segundo a
terminologia de Genette, de um
narrador
heterodiegético. Se o
narrador participa ou participou na história que conta, podemos distinguir dois
graus distintos de participação. Se é o protagonista (ou
personagem principal), teremos um
narrador
participante, protagonista ou autodiegético.
Se tomou parte nos acontecimentos não como personagem principal ou
protagonista, mas como personagem secundária, retirando da sua vivência
diegética os elementos necessários para o relato da história, estaremos na
presença de um
narrador
participante homodiegético ou
deuteragonista.
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Figura 68: Classificação do narrador
tendo em conta a sua participação na diegese. |
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Enquanto narrador homodiegético, o
seu grau de participação pode ser maior ou menor. Pode limitar-se a
acompanhar os acontecimentos como mero espectador, como mera testemunha
imparcial dos factos narrados; mas pode ser uma personagem secundária mais
estreitamente ligada à principal, convivendo e acompanhando-a para todo o
lado, como acontece, por exemplo, com o narrador de A cidade e as serras,
o Zé Fernandes, que acompanha e assiste à mudança de hábitos na vida de
Jacinto.
Relativamente ao grau de
conhecimentos (ciência,
focalização ou ponto de vista
─ designações
diferentes para o mesmo conceito) do narrador, poderemos considerar três
tipos diferentes de focalização. Cada um destes três tipos condiciona
naturalmente quer a maneira como os acontecimentos são vistos, quer a
quantidade de informação ou conhecimentos veiculados pelo narrador. Essa
quantidade de conhecimentos e potencialidades informativas será máxima num
narrador que, como um deus, está omnipresente e tudo sabe, penetrando até mesmo
no subconsciente das próprias personagens e sabendo mais do que elas próprias
acerca de si mesmas, e estará reduzido ao mínimo num narrador que se coloque
apenas como testemunha, limitando-se a apresentar objectivamente aquilo
que observa.
No tipo de focalização
omnisciente, a ciência do
narrador é máxima e ilimitada. Ele é um émulo de Deus, omnipresente e
omnisciente. Ele sabe tudo quanto se passa em toda a parte e em qualquer época,
sabendo mesmo o que as personagens pensam, vêem e sentem, e podendo mesmo
penetrar no seu subconsciente.
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Figura
69: O narrador tendo em conta a
sua presença ou participação na história narrada e a sua ciência ou ponto de
vista. |
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No tipo de
focalização interna, o ponto de
vista do narrador centra-se numa determinada personagem. O narrador vê,
sente e julga de acordo com a personagem que adoptou. Esta focalização interna
pode apresentar três modalidades; pode ser fixa, múltipla ou variável. Se é
centrada numa só personagem, frequentemente a personagem principal ou
protagonista, a
focalização
interna será fixa. Se
aproveita, momentânea ou episodicamente o conhecimento de mais do que uma
personagem, a
focalização
interna será múltipla. Mas se há
uma circulação permanente do núcleo focalizador do relato de várias
personagens, como sucede, por exemplo, na obra deLaclos, Ligações
perigosas, em que o ponto de vista alterna de acordo com a personagem que
escreve as cartas, a
focalização
interna é variável.
A
focalização é
externa quando o
narrador se coloca numa posição de neutralidade, limitando-se a
apresentar, de modo objectivo e desapaixonado, aquilo que qualquer observador
veria se estivesse observando o comportamento de uma personagem ou procurando
descrever uma personagem observada.
A
personagem é uma
categoria fundamental de toda a obra narrativa. Não pode haver narração sem
personagens. Do latim PERSONNA(M) 'pessoa', o vocábulo personagem designa toda
e qualquer entidade, ser vivo ou inanimado, presente na narrativa e que
intervém em maior ou menor grau na acção. Quando dizemos "toda e qualquer
entidade", significa isto que a noção de personagem não se limita a seres
concretos. Uma ideia, um conceito abstracto, pode igualmente desempenhar o
papel de personagem, como, por exemplo, o Destino, a Morte, a Alma, a História,
a Justiça, etc.
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Figura
70: Classificação da personagem. |
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Frequentemente, é a personagem o
elemento à volta do qual gira toda a acção e em função do qual se organiza e se
desenvolve toda a narrativa. A personagem é uma entidade actante, isto é, é uma
entidade que age ou que motiva uma determinada acção ou dela sofre os
resultados, com um determinado nome, um determinado número de características
próprias, mais ou menos desenvolvidas, e com um papel de maior ou menor relevo.
Tendo em conta as características
anteriores da personagem, podemos considerar, então, três grandes aspectos: os
processos de caracterização; a concepção e formulação; o relevo ou papel
desempenhado na economia narrativa, isto é, na acção.
Por caracterização entende-se
o conjunto de características de uma personagem, que as distingue de outras, e
que vai desde o nome com que é baptizada até ao conjunto de traços, físicos e
psicológicos. A caracterização pode efectuar-se segundo dois processos:
directo; indirecto.
A
caracterização é
directa quando o
leitor toma directamente conhecimento das características das personagens, ou
seja, quando todos os elementos lhe são fornecidos quer pelo narrador, quer
através das palavras da própria personagem (autocaracterização) ou de outras
personagens (heterocaracterização), não havendo qualquer esforço por parte do
leitor para obter esses elementos.
A caracterização é
indirecta quando os
elementos caracterizadores não são fornecidos directamente ao leitor. Neste
caso, terá de ser o leitor a deduzir as características das personagens a
partir das suas atitudes e acções.
Relativamente à
concepção e
formulação, as
personagens criadas pelos autores podem apresentar um maior ou menor grau de
desenvolvimento, podem ser personagens profundamente complexas, com densidade
psicológica, instáveis, sujeitas a evolução, ou serem concebidas de maneira
bastante simples, rudimentar, representando simples tipos sociais. Assim sendo,
podemos considerar duas classes de personagens, de acordo com a sua concepção
ou formulação: personagens planas ou tipos e personagens modeladas ou
caracteres, de acordo com a terminologia criada por E. M. Forster e hoje por
todos adoptada.
A
personagem
plana ou tipo caracteriza-se
pelo seu reduzido nível de complexidade. É uma personagem acentuadamente
estática, que permanece praticamente sempre a mesma do princípio ao fim, sempre
com o mesmo aspecto, os mesmos gestos e comportamentos, os mesmos tiques
verbais ou gestuais, tornando-se por vezes cómica e representando um tipo
social. Encontramos este tipo de personagem, por exemplo, nos autos vicentinos,
onde cada figura representa um tipo social, normalmente com as mesmas
características nos vários autos. Recordemos o caso da figura do escudeiro
fanfarrão, cujos atributos são sempre os mesmos de auto para auto, apenas
mudando o nome da personagem.
Note-se que nem sempre é fácil
distinguir a personagem plana da personagem modelada ou redonda. Surgem por
vezes, em certas obras, figuras que oscilam entre estes dois estatutos. Se, por
um lado, são planas, noutros aspectos apresentam características próprias das
redondas, tornando-se por isso discutível a sua classificação.
Ao contrário das personagens planas,
as
personagens
redondas, modeladas ou caracteres, apresentam
um certo grau de complexidade, com uma personalidade bem vincada. As
personagens redondas são personagens dotadas de vida própria, profundamente
dinâmicas, profundamente elaboradas, dotadas de densidade psicológica,
imprevisíveis e sujeitas a evolução ou mudança, desempenhando normalmente um
papel de relevo em toda a acção. Recordemos alguns exemplos bem conhecidos de
todos e encontrados ao longo das obras normalmente estudadas nos cursos
complementares do ensino secundário. A figura de Carlos, nas Viagens na
minha terra, bem como, por exemplo, a figura de Eurico, na obra com o mesmo
nome, são bons exemplos de personagens com densidade psicológica, figuras
importantes submetidas a tensões psicológicas e com uma personalidade bem
vincada.
No universo diegético, isto é, no
domínio da ficção narrativa, existe todo um conjunto de personagens que
desempenham determinadas funções, com maior ou menor importância. Tendo em
conta o seu papel desempenhado na acção ou o seu relevo,
poderemos agrupá-las em três classes: personagem
principal ou
protagonista; personagem
secundária ou deuteragonista; figurantes.
Podendo ser uma personagem
individual ou colectiva, a personagem principal ou protagonista é
a figura mais importante de toda a narração. É ela a figura central, que
origina e à volta da qual gira toda a acção. A personagem principal ou
protagonista é também habitualmente designada pelo termo herói cujo papel tem evoluído ao
longo das épocas.
Na Antiguidade Clássica, o herói é a
corporização da capacidade do Homem na luta contra o Destino, contra os
elementos e os deuses. Na Época Romântica, o herói aparece-nos como uma
figura incompreendida, isolada, em conflito com a sociedade e dotada de grande
sensibilidade e, não raras vezes, conhecendo uma vida atribulada e de
sofrimentos. Recordemos as figuras de
Eurico (na obra com
o mesmo nome, de Alexandre
Herculano), deSimão Botelho (da obra
Amor de
Perdição, de Camilo Castelo
Branco) e de Carlos (de Viagens
na minha terra, de
Almeida
Garrett).
Em algumas narrativas, a figura do
herói ou protagonista contrasta com a do
anti-herói ou
antagonista, personagem
que procura eliminar o herói e contra a qual ele tem de lutar, acabando quase
sempre por sair vitorioso. Esta oposição protagonista versus antagonista é já
clássica na literatura em banda
desenhada. Recordemos o
que acontece com
Lucky Luck, sempre em
oposição aos
irmãos Dalton, com Black e
Mortimer, opondo-se
a
Olrik, ou, mais
recentemente, com Astérix e os
gauleses, opondo-se aos romanos.
Individual ou colectiva, a
personagem
secundária ou
deuteragonista caracteriza-se
pelo facto de ser menos importante que a principal, variando o seu grau de
intervenção na narrativa de personagem para personagem. Se o seu papel se reduz
totalmente, figurando como simples adereço, apenas servindo como de
"adorno", para ilustrar um ambiente, uma profissão, uma mentalidade,
estaremos na presença de um
figurante.
[1] - Vd. Dictionnaire de Linguistique, Librairie
Larousse, 1981, pág. 407.
[2] - Vejam-se os dicionários de MASSAUD MOISÉS, Dicionário
de termos literários, 5ª ed., São Paulo, Editora Cultrix, 1988, pp. 355, e
CARLOS REIS e ANA CRISTINA M. LOPES, Dicionário de narratologia, 1ª ed.,
Coimbra, Livraria Almedina, 1987, pp. 239-242.
[3] - Recorde-se, por exemplo, o caso do romance de
Eça de Queirós, Os Maias, cuja acção abrange três gerações e um espaço de tempo
de muitos anos, o que leva à existência de acções secundárias, que confluem
para a acção central, enriquecendo-a.
[4] - Por romance picaresco ou, mais rigorosamente, novela
picaresca, entende-se um tipo de obra de origem castelhana que narra,
geralmente sob a forma de autobiografia, as andanças aventurosas de um criado
ladino e, por vezes, cínico, que observa as fraquezas daqueles a quem vai
servindo. Segundo Wolfgang Kayser, trata-se de uma «novela de espaço», em
virtude de apresentar um longo desfile de casos e tipos. Pertencem ao género
picaresco as obras Vida de Lazarillo de Tormes (1554), Vida de Guzmán
de Alfarache (1599-1604), da autoria de Mateo Aleman e o Buscon
(1626) de Quevedo. Em Portugal encontramos este género de obra quer na época
clássica, quer em épocas posteriores. São exemplos de obras de carácter
picaresco, onde nos aparecem figuras de heróis ou anti-heróis que vão
passando de aventura em aventura, a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto,
as Obras do Diabinho da Mão Furada, novela de cunho seiscentista onde se
contam as aventuras dum soldado no tempo de Filipe II, as Memórias dum
Sargento de Milícias, de Manuel António de Almeida, e, mais recentemente, o
célebre Malhadinhas, de Aquilo Ribeiro.
[5] - Veja-se CARLOS REIS e ANA CRISTINA M.
LOPES, Dicionário de Narratologia, 1ª ed., Coimbra, Livraria Almedina,
1987, pp. 26-28. |