DESCRIÇÃO, NARRAÇÃO, DIÁLOGO
MONÓLOGO E EFUSÃO LÍRICA
Descrição, narração, diálogo, monólogo e lírica são formas ou modos de expressão literária. São formas que encontramos normalmente nos textos
ou obras literárias. No entanto, isto não significa que sejam exclusivas desta
área da produção escrita; encontramo-las frequentemente nas situações
correntes de comunicação, quer a nível da escrita, quer da oralidade. Aliás, o
que encontramos no universo literário não é mais do que um reflexo de tudo
quanto se passa no mundo real. Vejamos algumas situações concretas e com
verosimilhança que, de maneira muito fácil, nos permitirão compreender estes
conceitos.
Comecemos
por imaginar uma situação de comunicação com um ou vários interlocutores. É
indiferente tratar-se de uma situação formal ou informal. Mas talvez seja
mais fácil visualizarmos uma situação informal, uma situação que ocorra
frequentemente no nosso dia-a-dia. Assim sendo, imaginemos que nos
encontramos numa banal conversa de café, entre amigos. Um deles, que chegou de
férias, bem disposto e bronzeado após umas férias na Côte d'Azur, ou
talvez no Algarve, resolve fazer-nos o relato das suas aventuras, das
peripécias passadas durante os dias de descanso e do encontro com aquele casal
amigo, que apareceu imprevistamente e com o qual explorou alguns lugares
pitorescos da região. E as peripécias e factos vão-se desenrolando, de
acordo com a sua sequência cronológica.
Na situação evocada, estaríamos perante uma situação de
comunicação característica e frequente: a narração.
A dada altura, o nosso interlocutor, entusiasmado pelo reavivar
das recordações, procura dar-nos uma ideia mais exacta do complexo turístico,
uma pequena aldeia entre a serra e o mar, onde, além do casal amigo, encontrou
aquela rapariga simpática que se juntou ao grupo. Interrompe momentaneamente o
relato dos acontecimentos para apresentar, com certo pormenor, a aldeia, o seu
enquadramento, o tipo de casas, o ambiente, em suma, todo o conjunto de aspectos
caracterizadores. E, em seguida, para o relato ficar mais completo, utilizando
uma boa quantidade de adjectivos, faz o retrato da rapariga que lhe fez bater
mais apressadamente o coração.
A partir do momento em que interrompeu o relato das peripécias
para nos dar a conhecer não só as características da paisagem e da aldeia, mas
também da sua nova companheira, o modo de expressão literária passou a ser a
descrição.
Frequentemente, o reviver de acontecimentos torna-se tão vivo,
tão real, que nos parece que recuamos no tempo; e, sem querermos, quase sem
disso nos darmos conta, estamos a reproduzir uma conversa travada com esta ou
aquela pessoa, como se elas, magicamente, por força da nossa capacidade
criadora, saíssem do passado e se materializassem na nossa frente. E, com a
maior naturalidade, começamos a assumir o estatuto dessas «personagens» e a
reproduzir-lhes fielmente as palavras, desdobrando-nos, sucessivamente, numas e
noutras.
Estamos então perante uma situação de
diálogo. Passa a predominar o discurso directo. Não são já as nossas palavras que reproduzem o que
outras disseram; são já as palavras directamente proferidas por cada um dos
interlocutores e que a nossa memória e aparelho fonador reproduzem, como se se
tratasse de um registo magnético.
Mas durante o tempo que evocamos nem tudo foi um mar de rosas.
Ocorreram situações imprevistas, que nos marcaram profundamente, quer pelos seus
aspectos negativos, quer pelos seus aspectos positivos. Na altura, estivemos
longo tempo voltados para o nosso mundo interior, absortos, alheios a tudo
quanto se passava à nossa volta. "Falámos com os nossos botões", reflectimos,
analisámos em pormenor e demoradamente todos os dados dos problemas surgidos. E
queremos agora, que recordamos os acontecimentos, transmitir com precisão aquilo
que sentimos, aquilo que pensámos. Quer na situação vivida anteriormente, quer
neste momento em que evocamos e procuramos reproduzir todo o fluxo do nosso
pensamento, estamos na presença do monólogo ou monólogo
interior.
Mas, durante o período de tempo em que vivemos determinadas
situações, aconteceu algo que nos tocou mais profundamente, que fez vibrar as
cordas da nossa sensibilidade. Foi aquela maravilhosa paisagem, foi aquele
radioso pôr do sol em companhia de alguém que nos era querido ou num momento em
que estávamos mais predispostos para nos libertarmos dos problemas e
questiúnculas mesquinhas da vida. E, sem darmos por isso, a nossa mente deslizou
para reinos maravilhosos, para outros mundos interiores e superiores, onde reina
a paz, a harmonia, a beleza, a felicidade suprema. Esquecemos por momentos
os problemas da vida, as guerras que assolam o mundo, as doenças e as fomes.
Penetrámos num mundo onde reinam a paz e a felicidade, onde a beleza e a poesia
andam lado a lado, de mãos dadas, em perfeita harmonia com tudo e com todos.
Entrámos, sem disso termos tido plena consciência, no domínio da
efusão lírica, domínio que, segundo alguns, é equivalente a
monólogo ou monólogo interior. Embora se trate no fundo de um monólogo, a
verdade é que apresenta um matiz próprio, particular, pelo que a expressão
«efusão lírica» parece mais apropriada para classificar a situação por nós
evocada.
A DESCRIÇÃO
Vimos já, de uma maneira bastante
acessível e sintética, os diferentes modos de que dispomos para apresentar
diferentes tipos de ideias. Podemos agora passar a uma análise pormenorizada de
cada um deles. Comecemos pela leitura do seguinte texto:
«O Vale de Santarém é um destes lugares privilegiados
pela natureza, sítios amenos e deleitosos em que as plantas, o ar, a situação,
tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita: não há ali nada grandioso nem
sublime, mas há uma como simetria de cores, de sons, de disposição em tudo
quanto se vê e se sente, que não parece senão que a paz, a saúde, o sossego do
espírito e o repouso do coração devem viver ali, reinar ali um reinado de amor
e benevolência. As paixões más, os pensamentos mesquinhos, os pesares e as
vilezas da vida não podem senão fugir para longe. Imagina-se por aqui o Éden
que o primeiro homem habitou com a sua inocência e com a virgindade do seu
coração.
À esquerda do vale, e abrigado do norte pela
montanha que ali se corta quase a pique, está um maciço de verdura do mais belo
viço e variedade. A faia, o freixo, o álamo entrelaçam os ramos amigos; a
madressilva, a musqueta penduram de um a outro suas grinaldas e festões; a
congossa, os fetos, a malva-rosa do valado vestem e alcatifam o chão.
Para mais realçar a beleza do quadro, vê-se por entre um
claro das árvores a janela meio aberta de uma habitação antiga mas não
delapidada ─ com
certo ar de conforto grosseiro, e carregada na cor pelo tempo e pelos vendavais
do sul a que está exposta. A janela é mais larga e baixa; parece mais ornada e
também mais antiga que o resto do edifício que todavia mal se vê...»
ALMEIDA GARRETT, Viagens na minha terra, cap. X.
Verificámos pela leitura que o excerto transcrito foi extraído do
capítulo X de uma obra literária bastante conhecida e que tem como objectivo
introduzir o leitor num determinado local de acção, que é descrito pelo narrador
segundo um plano bem definido. Trata-se, pois, de uma
descrição, cuja estrutura é bastante fácil de determinar.
A cada parágrafo corresponde um momento sequencial na perspectiva
de observação seguida pelo autor, partindo do mais amplo para o mais restrito,
segundo uma técnica de "afunilamento".
O autor começa a descrição por uma identificação e impressão
geral do vale, que apresenta tendo em conta aspectos mais de carácter
subjectivo e psicológico do que objectivo. De objectivo, e mesmo assim de uma
objectividade relativa, apenas encontramos a referência aos diferentes elementos
que constituem a paisagem: plantas, ar, situação, cores, sons e ambiente que ali
reina. O que predomina é a impressão criada pelo ambiente sobre o observador,
impressão essa subjectiva, que o leva a afirmar ser um dos lugares privilegiados
pela natureza, um sítio ameno e deleitoso, um sítio onde há harmonia suavíssima
e perfeita e como que uma simetria de cores, som e disposição que convidam ao
sossego do espírito e ao repouso do coração.
Após a impressão geral sentida e transmitida
pelo observador, este vai centrar a sua atenção numa pequena parte do todo, na
parte esquerda do vale, prestando atenção aos elementos vegetais, que enumera
seguindo uma determinada sequência, de cima para baixo e do maior para o mais
pequeno, em três fases distintas: a faia, o freixo e o álamo
─ elementos elevados; a madressilva e
a musqueta
─ elementos intermédios; a congossa,
os fetos e a malva-rosa do valado
─ elementos situados no chão.
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No terceiro e último parágrafo, a atenção do observador vai-se
centrar num elemento ainda mais restrito. Vai-se concentrar num reduzidíssimo
pormenor, numa janela meio aberta de uma habitação antiga, observada por
entre um claro das árvores. |
Figura 55: Esquema que
mostra a estrutura utilizada por Garrett na descrição do Vale de Santarém. |
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Utilizando uma terminologia cinematográfica,
poderemos dividir a descrição do vale em três partes, correspondendo cada uma a
um parágrafo: no primeiro, é-nos dado um plano geral de todo o
vale; no segundo, tal como se fosse utilizada uma teleobjectiva com sistema zoom,
regulada na sua posição intermédia, a atenção é centrada na metade esquerda do
vale; finalmente, utilizando o máximo de aproximação, é-nos dado um grande
plano ou, poderíamos até mesmo considerar, um muito grande plano ou plano
de pormenor, já que a objectiva vai ser centrada num pormenor entre um
claro das árvores, sendo-nos mostrada uma janela meio aberta de uma casa
antiga.
A figura 55 mostra-nos, esquematicamente, os três planos de
observação correspondentes às três etapas descritivas utilizadas pelo Autor até
chegar ao pormenor que lhe interessa referir, servindo-lhe, no conjunto da obra
de onde foi extraído o excerto, para estabelecer a ligação, a janela de passagem
para o universo ficcional ligado àquela janela[1], fornecendo assim o pretexto para a
«novela da casa do vale», a história de Joaninha e de toda a sua família.
A nível frásico, as ideias seguem uma estrutura
própria do texto descritivo. À palavra ou expressão temática, indicadora
daquilo de que se vai falar, seguem-se-lhe os elementos correspondentes,
utilizando uma técnica de enumeração, linear, das diferentes características,
indicando aquilo que há ou aquilo que não há, bem como as impressões causadas. Aliás,
à técnica da enumeração Garrett vai aliar a técnica da oposição por
contraste, na medida em que indica os elementos de sinal negativo (o que não
há) e, em seguida, os de sinal positivo (aquilo que efectivamente há). Embora
possa parecer indiferente o começar a enumeração pelos elementos positivos ou
negativos, a verdade é que o resultado não é rigorosamente o mesmo. Começando
por evocar no leitor uma série de ideias, correspondentes àquilo que não
existe, vai-lhe permitir eliminar imagens mentais, para que a sua imaginação
apenas fique com a ideia daquilo que efectivamente se pretende fazer ver na
imaginação. Quer isto dizer que, além de estabelecer um contraste, vai permitir
ao leitor concentrar a sua imaginação apenas naquilo que efectivamente
interessa.
Técnica semelhante encontramo-la também noutros
autores, como é, por exemplo, o caso das meditações de Eurico acerca da
decadência do Império Godo, no capítulo V da Obra de ALEXANDRE HERCULANO,
Eurico, o Presbítero. Quando ele pergunta «quem é hoje
cristão e godo nesta nossa terra de Espanha», opõe quase simetricamente aos
aspectos positivos do passado («Dantes...») os aspectos negativos do presente
(«Hoje...»). E dizemos quase simetricamente, porque aos quatro elementos
positivos do passado vai opor cinco elementos negativos do presente, daqui
resultando um saldo negativo corroborando a sua ideia de decadência do império.
Voltando ao excerto descritivo de Garrett, poderemos
representá-lo de uma maneira esquemática, a nível textual, pelos elementos
gráficos da figura 55.
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Figura 56:
Diferentes tipos de descrição tendo em conta o modo de descrever e a natureza do
objecto descrito. |
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Idêntico esquema de análise textual se pode praticamente aplicar
a todos os textos descritivos. Todos eles seguem, em regra, uma estrutura
devidamente organizada[2], que facilmente poderemos
descobrir. Será esta uma das actividades que deveremos ter o cuidado de
realizar, perante um texto descritivo, tendo em vista a aquisição de
estratégias para a criação dos nossos próprios textos.
Feita esta primeira introdução ao texto
descritivo, será agora de toda a conveniência vermos mais alguma coisa acerca
do conceito de
descrição[3].
A descrição (do Latim DESCRIPTIONE -)
consiste na enumeração das características inerentes aos seres, animados ou
inanimados, aos objectos, aos cenários, aos ambientes e aos costumes sociais. Descrever
é desenhar, é pintar, é dizer por palavras as formas, as cores, as
perspectivas, as características das coisas e dos seres, e também a
apresentação dos ruídos, dos odores, dos sabores e das impressões tácteis.
Em princípio, a descrição implica a imobilidade do objecto
pormenorizado, «fora de qualquer acontecimento e mesmo de qualquer
dimensão
temporal»[4]. No entanto, embora a descrição
implique em princípio uma paragem no avanço da acção e, consequentemente, do
tempo, há casos em que a descrição perde o seu carácter estático, tornando-se
dinâmica. Leia-se, a título de exemplo, o texto adiante transcrito de Raul Brandão, no qual o Autor procura transmitir-nos
os diferentes aspectos assumidos pela ria de Aveiro, à medida que vai avançando através
dela e em diferentes momentos do dia, desde a madrugada até ao raiar do Sol. De
qualquer modo, esta descrição dinâmica não invalida a afirmação de Genette,
pois poderemos dizer que no texto de Raul Brandão o que encontramos é uma
sequência de micro-momentos, constituindo cada um deles como que um
fotograma estático. É como se o Autor tivesse uma câmara de filmar e fosse
registando, à medida que avança, no espaço e no tempo, as imagens observadas. Vendo-se
as imagens projectadas segundo uma determinada cadência, temos a noção do
movimento. No entanto, observando a olho nu a película, verificaremos que a
sequência é constituída por uma série de imagens estáticas.
Uma vez que a descrição consiste, como atrás dissemos, em
apresentar as características de todos os seres, sejam eles animados ou
inanimados, é possível elaborar uma classificação dos diferentes tipos de
descrição, tendo em conta quer a maneira como a descrição é feita, quer o
objecto da descrição.
Quanto ao modo de descrever, a descrição pode ser estática ou dinâmica e
objectiva, subjectiva ou técnica (veja-se o
quadro da figura 56).
Relativamente ao estatismo ou dinamismo da descrição, já atrás dissemos que a
descrição, em regra, implica a imobilidade daquilo que é descrito. Quando
incluída numa narração, implica uma paragem no avanço da acção, excepto quando
se procura apresentar uma sequência de aspectos. Daí que, habitualmente, se
possa distinguir a descrição estática da descrição dinâmica.
Quando a fantasia
e imaginação do escritor embeleza o objecto descrito, conferindo-lhe aspectos
passíveis de ser considerados de maneira diferente por outros observadores,
temos uma descrição subjectiva ou idealista;
pelo contrário, se o escritor procura ser o mais rigoroso
possível na transmissão das informações referentes aos elementos descritos, de
tal modo que aquilo que apresenta é rigorosamente o mesmo que qualquer outro
observador poderia ver, estamos na presença de uma descrição objectiva ou
realista. Mas podemos ainda
considerar a descrição técnica ou utilitária. Tal como a designação permite
deduzir, trata-se de uma descrição objectiva mas que visa uma função utilitária
e prática. Utilizando uma linguagem rigorosa e técnica, deve permitir
identificar com rigor um objecto ou compreender a sua estrutura e até mesmo o
seu funcionamento.
Quanto à natureza do objecto descrito, podemos encontrar
vários tipos de descrição.
A descrição topográfica ou topografia (topos='terreno' e grafia='registo')
consiste na apresentação das características referentes a um determinado
espaço, tendo em conta o aspecto geográfico: uma paisagem natural, uma
localidade, um espaço rural, urbano ou marítimo, etc. Embora saindo um pouco do
domínio geográfico, poderemos considerar ainda a descrição de um espaço aberto
ou de um espaço fechado e de um espaço restrito ou de um espaço amplo.
Quando na descrição se procura reproduzir os
diversos aspectos assumidos pelo objecto descrito em função de diferentes momentos
temporais, tais como uma paisagem ao amanhecer ou ao fim do dia, um pôr do Sol,
uma tempestade, as formas assumidas pelas nuvens, etc., estaremos no domínio da cronografia (cronos='tempo' e grafia='registo').
Quando se trata da descrição de personagens,
poderemos considerar três tipos de descrição: a prosopografia, que procura dar o retrato físico da
personagem; a etopeia, que visa a apresentação dos hábitos
e costumes das personagens; a descrição psicológica, que pode ser definida como a
técnica romanesca utilizada para dar a conhecer a maneira de ser e os processos
psíquicos de uma personagem, aquilo que habitualmente se designa por «corrente ou fluxo da consciência» (stream of consciousness), que encontramos frequentemente
quando o narrador
omnisciente, penetrando na mente da personagem,
procura dar a conhecer ao leitor tudo quanto lhe vai na mente.
Actualmente,
quando a descrição incide sobre uma pessoa, ou até mesmo sobre um animal, em
vez da referência aos três tipos de descrição tendo em vista a apresentação das
suas características, limitamo-nos a referir os traços físicos e
psicológicos, designando essa descrição por retrato. Quando os traços da descrição de
uma personagem são exagerados, pondo-se em destaque certos aspectos mais
caricatos e caracterizadores, o retrato passa a ter o aspecto de caricatura. Normalmente, embora por questões
didácticas se costume, ao elaborar o retrato de uma personagem, separar os
traços físicos dos psicológicos, a verdade é que esta separação se torna por
vezes difícil e arbitrária, uma vez que, frequentemente, os aspectos físicos e
morais se encontram ligados de modo indissociável. Os traços físicos reflectem
muitas vezes aspectos psicológicos da personagem. E ainda dentro deste aspecto
da descrição de uma personagem, a descrição pode incidir sobre diferentes
aspectos: físicos, sociais, morais e psicológicos.
Condições prévias para a
elaboração de uma descrição
Além de um
bom domínio da expressão escrita, o
acto de descrever
exige de quem o pratica o domínio da capacidade de observação, o que implica a necessidade:
·1º - de uma correcta utilização dos órgãos dos
sentidos;
·2º - do domínio de uma técnica de observação.
Quando se observa, é necessário prestar atenção às cores, às
formas, aos sons, aos odores e, em alguns casos, utilizar mesmo os restantes
sentidos, tais como o tacto e o gosto. Mas, simultaneamente, torna-se também
necessário dominar a técnica de observação.
Perante uma paisagem, por exemplo, a captação
dos diferentes aspectos não pode ser feita de maneira caótica, de maneira
desordenada. É indispensável uma estratégia de observação. Esta deve ser
efectuada de maneira metódica, seguindo uma determinada ordem pré-estabelecida
em função dos objectivos. Pode-se partir do geral para o particular mas,
em alguns casos, seguir uma ordem inversa. Pode-se partir de um plano
próximo para um plano mais afastado ou vice-versa. Pode-se seguir
uma ordem da esquerda para a direita ou, menos usual, da direita para a
esquerda. Pode-se começar de baixo para cima ou seguir um caminho
inverso. Pode-se, no caso do retrato de uma personagem, começar pela
enumeração dos seus traços físicos e psicológicos e só no final fornecer a sua
identificação ou, inversamente, começar pela sua identificação e caracterização
geral e em seguida descrevê-la pormenorizadamente. Em suma, seja qual for
o objecto da descrição, o importante é seguir uma determinada sequência,
previamente seleccionada, lógica e de acordo com os objectivos previamente
definidos.
Ao observarmos aquilo que vamos descrever, o órgão dos sentidos
mais utilizado é a visão. Ao observarmos, deveremos ou poderemos começar por
procurar captar uma visão de conjunto e, em seguida, prestar atenção aos
pormenores: as cores, as formas. Mas além da visão, os restantes sentidos
contribuem também para nos dar elementos importantes que completam e enriquecem
o primeiro sentido
─ o da visão. Poderemos mesmo afirmar
que há, de uma maneira geral, uma sequência lógica na utilização dos nossos
sentidos. O mais importante e aquele que nos permite um maior alcance é o da
visão, seguido sucessivamente pelo sentido da audição, de alcance mais
restrito, mas ainda bastante importante e com grande alcance. Em seguida, virá
o sentido do olfacto. Os sentidos do tacto e do gosto implicam uma maior
aproximação entre o observador e o elemento observado, exigindo mesmo o
contacto, pelo que são os sentidos que exigem o máximo de aproximação e,
consequentemente, os de uso mais restrito.
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Desnecessário se torna dizer que a ordenação dos sentidos feita
por nós é um tanto arbitrária, pois em certas circunstâncias esta sequência
poderá ser invertida. Por exemplo, vamos supor que se trata de descrever um
ambiente nocturno, no meio de uma floresta, numa noite quente de Verão.
Neste caso concreto, o sentido da visão estará relegado para um plano
secundário, tornando-se a sua importância mínima. |
Figura 57: Grau de
alcance dos diferentes órgãos dos sentidos: 1-visão; 2-audição; 3-olfacto;
4-tacto; 5-gosto. |
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Os sentidos que dominarão irão ser essencialmente o auditivo e o
olfactivo, pois serão eles que nos irão permitir captar os diversos sons
nocturnos, bem como os vários aromas exalados pela natureza. Mas o sentido do
tacto desempenhará também um certo papel, pois será ele que nos permitirá sentir
as carícias das brisas nocturnas, que nos trazem o calor morno da noite e os
aromas distantes exalados pela vegetação.
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Figura 58: Quadro com 30
exemplos de sinestesias colhidos em diversos escritores portugueses. Assinale
com uma cruz os sentidos correspondentes. |
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Relativamente à audição, deveremos prestar
atenção aos diferentes tipos de sons que nos chegam. Serão agradáveis ou
desagradáveis? Serão claros e distintos ou, pelo contrário, confusos e
distantes? Serão suaves ou estridentes? Ritmados ou desordenados? Calmantes ou
horripilantes?
Se a visão e a audição são os sentidos mais
utilizados na observação e na descrição, os restantes ocupam também um certo
lugar. Pelo sentido do tacto podemos apreender uma multiplicidade de aspectos:
as texturas e também as formas dos objectos. Trata-se de um objecto
áspero ou macio? É liso ou rugoso? É agradável ou desagradável ao tacto? Tem
arestas suaves ou, pelo contrário, acentuadas e cortantes? Mas, além destes
aspectos, pelo tacto podemos ainda captar as sensações álgicas e as térmicas.
Através do olfacto, chegam até nós odores agradáveis ou
desagradáveis. Pelo gosto, podemos apreender os sabores: doce ou amargo; suave,
aveludado, agradável ou ácido, picante, desagradável ou até mesmo ardente e
doloroso.
Em alguns casos, acontece mesmo que associamos
aspectos diferentes, inerentes simultaneamente a mais do que um sentido. Associamos
elementos visuais a aspectos auditivos, ou aspectos visuais a aspectos tácteis,
ou sensações auditivas a aspectos gustativos, ou aspectos auditivos a aspectos
tácteis, etc. Em suma, efectuamos uma simbiose de aspectos diferentes próprios
dos vários órgãos dos sentidos. Sempre que se verifica esta confusão ou interpenetração das sensações, estamos na presença da sinestesia. Quando dizemos que o som de um
instrumento é duro, estamos a associar o aspecto auditivo ao aspecto táctil. Quando
afirmamos que fulano gosta de usar cores berrantes ou cores gritantes, estamos
a associar o aspecto visual ao auditivo. O recurso à sinestesia permite-nos
obter imagens surpreendentes de beleza e expressividade, permite-nos uma
melhor caracterização dos objectos descritos. Leiam-se os exemplos
extraídos de vários autores, presentes no quadro da
figura 58, e procure-se
determinar quais os sentidos que estão em jogo em cada um[5].
[1] -
Veja-se pela leitura do excerto transcrito como a janela vai funcionar como o
meio de passagem de um para outro universo:
«Interessou-me
aquela janela.
Quem
terá o bom gosto e a fortuna de morar ali?
Parei
e pus-me a namorar a janela.
Encantava-me,
tinha-me ali como num feitiço.
Pareceu-me
entrever uma cortina branca... e um vulto por detrás... Imaginação decerto! Se
o vulto fosse feminino!... era completo o romance.
Como
há-de ser belo ver o pôr o do Sol daquela janela!...
(...)
O arvoredo, a janela, os rouxinóis... àquela hora, o fim da tarde... que
faltava para completar o romance? Um vulto feminino que viesse sentar-se àquele
balcão
─ vestido de branco
─ oh! branco por força... a frente descaída sobre a mão
esquerda, o braço direito pendente, os olhos alçados ao céu... De que cor os
olhos? Não sei, que importa! é amiudar muito de mais a pintura, que deve ser a
grandes e largos traços para ser romântica, vaporosa, desenhar-se no vago da
idealidade poética...
– «Os olhos, os olhos...» disse eu pensando já alto, e
todo no meu êxtase, «os olhos... pretos.»
– «Pois eram verdes!»
– «Verdes os olhos... dela, do vulto da janela?»
– «Verdes como duas esmeraldas orientais, transparentes,
brilhantes, sem preço.»
– «Quê! pois realmente?... É gracejo isso, ou realmente há
ali uma mulher, bonita, e?...»
– «Ali não há ninguém
─
ninguém que se nomeie hoje, mas houve... oh! houve um anjo, um anjo que deve
estar no céu.»
– «Bem dizia eu que aquela janela...»
–
«É a janela dos rouxinóis.»
(...)
ALMEIDA GARRETT, Viagens na minha terra,
cap. X.
[2] -
Recordem-se os diferentes tipos de estruturas de que nos podemos servir para a
elaboração de um plano, no capítulo II do vol. I da Gramática da Comunicação,
pp. 50-62.
[3] -
Segundo a retórica clássica, a descrição podia ser hipotipose, quando enérgica
e palpitante, e diatipose, quando prolixa e frouxa.
[4] -
Veja-se Gérard GENETTE, "Fronteiras da Narrativa" in: Análise
Estrutural da Narrativa, de Roland Barthes.
[5] - Os exemplos de
sinestesias apresentados no quadro da figura 58 foram colhidos em diversos
escritores portugueses, entre os quais Garrett, Eça, Camilo, Fialho de Almeida,
Soares dos Passos, Raul Brandão, etc. Embora no quadro as tenhamos separado,
normalmente as sensações álgicas (de dor) e térmicas andam associadas ao sentido
do tacto. O preenchimento correcto do quadro deverá ser de acordo com as
seguintes correspondências: 1-AB; 2-AC; 3-AC; 4-AC; 5-AC;
6-AC; 7-BD; 8-AB; 9-AG; 10-AE; 11-BF; 12-BF; 13-BF; 14-BC; 15-BC;
16-BC; 17-BC;
18-DE; 19-DE; 20-AF; 21-AF; 22-AC; 23-AC; 24-BC;
25-AB; 26-AF; 27-AE; 28-AF; 29-AB; 30-AF. |