Acesso à hierarquia superior.

Henrique J. C. de Oliveira, Gramática da Comunicação, Col. Textos ISCIA, Aveiro, FEDRAVE, Vol. I, 1993, 311 pp., Vol. II, 1995, 328 pp.


VIII

A Língua Portuguesa
Diferentes Aspectos de Análise do Discurso

 

A narração: conceito; acção; tempo; espaço. Entidades da narrativa: o narrador; o narratário; a personagem; a participação e ciência do narrador. A acção e a sequência narrativa. Relação actancial e estrutura das acções. Trabalhos práticos sobre a narração. O diálogo. O monólogo, o solilóquio e a efusão lírica.

 
 

A NARRAÇÃO

O vocábulo narração apresenta actualmente uma multiplicidade de sentidos, chegando mesmo a ser utilizado incorrectamente na mesma acepção de narrativa. Tem a sua origem na palavra latina NARRATIONE(M), cujo significado é 'acção de narrar, acção de tornar conhecido'.

Se consultarmos um dicionário de linguística[1], encontraremos o seguinte como definição: «Chama-se narração [cfr. fr. récit] a um discurso ligado a uma temporalidade passada (ou imaginada como tal) relativamente ao momento da enunciação».

Se consultarmos um dicionário de termos literários ou um dicionário de narratologia, encontraremos outras definições[2]. Segundo o que nos é indicado no dicionário de M. Moisés, o vocábulo narração apresenta duas acepções distintas, de acordo com a área em que se enquadra: na oratória ou na prosa de ficção.

No campo da oratória, a narração é designada pelo vocábulo narratio e constitui a «exposição pormenorizada, parcial e encarecedora» de tudo quanto foi apresentado, de modo sintético, na proposição. Constitui o desenvolvimento do assunto enunciado na primeira parte.

O vocábulo narração designa também uma das quatro partes em que se divide a epopeia (proposição, invocação, dedicatória e narração), constituindo a componente dominante, pois é nela que se apresenta o relato de todos os acontecimentos, de todos os episódios heróicos, mitológicos, históricos, humorísticos, etc.

No domínio da criação literária, o vocábulo designa um dos vários modos de expressão literária, sendo, como já dissemos, confundido com o conceito de narrativa, isto é, com uma das três formas naturais da literatura.

Para nós, narração deverá entender-se não apenas como 'o acto de narrar' ou, melhor dizendo, 'o processo de enunciação narrativa', sentido que encontraremos em qualquer dicionário, mas igualmente como o resultado desse acto. Narração é o acto de narrar, de contar, oralmente ou por escrito, um determinado acontecimento, real ou fictício, um episódio sério ou humorístico, um facto histórico, uma lenda, etc.

A narração pode reduzir-se a um pequeno relato de acontecimentos, de modo seco, objectivo e sintético, visando apenas a função informativa e utilitária (caso, por exemplo, do relato de um acidente), mas pode também adquirir características que a tornem uma leitura agradável e susceptível de despertar o interesse de qualquer leitor. Significa isto que poderemos encarar a narração segundo duas perspectivas: numa perspectiva funcional e utilitária, podendo reduzir-se ao simples relato de acontecimentos; numa perspectiva artística e literária, constituindo o grande modo de expressão literária, ao lado do diálogo, da descrição, do monólogo e da efusão lírica.

O relato de natureza funcional e utilitária, tantas vezes indispensável na vida prática, apresenta uma relativa facilidade. Caracteriza-se pela sua objectividade, com total ausência de adjectivos com valor conotativo, uma vez que ele visa essencialmente a função informativa. Ele não admite "floreados" por parte do autor e muito menos marcas da sua presença. Como predomina a função referencial, deve procurar apresentar os factos objectiva e friamente, procurando que a comunicação se estabeleça de maneira eficaz. Aquele que efectua um relato de carácter técnico deverá ser objectivo, claro, preciso e conciso, evitando o emprego de palavras carregadas de conotação. O seu trabalho deverá obedecer a um plano cuidadoso, devendo os factos ser apresentados segundo uma sequência cronológica. O relato deverá conter as respostas às questões fundamentais: Quando? Onde? Quem? O quê? Como? Porquê?

Na sua expressão mais simples, a narração funcional ou informativa poderá reduzir-se a uma notícia de um determinado acontecimento, como é o caso, por exemplo, de todo o relato referente a um acidente, seja ele ferroviário, rodoviário ou de qualquer outro tipo.

Mas se efectuar um relato de acontecimentos numa perspectiva utilitária e funcional é relativamente fácil, tornar esse mesmo relato uma leitura agradável e cativante, uma expressão artística e literária, ultrapassando as barreiras do trivial, é já uma actividade mais complexa e que exige de quem a pratica o domínio de várias aptidões: habilidade, equilíbrio, sensibilidade e conhecimentos da arte de narrar. Daí que, quem dominar perfeitamente a narração no domínio literário, não terá dificuldades de maior na criação de relatos de carácter funcional. No entanto, habilidade, equilíbrio e sensibilidade são aptidões que não podem ser ensinadas; são aptidões que deverão ser cultivadas e desenvolvidas por cada um. Estas adquirem-se com tempo e perseverança, quer pela leitura de bons autores, quer pelo treino da expressão escrita. E para o perfeito domínio da arte de narrar, torna-se indispensável a aquisição de diversos conhecimentos, que passaremos a abordar.

Comecemos por reflectir sobre dois textos, efectuando, primeiramente, a leitura do texto A:

Texto A

FERA  ABATIDA  POR  UM  PADRE

Na noite de 23 de Novembro, padre de uma paróquia de Vila Real abateu a tiro um lobo corpulento que, dias antes, pusera em alvoroço uma aldeia da região.

      Na noite de 23 de Novembro, em que se registaram temperaturas baixíssimas e caiu um forte nevão, o padre de uma paróquia de Vila Real, o Padre Vasques, foi obrigado a deslocar-se a uma povoação isolada na encosta da Serra de Alvão, nos limites do concelho, a fim de aí prestar a extrema unção a um seu paroquiano. Essa povoação, com um reduzido número de habitantes, encontra-se ainda praticamente isolada, sendo o seu acesso feito por meio de um trilho.

      Durante o percurso, a pé e completamente só, quando atravessava um outeiro já relativamente próximo da povoação, um lobo esfomeado saltou-lhe ao caminho.

      Conservando a calma, o Padre Vasques empunhou a carabina, que sempre o acompanha quando tem de se deslocar só e a horas menos convenientes a povoações isoladas e, com dois tiros certeiros, abateu a fera.

      Na manhã seguinte, populares da povoação deslocaram-se ao local para ver a fera abatida. Verificaram tratar-se de um animal jovem e bastante corpulento, possivelmente o mesmo que, dias antes, rondara os povoados da região, provocando grande alvoroço entre os habitantes. O animal foi abatido com dois tiros certeiros que, passando-lhe pela espádua, o atingiram no coração.

      Tendo sido perguntado ao Padre Vasques como se sentira no momento em que foi atacado pelo lobo, disse-nos que, «ao princípio, quando ouviu ao longe os uivos do animal, sentiu um certo calafrio subir-lhe a espinha.» No entanto, acrescentou que «a sua experiência de caçador lhe foi de grande ajuda, pois procurou manter a calma e esperou que o lobo aparecesse, só tendo disparado quando o mesmo se encontrava a cerca de trinta passos, a fim de ter a certeza de que não desperdiçaria nenhum dos tiros.»

 

Antes de passarmos à leitura do texto seguinte, efectuemos uma pequena reflexão, procurando dar resposta às seguintes questões:

1 - Onde poderemos encontrar textos do mesmo tipo do transcrito?

2 - Como está estruturado?

3 - Verifique se responde às questões fundamentais:

3.1 - Quando?

3.2 - Onde?

3.3 - Quem?

3.4 - O quê?

3.5 - Como?

3.6 - Porquê?

4 - Poderemos considerá-lo um texto claro, objectivo e conciso?

5 - Assinale com uma cruz [x] a afirmação que considera mais completa:

 

[   ]  A - O texto é uma notícia jornalística.

[   ]  B - O texto é uma narração.

[   ]  C - O texto é simultaneamente uma narração e uma notícia jornalística.

 

Efectuemos agora a leitura do texto B:

A MORTE DO LOBO

            Uma noite de Novembro, caía neve e os aspectos do céu, profundamente frio, tinham umas estrelas trémulas, lucilantes, e um luar álgido que dava às concavidades nevadas a claridade nítida duns lagos de prata fundida.

            O padre vestia polainas de saragoça assertoadas, tamancos ferrados e suspensos nas fortes presilhas das polainas, jaqueta de peles e uma carapuça alentejana, escarlate, que lhe abafava as orelhas. Debaixo da lapela da véstia, resguardava a escorva da clavina, e caminhava curvado, com as mãos nas algibeiras e os olhos vigilantes nas gargantas dos serros.  Uivos longínquos de lobo ouviam-se e punham-lhe vibrações na espinha e um terror grande naquela imensa corda de serras, onde ele, àquela hora, se considerava o único ente exposto a ser comido pelas feras esfomeadas.

            Pulava-lhe o coração. Ao trepar a um outeiro, entaliscado de rochedos que pareciam resvalar de encontro a ele, ouviu o uivo ali perto, para lá da espinha do serro. Tirou a clavina do sovaco e, lívido, com a sensação estranha do fígado despegado, meteu o dedo tremente, automático, no gatilho. Fez um acto de contrição: provava quanto as religiões são importantes, urgentes, nas crises, nos conflitos sérios do homem com o lobo. Esperou. A fera assomara na lomba do outeiro, recortando-se esbatida no horizonte branco com uma negrura imóvel, sinistra: parecia um bronze, um emblema de sepulcro.

            Ela quedou-se por largo espaço num aspecto de admiração, de surpresa. Depois, descaiu sobre as patas traseiras, com ares contemplativos de uma pacatez fleumática. Mediam trinta passos entre a fera e o frade. Estava ao alcance da bala o lobo; mas o frade, caçador astuto, manhoso, receava perder um dos tiros. Pôs-lhe a pontaria com um gesto de espalhafato; dava gritos como quem açula cães:

            Boca! Pega! Cerca! Aí vai lobo!

            Ecos respondiam e a fera, menos versada na física dos sons reflexos, olhava crespa, espavorida, para o lado em que percutiam os brados. Ergueu-se e desceu, mui de passo, com uns vagares irónicos, com a cauda de rojo e o dorso eriçado, a ladeira da colina.

            O padre via-a negrejar na linha flexuosa do declive. Pensou retroceder, mas o lugarejo de Felícia estava mais perto que a sua aldeia e, para aquele lado, latiam cães dum faro que adivinha o lobo antes de lhe ouvir o uivo e o fariscam pela inquietação das reses nos currais. Trepou afoito ao teso do outeiro. Ganhara ânimo: bebera uns tragos de aguardente duma cabaça atada com o polvorinho no correão.

            Sentiu-se capaz de afrontar o rebelde, se ele o não respeitasse como rei da criação, segundo afirmativas de teólogos que nunca viram lobo. Do topo olhou para baixo: não o avistou. Carcavava-se um algar emaranhado de bravio espesso onde se embrenhara.

            Estugando o passo, ganhou uma chã ladeada de extensas leiras de feno, alvejantes como um estendal de lençóis; e, quando olhava para trás, receoso, viu a alimária, a grandes passos, com a cabeça alta, a atravessar a leira da esquerda, parecendo querer cortar-lhe o passo na extrema do caminho que entestava com a aldeia.

            O padre agachou-se, coseu-se com o valo de urze e giestas que formavam o tapume das terras cultivadas, e, muito derreado, arquejando com o dedo no gatilho e a fecharia rente da barba, caminhou paralelo com o lobo, que o farejava de focinho anelante e as orelhas fitas; e, assim que a fera passou de perfil em frente do tapigo, o rei da criação, que o era pelo direito do bacamarte, despediu-lhe a primeira bala, com a destra pontaria de quem havia já matado águias com zagalotes.

            O lobo, varado pela espádua até ao coração, decaiu sobre um dos quadris, escabujou em roncos frementes, espargindo flocos de neve, ergueu-se ainda, inteiriçado numa grande agonia, e morreu.

CAMILO CASTELO BRANCO

 

Façamos também uma breve reflexão sobre o texto que acabámos de ler.

Procure igualmente responder às questões:

1 - Qual o assunto do texto?

2 - Poderemos estabelecer alguma relação entre este e o texto anterior?

2.1 - Porquê?

3 - Verifique se o texto B também responde às questões fundamentais indicadas para o texto A.

4 - Assinale com uma cruz o texto que melhor corresponde às afirmações:

 

  A  B  

4.1 - Dos dois textos, o mais sintético é o texto ...............................................................

[   ] [   ]  

4.2 - Dos dois textos, o mais completo é o texto ..............................................................

[   ] [   ]  

4.3 - O que melhor permite visualizar os factos é o texto ................................................

[   ] [   ]  

4.4 - O que melhor mostra as reacções e sentimentos da personagem é o texto........

[   ] [   ]  

4.5 - O que mais me agradou é o texto ..............................................................................

[   ] [   ]  

 

5 - Determine a estrutura do texto B.

 

6 - No texto B, encontram-se partes sublinhadas. Serão importantes para o texto, ou será que este ficaria melhor se o Autor as não tivesse incluído?

 

Verificamos, pela leitura dos dois textos, que, embora visando objectivos diferentes, ambos abordam um facto que, se não é o mesmo, é pelo menos bastante idêntico. O primeiro, mais sintético, apresenta os factos de uma maneira seca, objectiva, limitando-se apenas ao essencial dos acontecimentos; o segundo, mais desenvolvido, permite-nos acompanhar toda a situação de uma maneira mais pormenorizada, permite-nos imaginar e viver a situação recriada pelo autor, dada a riqueza de informação. Sabemos como se vestia o padre, sabemos como reage e quais as sensações sentidas perante as diferentes situações. Permite-nos acompanhar a par e passo o desenrolar dos acontecimentos como se os fôssemos também vivendo. Escusado será dizer que se trata de um texto literário e, como tal, fictício. Exceptuando os apartes do narrador, por nós sublinhados e que poderemos considerar como supérfluos, perfeitamente dispensáveis e extemporâneos, tudo o mais contribui para nos espevitar o interesse e manter a expectativa, que só termina com a morte do lobo e o afastamento do perigo.

Qualquer um dos textos responde às questões fundamentais formuladas na alínea 3 das questões de reflexão, que apresentámos a seguir a cada um deles, constituindo uma narração. Ambos apresentam um relato organizado de acontecimentos, reais ou imaginários, constituídos pelo conjunto de elementos obtidos na resposta às questões fundamentais. Esse conjunto de elementos fundamentais constitui aquilo que designamos por «elementos constitutivos da narração ou, como é habitualmente designado nos manuais, por «categorias da narrativa»: a acção ou enredo; as diferentes entidades presentes na narrativa; a estrutura ou sequência narrativa; o espaço ou cenário onde decorre a acção; o tempo.

No caso do texto B, encontramos como personagens o Padre e o Lobo. A acção decorre numa noite fria de Novembro, numa zona isolada em plena serra, entre a aldeia do padre e o lugarejo de Felícia. A sequência narrativa é linear, podendo nela ser encontrada uma estrutura dividida em três partes: a introdução ou exposição, formada pelos dois primeiros parágrafos, na qual é apresentado o cenário (tempo e lugar) e as personagens (o padre e o lobo), uma delas ainda longe, o que cria uma certa expectativa; o desenvolvimento ou enredo, do terceiro até ao penúltimo parágrafo, durante o qual encontramos diferentes momentos (as reacções do padre ao ouvir o lobo; o aparecimento da fera e as reacções de ambos homem e animal; estratégias de um e outro, no antepenúltimo parágrafo; homem e animal frente a frente, no penúltimo parágrafo); a conclusão, desenlace ou desfecho, no último parágrafo, em que vemos o perigo afastado com a morte do lobo, dando-nos uma sensação de alívio após os momentos anteriores de tensão sempre crescente.

Vejamos, agora, ainda que de maneira bastante sintética, cada um dos diferentes elementos constitutivos da narração, começando pela acção. 

A acção ou enredo é o elemento fundamental da narração. Consiste no processo de desenvolvimento de todos os factos que constituem a história narrada. É a consequência das acções ou movimentos efectuados pelas personagens. Deve formar um conjunto de acontecimentos devidamente organizados, de tal modo que estimulem e prendam a atenção do leitor, podendo levar ou não a um desenlace ou desfecho.

A acção depende ou está subordinada a três elementos importantes: um ou mais sujeitos actuantes, empenhados em maior ou menor grau nos acontecimentos; um tempo determinado, mais ou menos longo, em que a acção se desenrola; um ou vários espaços onde decorre essa mesma acção.

De uma maneira geral e, sobretudo, na sua forma mais simples, a acção deverá desenrolar-se de acordo com o esquema atrás apresentado relativamente ao texto B: uma introdução ou exposição, em que se apresentam as personagens e o cenário; um desenvolvimento ou enredo, em que se vão apresentando os acontecimentos à medida que se vão desenrolando temporalmente, até atingirem um clímax; um desfecho, desenlace ou conclusão, em que se apresenta, geralmente, a resolução do conflito.

No entanto, o esquema apresentado nem sempre se verifica, pois a acção varia não só de acordo com os géneros narrativos, mas também com a criatividade do escritor. No conto, a acção é singular e concentrada, pois não existem desvios nem perdas de tempo, podendo mesmo reduzir-se, como sucede com alguns contos modernos, a pouquíssimas linhas. Igual facto se verifica em geral em narrações de factos concretos, quando nos situamos no domínio do texto não literário, em que os factos deverão ser apresentados de maneira sintética e objectiva, não havendo desvios para aspectos secundários e irrelevantes. Na novela, a acção é mais demorada, podendo mesmo ser constituída por várias «micro-acções» protagonizadas pela mesma personagem. No romance, a acção pode desdobrar-se em várias acções paralelas, podendo chegar a ocupar várias gerações, o que implica uma maior multiplicidade de espaços e de épocas, bem como um elevado número de personagens[3].

Embora o estudo da acção implique uma multiplicidade de aspectos, iremos centrar a nossa atenção apenas em três aspectos importantes, que apresentamos de modo esquemático no quadro da figura 61.

   
 

Figura 61: A acção tem em conta três aspectos: grau de importância, grau de solução e organização das sequências narrativas.

 

Enquanto num conto apenas existe uma única acção, numa novela é possível haver mais do que uma. Num romance, são frequentes múltiplas acções. Ao lado de uma acção central, que constitui o eixo em volta do qual se desenrola toda a acção, podem existir múltiplas acções secundárias que, convergindo ou não para a acção central, ajudam a completar e a compreender o desenrolar dos acontecimentos, funcionando como um universo envolvente da acção principal e contribuindo para o seu enriquecimento.

Quanto ao grau de solução da intriga ou acção, uma obra narrativa pode ou não apresentar todos os aspectos da acção completamente resolvidos. Quando a acção é solucionada até ao mais pequeno pormenor, quando, por exemplo, sabemos o que acontece a todas as personagens, nada ficando por dar a conhecer ao leitor, dizemos que a narrativa é fechada. Quando a acção é apenas parcialmente desenvolvida, ficando o desfecho ao critério da imaginação do leitor, dizemos que se trata de uma narrativa aberta.


A organização das sequências narrativas pode apresentar diferentes estruturas, de acordo com a técnica utilizada pelo escritor. Sem dúvida que a estrutura mais simples será a da narração singular, isto é, a da narração que apenas apresenta uma única acção e em que os acontecimentos se sucedem linearmente, de acordo com o fluxo cronológico. Mas um texto narrativo pode apresentar mais do que uma acção, independentemente do seu grau de importância. Neste caso, poderemos encontrar três tipos de sequência narrativa: encadeamento, alternância e encaixe.

   
 

Figura 62: Esquema da sequência narrativa encadeada. Cada acção ao terminar dá lugar à imediatamente a seguir, podendo as acções sucederem-se N vezes antes de se chegar ao fim.

 

Quando as sequências são apresentadas linearmente, constituindo como que elos de um cadeado, em que o final de cada acção determina o começo da seguinte, estamos na presença do chamado encadeamento. É o tipo de estrutura que encontramos, por exemplo, no chamado romance picaresco[4] e que está representado na figura 62. A cada episódio vai-se sucedendo outro e mais outro, e assim sucessivamente, enquanto o autor o desejar.

 

 
  Figura 63: Esquema da sequência narrativa em alternância.  

Quando duas histórias são contadas alternadamente, isto é, quando uma sequência é interrompida para podermos saber o que entretanto aconteceu noutro local com outras personagens, mantendo-se assim um revezamento quase constante ou, pelo menos, frequente, estamos na presença de alternância. Há, pois, dois percursos narrativos paralelos. Suponhamos, por exemplo, que queremos contar a vida de duas pessoas que só se encontram ao fim de toda uma série de peripécias vividas separadamente. Ele (H), numa determinada cidade; ela (M), numa povoação distante. Representando graficamente este tipo de estrutura, obteremos um esquema idêntico ao da figura 63. À medida que vamos avançando na leitura e que o tempo da história vai avançando, ora tomamos contacto com o que o elemento H faz num determinado período de tempo e lugar ora, de repente, voltamos atrás no tempo, para sabermos o que o elemento M fazia entretanto noutro local e no mesmo período de tempo. E a intriga vai avançando, até que, a certa altura, por um acaso do destino, H e M se encontram e travam conhecimento um com o outro, passando, a partir daí, a acção a decorrer em conjunto.

Quando uma ou várias histórias surgem embutidas no meio de outra, que as engloba, podendo surgir pelos mais diversos motivos e podendo ou não ter ligação com a acção principal, estamos na presença de encaixe.

 

 
 

Figura 64: Estrutura narrativa com encaixe, em que histórias diferentes surgem embutidas numa principal, como é o caso de Viagens na Minha Terra, de Garrett.

 

Por exemplo, nas Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett (figura 64), o relato da viagem de Lisboa a Santarém é interrompido a partir do capítulo X para dar lugar à «novela da casa do vale», no momento em que o narrador chega ao vale de Santarém e depara com a janela meio aberta de uma habitação antiga (Recorde-se o texto descritivo transcrito na parte referente à descrição.). Interrompe depois a novela, no capítulo 26, para voltarmos à viagem propriamente dita. Mais adiante surgem outras narrativas também encaixadas na narração da viagem, tais como a lenda de Santa Iria e o episódio de S. Frei Gil. É durante a visita à cidade de Santarém que o narrador uma vez mais interrompe o relato da viagem, no capítulo 32, para nos dar como que o "segundo acto" da novela, após o que continua a sua visita a Santarém. E só no regresso a Lisboa o narrador nos apresenta o desfecho da novela, a partir do capítulo 43, recorrendo ao artifício de se fazer encontrar com uma das personagens. Tomando como exemplo a obra citada, obteremos um esquema de encaixe no estilo do apresentado na figura 64.


O espaço é também um dos elementos importantes, pois constitui todo o conjunto de aspectos envolventes da acção, onde esta se desenrola e onde as personagens actuam. O espaço pode ser considerado sob diversos ângulos, sintetizados no quadro da figura 65: sob os aspectos físico, psicológico e social.

 

 
 

Figura : Três perspectivas de análise do espaço.

 

Sob o aspecto físico, o espaço pode ser considerado tendo em conta várias características, tais como a área abrangida, os seus limites e as suas características geográficas: meio urbano, rural, montanha, praia, floresta, etc. Fala-se em aspecto psicológico quando predomina ou é valorizado o mundo subjectivo, quando o narrador põe em evidência o mundo interior das personagens, mostrando-nos os seus pensamentos, as suas emoções, os seus sonhos, os seus conflitos psicológicos. Este aspecto é evidente quando nos encontramos perante o chamado monólogo interior e a efusão lírica.

O espaço é social quando predominam os aspectos sociais, o meio social, com a presença de personagens tipo e de figurantes, que são o fruto e exemplo de um determinado ambiente.

De todas as categorias da narrativa, uma das que mais tem sido objecto de estudo é o tempo. Este pode ser encarado sob múltiplos aspectos: tempo da história ou cronológico; tempo meteorológico; tempo psicológico; tempo do discurso; tempo gramatical.

Vejamos de maneira sintética cada um destes aspectos.

 

 
 

Figura 66: O tempo pode ser encarado sob múltiplos aspectos.

 

O tempo da história ou cronológico tem a ver com as indicações relativas à passagem do tempo: horas, dias, semanas, meses, anos, etc. Constitui os marcos temporais que enquadram a história, marcos esses fornecidos pelo narrador e que nos permitem situar cronologicamente os diferentes acontecimentos. O tempo da história pode, em alguns casos, corresponder a determinados tempos históricos, isto é, a determinados períodos da História da Humanidade. Recordemos, por exemplo, o caso dos escritores do período romântico, que situam por vezes a acção dos seus romances num período histórico específico a Idade Média. É o que sucede com os chamados romances históricos, cuja acção decorre na sua grande maioria nessa época.

O tempo meteorológico tem unicamente a ver com as indicações relacionadas com o estado do tempo ou com a época do ano. Poderá também assumir, em alguns casos, simultaneamente um valor cronológico, embora sem o mesmo rigor. Por exemplo, num relato do tipo «Era no começo da Primavera. O sol brilhava e a vida começava a renascer... (...) O Verão ia já a meio. Sob um sol escaldante e inclemente, que secava as nascentes e queimava a erva nas pastagens, ...», verificamos que a sequência temporal nos é fornecida pelas estações do ano que, neste caso, são simultaneamente um factor meteorológico e cronológico.

O tempo psicológico consiste na percepção subjectiva do tempo cronológico, sendo por isso variável de pessoa para pessoa e de situação para situação. Enquanto o tempo cronológico é sempre igual, o psicológico pode reduzir-se ou alargar-se. Quando, por exemplo, em Os Maias, de Eça de Queirós, Carlos afirma, já no final do romance, «É curioso! Só vivi dois anos nesta casa, e é nela que me parece estar metida a vida inteira.», estamos na presença do tempo psicológico.

O tempo gramatical tem unicamente a ver com o tempo enquanto categoria gramatical. Está relacionado com o emprego dos tempos verbais, com os quais se podem obter determinados efeitos estilísticos. Por exemplo, o uso dos verbos no imperfeito permite conferir à acção um determinado valor durativo. O uso do presente do indicativo é frequentemente usado com valor histórico, em vez do pretérito perfeito.

O tempo do discurso tem a ver com a sequência da representação narrativa do tempo da história. Caracteriza-se pela sua linearidade, o que faz com que o tempo da história ou tempo cronológico seja obrigado a frequentes recuos e avanços, a progressões mais rápidas ou mais lentas, de acordo com a importância dos factos narrados. Numa obra narrativa em que entrem várias personagens, cada uma delas vive o seu próprio tempo individualmente e por vezes em locais diferentes e afastados. Durante a narração, não é possível apresentar os acontecimentos relativamente a todas as personagens em simultâneo. Se o narrador está a apresentar o que se passa em determinado local com esta ou aquela personagem, para sabermos o que outros estão a fazer durante esse mesmo período de tempo, terá de interromper esse relato e voltar atrás no tempo, para poder apresentar o que eles fizeram. Por exemplo, em Uma família inglesa, de Júlio Dinis, assistimos a tudo quanto se passa em casa de Mr. Richard Whitestone entre determinadas horas. De repente, voltamos outra vez ao começo do período de tempo anterior para, no capítulo seguinte, irmos saber o que aconteceu, no mesmo espaço de tempo, em casa de Manuel Quintino.

Noutros casos, observamos saltos de vários anos no tempo cronológico, saltos estes que tanto podem ocorrer no sentido do futuro, como no sentido do passado. Por exemplo, na obra já várias vezes por nós referida,Viagens na minha terra, quando o narrador, uma vez chegado ao vale de Santarém, no capítulo X, começa a narração da novela da casa do vale, recuamos de 1843 para uma tarde de Verão de 1832, altura em que a casa, agora abandonada, ainda era habitada. E dentro da novela, encontramos ainda outros recuos no tempo. Quando se recorda o passado de Frei Dinis, recuamos sete anos, até 1825, para ficarmos a saber quem fora no século Dinis de Ataíde.

O tempo do discurso está, pois, sujeito a três aspectos susceptíveis de análise: a ordem, a velocidade e a frequência. Destes três aspectos, apenas iremos referir os dois primeiros, cuja importância se nos afigura maior. Relativamente ao terceiro, o seu conceito pode ser facilmente apreendido consultando-se um dicionário de narratologia.

A ordem tem a ver com a maneira como as sequências narrativas se encontram organizadas, dando lugar a sequências cronológicas várias, podendo haver recuos ou avanços no tempo ou seguir, no caso de uma acção singular e linear, a sequência cronológica dos factos.

Vejamos um caso concreto. Quando a narração de Os Lusíadas se inicia, a viagem de Vasco da Gama está já aproximadamente a meio. É a estrutura típica das epopeias, cuja acção deve começar in media res. Só a partir de determinada altura sabemos, através das palavras do próprio Gama, a parte da viagem desde a partida das naus da praia do Restelo, em Lisboa, até à chegada a Melinde. A estes saltos no tempo para trás ou para a frente damos a designação técnica, respectivamente, de analepse e de prolepse. Por analepse ou flash-back entende-se «todo o movimento temporal retrospectivo destinado a relatos de eventos anteriores ao presente da acção e mesmo, nalguns casos, anteriores ao seu início[5]

O movimento temporal oposto à analepse é a prolepse e consiste na antecipação de acontecimentos cuja ocorrência é posterior ao presente da acção.

A velocidade da narrativa tem a ver com a relação entre a duração da história narrada, medida cronologicamente (segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses ou anos) e a extensão do texto, medida no número de linhas ou de páginas despendidas na narração dos acontecimentos. Esta velocidade pode ser maior ou menor, aproximando-se ou afastando-se o tempo do discurso do tempo da história (ou tempo cronológico). Assim, podemos falar de isocronia e de anisocronia. Embora a isocronia efectiva seja impossível, dizemos que esta existe quando o narrador procura respeitar o mais fielmente possível as dimensões temporais da história, a par e passo com o desenrolar dos acontecimentos, o que faz com que o ritmo ou velocidade da narrativa seja lento. Esta isocronia é evidente nas modernas telenovelas. Nestas, verificamos um ritmo narrativo lento, arrastado, que chega a prolongar-se de maneira monótona e cansativa ao longo de vários dias. Um casamento está para ocorrer? Antes dele, assistimos a todos os preparativos com dias de antecedência. Chega o dia do casamento? Antes de entrarmos na igreja, vemos a noiva a vestir-se, primeiro; a seguir, damos um salto no espaço e passamos para a casa do noivo, onde este também se prepara para a cerimónia. Chega o momento de entrarem na igreja? Ei-los que chegam e que entram, lentamente, ao som da marcha nupcial. E a cerimónia arrasta-se por longos minutos, quando não calha ficar a meio, para só no dia seguinte se assistir ao fim da cerimónia. E todo o resto da cerimónia é apresentado demorada e pormenorizadamente, aproximando-se o ritmo narrativo da própria realidade, quando não calha ficar mais extenso que a cerimónia na vida real.

Mas, frequentemente, o tempo é condensado e, em poucas linhas ou páginas, vemos as folhas do calendário saltar dias, semanas, meses e anos. Estamos, neste caso, na presença de um ritmo rápido, em que se verifica a anisocronia.

 

Quando falamos de entidades da narrativa, englobamos nesta expressão um conjunto de entidades fictícias no caso da obra literária constituído pelo narrador, narratário e personagens. No caso da narração ficcional, estas entidades só existem dentro do universo literário e, embora tendo semelhanças com entidades reais, não devem ser confundidas com estas.

 

 
  Figura 67: Entidades da narrativa.  

No domínio da obra literária, o autor cria um universo fictício, ainda que, muitas vezes, semelhante ao universo real, no qual se situam o narrador, o narratário e as personagens. Estas entidades são frequentemente confundidas com entidades reais, especialmente quando se trata dos dois primeiros conceitos narrador e narratário. O primeiro é frequentemente confundido com o conceito de autor, enquanto o segundo é associado ao leitor real.

Os conceitos de narrador e autor pertencem a universos diferentes e inconfundíveis. Enquanto o autor é uma entidade real, que nasce, vive e morre, e sem a qual a obra literária não poderia existir, o narrador é uma entidade fictícia, imortal enquanto a obra não for destruída, criada pela imaginação do autor e, não raras vezes, com alguns traços idênticos aos do seu criador.

O narrador é pois uma entidade fictícia, inventada, pertencente ao universo da ficção literária, a quem compete a tarefa de enunciar o discurso, isto é, de narrar todos os acontecimentos e prestar todas as informações necessárias para que a história seja devidamente compreendida pelos leitores. O esquema da figura 67 permite-nos distinguir o universo real do universo ficcional, criado pela imaginação do autor.

Enquanto o autor e os leitores pertencem ao mundo real, nascem, vivem e morrem, as entidades da obra literária pertencem ao mundo da ficção e só existem a partir do momento em que o autor escreve a obra literária, tornando-se então como que imortais enquanto um exemplar da obra continuar a existir. Confundir autor com narrador é tão erróneo como confundir narratário com leitor.

O narrador enuncia o discurso, isto é, narra a história tendo em vista o narratário. Ele narra para alguém, para uma entidade que pode ou não ser explicitamente indicada na obra, a que se dá o nome de narratário. Quando, por exemplo, em Viagens na minha terra, o narrador se refere ao leitor dizendo-lhe «não seja pateta, senhor leitor, nem cuide que nós o somos» (capº V) ou «benévolo e paciente leitor...» (capº IX) ou ainda «...ainda assim, belas e amáveis leitoras, entendamo-nos...» (capº X), o «senhor leitor» e as «belas e amáveis leitoras» correspondem ao narratário, do mesmo modo que o «nós» se refere ao narrador.

O narrador como entidade enunciadora do discurso, isto é, como entidade encarregada de narrar os acontecimentos e de prestar as necessárias informações para uma melhor compreensão da história, pode assumir várias posições, quer quanto ao grau de participação nos factos, quer quanto ao grau de conhecimentos ou perspectiva assumida durante o relato dos eventos. Como ele pode assumir capacidades divinas, pode não só viajar por mundos fantásticos, como entrar, inclusive, na mente das próprias personagens. Recorde-se, por exemplo, o momento em que o narrador de Viagens na minha terra penetra na mente da personagem de Carlos dando-nos, «por um processo milagroso de fotografia mental» aqueles belos momentos de prosa poética acerca da cor dos olhos de Joaninha (capº XXIII). Mas o narrador pode também assumir características mais próprias de um simples mortal e limitar-se a narrar objectivamente aquilo que observa ou observou.

Temos, portanto, a considerar dois aspectos importantes relativamente ao narrador:

· o seu grau de participação (ou presença);

· o seu grau de conhecimentos (ou ciência, focalização ou ponto de vista).

Quanto ao grau de participação na diegese, isto é, na história, o narrador pode ou não participar nela. Se ele está fora da história que narra, se não participa nela, estaremos na presença de um narrador não participante ou, segundo a terminologia de Genette, de um narrador heterodiegético. Se o narrador participa ou participou na história que conta, podemos distinguir dois graus distintos de participação. Se é o protagonista (ou personagem principal), teremos um narrador participante, protagonista ou autodiegético. Se tomou parte nos acontecimentos não como personagem principal ou protagonista, mas como personagem secundária, retirando da sua vivência diegética os elementos necessários para o relato da história, estaremos na presença de um narrador participante homodiegético ou deuteragonista.

 

 
 

Figura 68: Classificação do narrador tendo em conta a sua participação na diegese.

 

Enquanto narrador homodiegético, o seu grau de participação pode ser maior ou menor. Pode limitar-se a acompanhar os acontecimentos como mero espectador, como mera testemunha imparcial dos factos narrados; mas pode ser uma personagem secundária mais estreitamente ligada à principal, convivendo e acompanhando-a para todo o lado, como acontece, por exemplo, com o narrador de A cidade e as serras, o Zé Fernandes, que acompanha e assiste à mudança de hábitos na vida de Jacinto.

 

Relativamente ao grau de conhecimentos (ciência, focalização ou ponto de vista designações diferentes para o mesmo conceito) do narrador, poderemos considerar três tipos diferentes de focalização. Cada um destes três tipos condiciona naturalmente quer a maneira como os acontecimentos são vistos, quer a quantidade de informação ou conhecimentos veiculados pelo narrador. Essa quantidade de conhecimentos e potencialidades informativas será máxima num narrador que, como um deus, está omnipresente e tudo sabe, penetrando até mesmo no subconsciente das próprias personagens e sabendo mais do que elas próprias acerca de si mesmas, e estará reduzido ao mínimo num narrador que se coloque apenas como testemunha, limitando-se a apresentar objectivamente aquilo que observa.

No tipo de focalização omnisciente, a ciência do narrador é máxima e ilimitada. Ele é um émulo de Deus, omnipresente e omnisciente. Ele sabe tudo quanto se passa em toda a parte e em qualquer época, sabendo mesmo o que as personagens pensam, vêem e sentem, e podendo mesmo penetrar no seu subconsciente.

 

 
 

Figura 69: O narrador tendo em conta a sua presença ou participação na história narrada e a sua ciência ou ponto de vista.

 

No tipo de focalização interna, o ponto de vista do narrador centra-se numa determinada personagem. O narrador vê, sente e julga de acordo com a personagem que adoptou. Esta focalização interna pode apresentar três modalidades; pode ser fixa, múltipla ou variável. Se é centrada numa só personagem, frequentemente a personagem principal ou protagonista, a focalização interna será fixa. Se aproveita, momentânea ou episodicamente o conhecimento de mais do que uma personagem, a focalização interna será múltipla. Mas se há uma circulação permanente do núcleo focalizador do relato de várias personagens, como sucede, por exemplo, na obra deLaclos, Ligações perigosas, em que o ponto de vista alterna de acordo com a personagem que escreve as cartas, a focalização interna é variável.

A focalização é externa quando o narrador se coloca numa posição de neutralidade, limitando-se a apresentar, de modo objectivo e desapaixonado, aquilo que qualquer observador veria se estivesse observando o comportamento de uma personagem ou procurando descrever uma personagem observada.

 

A personagem é uma categoria fundamental de toda a obra narrativa. Não pode haver narração sem personagens. Do latim PERSONNA(M) 'pessoa', o vocábulo personagem designa toda e qualquer entidade, ser vivo ou inanimado, presente na narrativa e que intervém em maior ou menor grau na acção. Quando dizemos "toda e qualquer entidade", significa isto que a noção de personagem não se limita a seres concretos. Uma ideia, um conceito abstracto, pode igualmente desempenhar o papel de personagem, como, por exemplo, o Destino, a Morte, a Alma, a História, a Justiça, etc.

 

 
 

Figura 70: Classificação da personagem.

 

Frequentemente, é a personagem o elemento à volta do qual gira toda a acção e em função do qual se organiza e se desenvolve toda a narrativa. A personagem é uma entidade actante, isto é, é uma entidade que age ou que motiva uma determinada acção ou dela sofre os resultados, com um determinado nome, um determinado número de características próprias, mais ou menos desenvolvidas, e com um papel de maior ou menor relevo.

Tendo em conta as características anteriores da personagem, podemos considerar, então, três grandes aspectos: os processos de caracterização; a concepção e formulação; o relevo ou papel desempenhado na economia narrativa, isto é, na acção.

Por caracterização entende-se o conjunto de características de uma personagem, que as distingue de outras, e que vai desde o nome com que é baptizada até ao conjunto de traços, físicos e psicológicos. A caracterização pode efectuar-se segundo dois processos: directo; indirecto.

A caracterização é directa quando o leitor toma directamente conhecimento das características das personagens, ou seja, quando todos os elementos lhe são fornecidos quer pelo narrador, quer através das palavras da própria personagem (autocaracterização) ou de outras personagens (heterocaracterização), não havendo qualquer esforço por parte do leitor para obter esses elementos.

A caracterização é indirecta quando os elementos caracterizadores não são fornecidos directamente ao leitor. Neste caso, terá de ser o leitor a deduzir as características das personagens a partir das suas atitudes e acções.

Relativamente à concepção e formulação, as personagens criadas pelos autores podem apresentar um maior ou menor grau de desenvolvimento, podem ser personagens profundamente complexas, com densidade psicológica, instáveis, sujeitas a evolução, ou serem concebidas de maneira bastante simples, rudimentar, representando simples tipos sociais. Assim sendo, podemos considerar duas classes de personagens, de acordo com a sua concepção ou formulação: personagens planas ou tipos e personagens modeladas ou caracteres, de acordo com a terminologia criada por E. M. Forster e hoje por todos adoptada.

A personagem plana ou tipo caracteriza-se pelo seu reduzido nível de complexidade. É uma personagem acentuadamente estática, que permanece praticamente sempre a mesma do princípio ao fim, sempre com o mesmo aspecto, os mesmos gestos e comportamentos, os mesmos tiques verbais ou gestuais, tornando-se por vezes cómica e representando um tipo social. Encontramos este tipo de personagem, por exemplo, nos autos vicentinos, onde cada figura representa um tipo social, normalmente com as mesmas características nos vários autos. Recordemos o caso da figura do escudeiro fanfarrão, cujos atributos são sempre os mesmos de auto para auto, apenas mudando o nome da personagem.

Note-se que nem sempre é fácil distinguir a personagem plana da personagem modelada ou redonda. Surgem por vezes, em certas obras, figuras que oscilam entre estes dois estatutos. Se, por um lado, são planas, noutros aspectos apresentam características próprias das redondas, tornando-se por isso discutível a sua classificação.

Ao contrário das personagens planas, as personagens redondas, modeladas ou caracteres, apresentam um certo grau de complexidade, com uma personalidade bem vincada. As personagens redondas são personagens dotadas de vida própria, profundamente dinâmicas, profundamente elaboradas, dotadas de densidade psicológica, imprevisíveis e sujeitas a evolução ou mudança, desempenhando normalmente um papel de relevo em toda a acção. Recordemos alguns exemplos bem conhecidos de todos e encontrados ao longo das obras normalmente estudadas nos cursos complementares do ensino secundário. A figura de Carlos, nas Viagens na minha terra, bem como, por exemplo, a figura de Eurico, na obra com o mesmo nome, são bons exemplos de personagens com densidade psicológica, figuras importantes submetidas a tensões psicológicas e com uma personalidade bem vincada.

No universo diegético, isto é, no domínio da ficção narrativa, existe todo um conjunto de personagens que desempenham determinadas funções, com maior ou menor importância. Tendo em conta o seu papel desempenhado na acção ou o seu relevo, poderemos agrupá-las em três classes: personagem principal ou protagonista; personagem secundária ou deuteragonista; figurantes.

Podendo ser uma personagem individual ou colectiva, a personagem principal ou protagonista é a figura mais importante de toda a narração. É ela a figura central, que origina e à volta da qual gira toda a acção. A personagem principal ou protagonista é também habitualmente designada pelo termo herói cujo papel tem evoluído ao longo das épocas.

Na Antiguidade Clássica, o herói é a corporização da capacidade do Homem na luta contra o Destino, contra os elementos e os deuses. Na Época Romântica, o herói aparece-nos como uma figura incompreendida, isolada, em conflito com a sociedade e dotada de grande sensibilidade e, não raras vezes, conhecendo uma vida atribulada e de sofrimentos. Recordemos as figuras de Eurico (na obra com o mesmo nome, de Alexandre Herculano), deSimão Botelho (da obra Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco) e de Carlos (de Viagens na minha terra, de Almeida Garrett).

Em algumas narrativas, a figura do herói ou protagonista contrasta com a do anti-herói ou antagonista, personagem que procura eliminar o herói e contra a qual ele tem de lutar, acabando quase sempre por sair vitorioso. Esta oposição protagonista versus antagonista é já clássica na literatura em banda desenhada. Recordemos o que acontece com Lucky Luck, sempre em oposição aos irmãos Dalton, com Black e Mortimer, opondo-se a Olrik, ou, mais recentemente, com Astérix e os gauleses, opondo-se aos romanos.

Individual ou colectiva, a personagem secundária ou deuteragonista caracteriza-se pelo facto de ser menos importante que a principal, variando o seu grau de intervenção na narrativa de personagem para personagem. Se o seu papel se reduz totalmente, figurando como simples adereço, apenas servindo como de "adorno", para ilustrar um ambiente, uma profissão, uma mentalidade, estaremos na presença de um figurante.


[1] - Vd. Dictionnaire de Linguistique, Librairie Larousse, 1981, pág. 407.

[2] - Vejam-se os dicionários de MASSAUD MOISÉS, Dicionário de termos literários, 5ª ed., São Paulo, Editora Cultrix, 1988, pp. 355, e CARLOS REIS e ANA CRISTINA M. LOPES, Dicionário de narratologia, 1ª ed., Coimbra, Livraria Almedina, 1987, pp. 239-242.

[3] - Recorde-se, por exemplo, o caso do romance de Eça de Queirós, Os Maias, cuja acção abrange três gerações e um espaço de tempo de muitos anos, o que leva à existência de acções secundárias, que confluem para a acção central, enriquecendo-a.

[4] - Por romance picaresco ou, mais rigorosamente, novela picaresca, entende-se um tipo de obra de origem castelhana que narra, geralmente sob a forma de autobiografia, as andanças aventurosas de um criado ladino e, por vezes, cínico, que observa as fraquezas daqueles a quem vai servindo. Segundo Wolfgang Kayser, trata-se de uma «novela de espaço», em virtude de apresentar um longo desfile de casos e tipos. Pertencem ao género picaresco as obras Vida de Lazarillo de Tormes (1554), Vida de Guzmán de Alfarache (1599-1604), da autoria de Mateo Aleman e o Buscon (1626) de Quevedo. Em Portugal encontramos este género de obra quer na época clássica, quer em épocas posteriores. São exemplos de obras de carácter picaresco, onde nos aparecem figuras de heróis ou anti-heróis que vão passando de aventura em aventura, a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, as Obras do Diabinho da Mão Furada, novela de cunho seiscentista onde se contam as aventuras dum soldado no tempo de Filipe II, as Memórias dum Sargento de Milícias, de Manuel António de Almeida, e, mais recentemente, o célebre Malhadinhas, de Aquilo Ribeiro.

[5] - Veja-se CARLOS REIS e ANA CRISTINA M. LOPES, Dicionário de Narratologia, 1ª ed., Coimbra, Livraria Almedina, 1987, pp. 26-28.

 


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