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Henrique J. C. de Oliveira, Gramática da Comunicação, Col. Textos ISCIA, Aveiro, FEDRAVE, Vol. I, 1993, 311 pp., Vol. II, 1995, 328 pp.


VII

A Língua Portuguesa
Diferentes Aspectos de Análise do Discurso

 

O discurso directo, indirecto e indirecto livre. Os conceitos de descrição, narração, diálogo, monólogo e efusão lírica Introdução. A descrição. Classificação tipológica da descrição. Condições prévias para a elaboração de uma descrição. A sinestesia. Vocabulário utilizado na descrição. Esquemas auxiliares para elaboração de textos descritivos. Trabalhos práticos.

 
 

DESCRIÇÃO, NARRAÇÃO, DIÁLOGO

MONÓLOGO  E   EFUSÃO  LÍRICA

Descrição, narração, diálogo, monólogo e lírica são formas ou modos de expressão literária. São formas que encontramos normalmente nos textos ou obras literárias. No entanto, isto não significa que sejam exclusivas desta área da produção escrita; encontramo-las frequentemente nas situações correntes de comunicação, quer a nível da escrita, quer da oralidade. Aliás, o que encontramos no universo literário não é mais do que um reflexo de tudo quanto se passa no mundo real. Vejamos algumas situações concretas e com verosimilhança que, de maneira muito fácil, nos permitirão compreender estes conceitos.

Comecemos por imaginar uma situação de comunicação com um ou vários interlocutores. É indiferente tratar-se de uma situação formal ou informal. Mas talvez seja mais fácil visualizarmos uma situação informal, uma situação que ocorra frequentemente no nosso dia-a-dia. Assim sendo, imaginemos que nos encontramos numa banal conversa de café, entre amigos. Um deles, que chegou de férias, bem disposto e bronzeado após umas férias na Côte d'Azur, ou talvez no Algarve, resolve fazer-nos o relato das suas aventuras, das peripécias passadas durante os dias de descanso e do encontro com aquele casal amigo, que apareceu imprevistamente e com o qual explorou alguns lugares pitorescos da região. E as peripécias e factos vão-se desenrolando, de acordo com a sua sequência cronológica.

Na situação evocada, estaríamos perante uma situação de comunicação característica e frequente: a narração.

A dada altura, o nosso interlocutor, entusiasmado pelo reavivar das recordações, procura dar-nos uma ideia mais exacta do complexo turístico, uma pequena aldeia entre a serra e o mar, onde, além do casal amigo, encontrou aquela rapariga simpática que se juntou ao grupo. Interrompe momentaneamente o relato dos acontecimentos para apresentar, com certo pormenor, a aldeia, o seu enquadramento, o tipo de casas, o ambiente, em suma, todo o conjunto de aspectos caracterizadores. E, em seguida, para o relato ficar mais completo, utilizando uma boa quantidade de adjectivos, faz o retrato da rapariga que lhe fez bater mais apressadamente o coração.

A partir do momento em que interrompeu o relato das peripécias para nos dar a conhecer não só as características da paisagem e da aldeia, mas também da sua nova companheira, o modo de expressão literária passou a ser a descrição.

Frequentemente, o reviver de acontecimentos torna-se tão vivo, tão real, que nos parece que recuamos no tempo; e, sem querermos, quase sem disso nos darmos conta, estamos a reproduzir uma conversa travada com esta ou aquela pessoa, como se elas, magicamente, por força da nossa capacidade criadora, saíssem do passado e se materializassem na nossa frente. E, com a maior naturalidade, começamos a assumir o estatuto dessas «personagens» e a reproduzir-lhes fielmente as palavras, desdobrando-nos, sucessivamente, numas e noutras.

Estamos então  perante uma situação de diálogo. Passa a predominar o discurso directo. Não são já as nossas palavras que reproduzem o que outras disseram; são já as palavras directamente proferidas por cada um dos interlocutores e que a nossa memória e aparelho fonador reproduzem, como se se tratasse de um registo magnético.

Mas durante o tempo que evocamos nem tudo foi um mar de rosas. Ocorreram situações imprevistas, que nos marcaram profundamente, quer pelos seus aspectos negativos, quer pelos seus aspectos positivos. Na altura, estivemos longo tempo voltados para o nosso mundo interior, absortos, alheios a tudo quanto se passava à nossa volta. "Falámos com os nossos botões", reflectimos, analisámos em pormenor e demoradamente todos os dados dos problemas surgidos. E queremos agora, que recordamos os acontecimentos, transmitir com precisão aquilo que sentimos, aquilo que pensámos. Quer na situação vivida anteriormente, quer neste momento em que evocamos e procuramos reproduzir todo o fluxo do nosso pensamento, estamos na presença do monólogo ou monólogo interior.

Mas, durante o período de tempo em que vivemos determinadas situações, aconteceu algo que nos tocou mais profundamente, que fez vibrar as cordas da nossa sensibilidade. Foi aquela maravilhosa paisagem, foi aquele radioso pôr do sol em companhia de alguém que nos era querido ou num momento em que estávamos mais predispostos para nos libertarmos dos problemas e questiúnculas mesquinhas da vida. E, sem darmos por isso, a nossa mente deslizou para reinos maravilhosos, para outros mundos interiores e superiores, onde reina a paz, a harmonia, a beleza, a felicidade suprema.  Esquecemos por momentos os problemas da vida, as guerras que assolam o mundo, as doenças e as fomes. Penetrámos num mundo onde reinam a paz e a felicidade, onde a beleza e a poesia andam lado a lado, de mãos dadas, em perfeita harmonia com tudo e com todos.

Entrámos, sem disso termos tido plena consciência, no domínio da efusão lírica, domínio que, segundo alguns, é equivalente a monólogo ou monólogo interior. Embora se trate no fundo de um monólogo, a verdade é que apresenta um matiz próprio, particular, pelo que a expressão «efusão lírica»  parece mais apropriada para classificar a situação por nós evocada.

 

A DESCRIÇÃO

Vimos já, de uma maneira bastante acessível e sintética, os diferentes modos de que dispomos para apresentar diferentes tipos de ideias. Podemos agora passar a uma análise pormenorizada de cada um deles. Comecemos pela leitura do seguinte texto:

«O Vale de Santarém é um destes lugares privilegiados pela natureza, sítios amenos e deleitosos em que as plantas, o ar, a situação, tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita: não há ali nada grandioso nem sublime, mas há uma como simetria de cores, de sons, de disposição em tudo quanto se vê e se sente, que não parece senão que a paz, a saúde, o sossego do espírito e o repouso do coração devem viver ali, reinar ali um reinado de amor e benevolência. As paixões más, os pensamentos mesquinhos, os pesares e as vilezas da vida não podem  senão fugir para longe. Imagina-se por aqui o Éden que o primeiro homem habitou com a sua inocência e com a virgindade do seu coração.

À esquerda do vale, e abrigado do norte pela montanha que ali se corta quase a pique, está um maciço de verdura do mais belo viço e variedade. A faia, o freixo, o álamo entrelaçam os ramos amigos; a madressilva, a musqueta penduram de um a outro suas grinaldas e festões; a congossa, os fetos, a malva-rosa do valado vestem e alcatifam o chão.

Para mais realçar a beleza do quadro, vê-se por entre um claro das árvores a janela meio aberta de uma habitação antiga mas não delapidada com certo ar de conforto grosseiro, e carregada na cor pelo tempo e pelos vendavais do sul a que está exposta. A janela é mais larga e baixa; parece mais ornada e também mais antiga que o resto do edifício que todavia mal se vê...»

ALMEIDA GARRETT, Viagens na minha terra, cap. X.

Verificámos pela leitura que o excerto transcrito foi extraído do capítulo X de uma obra literária bastante conhecida e que tem como objectivo introduzir o leitor num determinado local de acção, que é descrito pelo narrador segundo um plano bem definido. Trata-se, pois, de uma descrição, cuja estrutura é bastante fácil de determinar.

A cada parágrafo corresponde um momento sequencial na perspectiva de observação seguida pelo autor, partindo do mais amplo para o mais restrito, segundo uma técnica de "afunilamento".

O autor começa a descrição por uma identificação e impressão geral do vale, que apresenta  tendo em conta aspectos mais de carácter subjectivo e psicológico do que objectivo. De objectivo, e mesmo assim de uma objectividade relativa, apenas encontramos a referência aos diferentes elementos que constituem a paisagem: plantas, ar, situação, cores, sons e ambiente que ali reina. O que predomina é a impressão criada pelo ambiente sobre o observador, impressão essa subjectiva, que o leva a afirmar ser um dos lugares privilegiados pela natureza, um sítio ameno e deleitoso, um sítio onde há harmonia suavíssima e perfeita e como que uma simetria de cores, som e disposição que convidam ao sossego do espírito e ao repouso do coração.

Após a impressão geral sentida e transmitida pelo observador, este vai centrar a sua atenção numa pequena parte do todo, na parte esquerda do vale, prestando atenção aos elementos vegetais, que enumera seguindo uma determinada sequência, de cima para baixo e do maior para o mais pequeno, em três fases distintas: a faia, o freixo e o álamo elementos elevados; a madressilva e a musqueta elementos intermédios; a congossa, os fetos e a malva-rosa do valado elementos situados no chão.

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No terceiro e último parágrafo, a atenção do observador vai-se centrar num elemento ainda mais restrito. Vai-se concentrar num reduzidíssimo pormenor, numa janela meio aberta de uma habitação antiga, observada por entre um claro das árvores.

Figura 55: Esquema que mostra a estrutura utilizada por Garrett na descrição do Vale de Santarém.

 

Utilizando uma terminologia cinematográfica, poderemos dividir a descrição do vale em três partes, correspondendo cada uma a um parágrafo: no primeiro, é-nos dado um plano geral de todo o vale; no segundo, tal como se fosse utilizada uma teleobjectiva com sistema zoom, regulada na sua posição intermédia, a atenção é centrada na metade esquerda do vale; finalmente, utilizando o máximo de aproximação, é-nos dado um grande plano ou, poderíamos até mesmo considerar, um muito grande plano ou plano de pormenor, já que a objectiva vai ser centrada num pormenor entre um claro das árvores, sendo-nos mostrada uma janela meio aberta de uma casa antiga.

A figura 55 mostra-nos, esquematicamente, os três planos de observação correspondentes às três etapas descritivas utilizadas pelo Autor até chegar ao pormenor que lhe interessa referir, servindo-lhe, no conjunto da obra de onde foi extraído o excerto, para estabelecer a ligação, a janela de passagem para o universo ficcional ligado àquela janela[1], fornecendo assim o pretexto para a «novela da casa do vale», a história de Joaninha e de toda a sua família.

A nível frásico, as ideias seguem uma estrutura própria do texto descritivo. À palavra ou expressão temática, indicadora daquilo de que se vai falar, seguem-se-lhe os elementos correspondentes, utilizando uma técnica de enumeração, linear, das diferentes características, indicando aquilo que há ou aquilo que não há, bem como as impressões causadas. Aliás, à técnica da enumeração Garrett vai aliar a técnica da oposição por contraste, na medida em que indica os elementos de sinal negativo (o que não há) e, em seguida, os de sinal positivo (aquilo que efectivamente há). Embora possa parecer indiferente o começar a enumeração pelos elementos positivos ou negativos, a verdade é que o resultado não é rigorosamente o mesmo. Começando por evocar no leitor uma série de ideias,  correspondentes  àquilo  que não existe, vai-lhe permitir eliminar imagens mentais, para que a sua imaginação apenas fique com a ideia daquilo que efectivamente se pretende fazer ver na imaginação. Quer isto dizer que, além de estabelecer um contraste, vai permitir ao leitor concentrar a sua imaginação apenas naquilo que efectivamente interessa.

Técnica semelhante encontramo-la também noutros autores, como é, por exemplo, o caso das meditações de Eurico acerca da decadência do Império Godo, no capítulo V da Obra de ALEXANDRE HERCULANO, Eurico, o Presbítero. Quando ele pergunta «quem é hoje cristão e godo nesta nossa terra de Espanha», opõe quase simetricamente aos aspectos positivos do passado («Dantes...») os aspectos negativos do presente («Hoje...»). E dizemos quase simetricamente, porque aos quatro elementos positivos do passado vai opor cinco elementos negativos do presente, daqui resultando um saldo negativo corroborando a sua ideia de decadência do império.

Voltando ao excerto descritivo de Garrett, poderemos representá-lo de uma maneira esquemática, a nível textual, pelos elementos gráficos da figura 55.

   
 

Figura 56: Diferentes tipos de descrição tendo em conta o modo de descrever e a natureza do objecto descrito.

 

Idêntico esquema de análise textual se pode praticamente aplicar a todos os textos descritivos. Todos eles seguem, em regra, uma estrutura devidamente organizada[2], que facilmente poderemos descobrir. Será esta uma das actividades que deveremos ter o cuidado de realizar, perante um texto descritivo, tendo em vista a aquisição de estratégias para a criação dos nossos próprios textos.

Feita esta primeira introdução ao texto descritivo, será agora de toda a conveniência vermos mais alguma coisa acerca do conceito de descrição[3].

A descrição (do Latim DESCRIPTIONE -) consiste na enumeração das características inerentes aos seres, animados ou inanimados, aos objectos, aos cenários, aos ambientes e aos costumes sociais. Descrever é desenhar, é pintar, é dizer por palavras as formas, as cores, as perspectivas, as características das coisas e dos seres, e também a apresentação dos ruídos, dos odores, dos sabores e das impressões tácteis.

Em princípio, a descrição implica a imobilidade do objecto pormenorizado, «fora de qualquer acontecimento e mesmo de qualquer dimensão temporal»[4]. No entanto, embora a descrição implique em princípio uma paragem no avanço da acção e, consequentemente, do tempo, há casos em que a descrição perde o seu carácter estático, tornando-se dinâmica. Leia-se, a título de exemplo, o texto adiante transcrito de Raul Brandão, no qual o Autor procura transmitir-nos os diferentes aspectos assumidos pela ria de Aveiro, à medida que vai avançando através dela e em diferentes momentos do dia, desde a madrugada até ao raiar do Sol. De qualquer modo, esta descrição dinâmica não invalida a afirmação de Genette, pois poderemos dizer que no texto de Raul Brandão o que encontramos é uma sequência de micro-momentos, constituindo cada um deles como que um fotograma estático. É como se o Autor tivesse uma câmara de filmar e fosse registando, à medida que avança, no espaço e no tempo, as imagens observadas. Vendo-se as imagens projectadas segundo uma determinada cadência, temos a noção do movimento. No entanto, observando a olho nu a película, verificaremos que a sequência é constituída por uma série de imagens estáticas.

Uma vez que a descrição consiste, como atrás dissemos, em apresentar as características de todos os seres, sejam eles animados ou inanimados, é possível elaborar uma classificação dos diferentes tipos de descrição, tendo em conta quer a maneira como a descrição é feita, quer o objecto da descrição.

Quanto ao modo de descrever, a descrição pode ser estática ou dinâmica e objectiva, subjectiva ou técnica (veja-se o quadro da figura 56). Relativamente ao estatismo ou dinamismo da descrição, já atrás dissemos que a descrição, em regra, implica a imobilidade daquilo que é descrito. Quando incluída numa narração, implica uma paragem no avanço da acção, excepto quando se procura apresentar uma sequência de aspectos. Daí que, habitualmente, se possa distinguir a descrição estática da descrição dinâmica.

Quando a fantasia e imaginação do escritor embeleza o objecto descrito, conferindo-lhe aspectos passíveis de ser considerados de maneira diferente por outros observadores, temos uma descrição subjectiva ou idealista; pelo contrário, se o escritor procura ser o mais rigoroso possível na transmissão das informações referentes aos elementos descritos, de tal modo que aquilo que apresenta é rigorosamente o mesmo que qualquer outro observador poderia ver, estamos na presença de uma descrição objectiva ou realista. Mas podemos ainda considerar a descrição técnica ou utilitária. Tal como a designação permite deduzir, trata-se de uma descrição objectiva mas que visa uma função utilitária e prática. Utilizando uma linguagem rigorosa e técnica, deve permitir identificar com rigor um objecto ou compreender a sua estrutura e até mesmo o seu funcionamento.

Quanto à natureza do objecto  descrito, podemos encontrar vários tipos de descrição.

A descrição topográfica ou topografia (topos='terreno' e grafia='registo') consiste na apresentação das características referentes a um determinado espaço, tendo em conta o aspecto geográfico: uma paisagem natural, uma localidade, um espaço rural, urbano ou marítimo, etc. Embora saindo um pouco do domínio geográfico, poderemos considerar ainda a descrição de um espaço aberto ou de um espaço fechado e de um espaço restrito ou de um espaço amplo.

Quando na descrição se procura reproduzir os diversos aspectos assumidos pelo objecto descrito em função de diferentes momentos temporais, tais como uma paisagem ao amanhecer ou ao fim do dia, um pôr do Sol, uma tempestade, as formas assumidas pelas nuvens, etc., estaremos no domínio da cronografia (cronos='tempo' e grafia='registo').

Quando se trata da descrição de personagens, poderemos considerar três tipos de descrição: a prosopografia, que procura dar o retrato físico da personagem; a etopeia, que visa a apresentação dos hábitos e costumes das personagens; a descrição psicológica, que pode ser definida como a técnica romanesca utilizada para dar a conhecer a maneira de ser e os processos psíquicos de uma personagem, aquilo que habitualmente se designa por «corrente ou fluxo da consciência» (stream of consciousness), que encontramos frequentemente quando o narrador omnisciente, penetrando na mente da personagem, procura dar a conhecer ao leitor tudo quanto lhe vai na mente. Actualmente, quando a descrição incide sobre uma pessoa, ou até mesmo sobre um animal, em vez da referência aos três tipos de descrição tendo em vista a apresentação das suas características, limitamo-nos a referir os traços físicos e psicológicos, designando essa descrição por retrato. Quando os traços da descrição de uma personagem são exagerados, pondo-se em destaque certos aspectos mais caricatos e caracterizadores, o retrato passa a ter o aspecto de caricatura. Normalmente, embora por questões didácticas se costume, ao elaborar o retrato de uma personagem, separar os traços físicos dos psicológicos, a verdade é que esta separação se torna por vezes difícil e arbitrária, uma vez que, frequentemente, os aspectos físicos e morais se encontram ligados de modo indissociável. Os traços físicos reflectem muitas vezes aspectos psicológicos da personagem. E ainda dentro deste aspecto da descrição de uma personagem, a descrição pode incidir sobre diferentes aspectos: físicos, sociais, morais e psicológicos.
 

Condições prévias para a elaboração de uma descrição

Além de um bom domínio da expressão escrita, o acto de descrever exige de quem o pratica o domínio da capacidade de observação, o que implica a necessidade:

                  ·1º - de uma correcta utilização dos órgãos dos sentidos;

                  ·2º - do domínio de uma técnica de observação.

Quando se observa, é necessário prestar atenção às cores, às formas, aos sons, aos odores e, em alguns casos, utilizar mesmo os restantes sentidos, tais como o tacto e o gosto. Mas, simultaneamente, torna-se também necessário dominar a técnica de observação.

Perante uma paisagem, por exemplo, a captação dos diferentes aspectos não pode ser feita de maneira caótica, de maneira desordenada. É indispensável uma estratégia de observação. Esta deve ser efectuada de maneira metódica, seguindo uma determinada ordem pré-estabelecida em função dos objectivos. Pode-se partir do geral para o particular mas, em alguns casos, seguir uma ordem inversa. Pode-se partir de um plano próximo para um plano mais afastado ou vice-versa. Pode-se seguir uma ordem da esquerda para a direita ou, menos usual, da direita para a esquerda. Pode-se começar de baixo para cima ou seguir um caminho inverso. Pode-se, no caso do retrato de uma personagem, começar pela enumeração dos seus traços físicos e psicológicos e só no final fornecer a sua identificação ou, inversamente, começar pela sua identificação e caracterização geral e em seguida descrevê-la pormenorizadamente. Em suma, seja qual for o objecto da descrição, o importante é seguir uma determinada sequência, previamente seleccionada, lógica e de acordo com os objectivos previamente definidos.

Ao observarmos aquilo que vamos descrever, o órgão dos sentidos mais utilizado é a visão. Ao observarmos, deveremos ou poderemos começar por procurar captar uma visão de conjunto e, em seguida, prestar atenção aos pormenores: as cores, as formas. Mas além da visão, os restantes sentidos contribuem também para nos dar elementos importantes que completam e enriquecem o primeiro sentido o da visão. Poderemos mesmo afirmar que há, de uma maneira geral, uma sequência lógica na utilização dos nossos sentidos. O mais importante e aquele que nos permite um maior alcance é o da visão, seguido sucessivamente pelo sentido da audição, de alcance mais restrito, mas ainda bastante importante e com grande alcance. Em seguida, virá o sentido do olfacto. Os sentidos do tacto e do gosto implicam uma maior aproximação entre o observador e o elemento observado, exigindo mesmo o contacto, pelo que são os sentidos que exigem o máximo de aproximação e, consequentemente, os de uso mais restrito.

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Desnecessário se torna dizer que a ordenação dos sentidos feita por nós é um tanto arbitrária, pois em certas circunstâncias esta sequência poderá ser invertida. Por exemplo, vamos supor que se trata de descrever um ambiente nocturno, no meio de uma floresta, numa noite quente de Verão. Neste caso concreto, o sentido da visão estará relegado para um plano secundário, tornando-se a sua importância mínima.

Figura 57: Grau de alcance dos diferentes órgãos dos sentidos: 1-visão; 2-audição; 3-olfacto; 4-tacto; 5-gosto.

 

Os sentidos que dominarão irão ser essencialmente o auditivo e o olfactivo, pois serão eles que nos irão permitir captar os diversos sons nocturnos, bem como os vários aromas exalados pela natureza. Mas o sentido do tacto desempenhará também um certo papel, pois será ele que nos permitirá sentir as carícias das brisas nocturnas, que nos trazem o calor morno da noite e os aromas distantes exalados pela vegetação.

   
 

Figura 58: Quadro com 30 exemplos de sinestesias colhidos em diversos escritores portugueses. Assinale com uma cruz os sentidos correspondentes.

 

Relativamente à audição, deveremos prestar atenção aos diferentes tipos de sons que nos chegam. Serão agradáveis ou desagradáveis? Serão claros e distintos ou, pelo contrário, confusos e distantes? Serão suaves ou estridentes? Ritmados ou desordenados? Calmantes ou horripilantes?

Se a visão e a audição são os sentidos mais utilizados na observação e na descrição, os restantes ocupam também um certo lugar. Pelo sentido do tacto podemos apreender uma multiplicidade de aspectos: as texturas e também as formas dos objectos. Trata-se de um objecto áspero ou macio? É liso ou rugoso? É agradável ou desagradável ao tacto? Tem arestas suaves ou, pelo contrário, acentuadas e cortantes? Mas, além destes aspectos, pelo tacto podemos ainda captar as sensações álgicas e as térmicas.

Através do olfacto, chegam até nós odores agradáveis ou desagradáveis. Pelo gosto, podemos apreender os sabores: doce ou amargo; suave, aveludado, agradável ou ácido, picante, desagradável ou até mesmo ardente e doloroso.

Em alguns casos, acontece mesmo que associamos aspectos diferentes, inerentes simultaneamente a mais do que um sentido. Associamos elementos visuais a aspectos auditivos, ou aspectos visuais a aspectos tácteis, ou sensações auditivas a aspectos gustativos, ou aspectos auditivos a aspectos tácteis, etc. Em suma, efectuamos uma simbiose de aspectos diferentes próprios dos vários órgãos dos sentidos. Sempre que se verifica esta confusão ou interpenetração das sensações, estamos na presença da sinestesia. Quando dizemos que o som de um instrumento é duro, estamos a associar o aspecto auditivo ao aspecto táctil. Quando afirmamos que fulano gosta de usar cores berrantes ou cores gritantes, estamos a associar o aspecto visual ao auditivo. O recurso à sinestesia permite-nos obter imagens surpreendentes de beleza e expressividade, permite-nos uma melhor caracterização dos objectos descritos. Leiam-se os exemplos extraídos de vários autores, presentes no quadro da figura 58, e procure-se determinar quais os sentidos que estão em jogo em cada um[5].
 


[1] - Veja-se pela leitura do excerto transcrito como a janela vai funcionar como o meio de passagem de um para outro universo:

            «Interessou-me aquela janela.

            Quem terá o bom gosto e a fortuna de morar ali?

            Parei e pus-me a namorar a janela.

            Encantava-me, tinha-me ali como num feitiço.

            Pareceu-me entrever uma cortina branca... e um vulto por detrás... Imaginação decerto! Se o vulto fosse feminino!... era completo o romance.

            Como há-de ser belo ver o pôr o do Sol daquela janela!...

(...) O arvoredo, a janela, os rouxinóis... àquela hora, o fim da tarde... que faltava para completar o romance? Um vulto feminino que viesse sentar-se àquele balcão vestido de branco oh! branco por força... a frente descaída sobre a mão esquerda, o braço direito pendente, os olhos alçados ao céu... De que cor os olhos? Não sei, que importa! é amiudar muito de mais a pintura, que deve ser a grandes e largos traços para ser romântica, vaporosa, desenhar-se no vago da idealidade poética...

            – «Os olhos, os olhos...» disse eu pensando já alto, e todo no meu êxtase, «os olhos... pretos.»

            «Pois eram verdes!»

            «Verdes os olhos... dela, do vulto da janela?»

            «Verdes como duas esmeraldas orientais, transparentes, brilhantes, sem preço.»

            «Quê! pois realmente?... É gracejo isso, ou realmente há ali uma mulher, bonita, e?...»

            «Ali não há ninguém ninguém que se nomeie hoje, mas houve... oh! houve um anjo, um anjo que deve estar no céu.»

            «Bem dizia eu que aquela janela...»

            «É a janela dos rouxinóis.»

            (...)

            ALMEIDA GARRETT, Viagens na minha terra, cap. X.

[2] - Recordem-se os diferentes tipos de estruturas de que nos podemos servir para a elaboração de um plano, no capítulo II do vol. I da Gramática da Comunicação, pp. 50-62.

[3] - Segundo a retórica clássica, a descrição podia ser hipotipose, quando enérgica e palpitante, e diatipose, quando prolixa e frouxa.

[4] - Veja-se Gérard GENETTE, "Fronteiras da Narrativa" in: Análise Estrutural da Narrativa, de Roland Barthes.

[5] - Os exemplos de sinestesias apresentados no quadro da figura 58 foram colhidos em diversos escritores portugueses, entre os quais Garrett, Eça, Camilo, Fialho de Almeida, Soares dos Passos, Raul Brandão, etc. Embora no quadro as tenhamos separado, normalmente as sensações álgicas (de dor) e térmicas andam associadas ao sentido do tacto. O preenchimento correcto do quadro deverá ser de acordo com as seguintes correspondências: 1-AB;  2-AC;  3-AC; 4-AC;  5-AC;  6-AC; 7-BD; 8-AB; 9-AG; 10-AE; 11-BF;  12-BF; 13-BF;  14-BC;  15-BC;  16-BC;  17-BC; 18-DE; 19-DE;  20-AF; 21-AF;  22-AC;  23-AC;  24-BC;  25-AB; 26-AF; 27-AE;  28-AF; 29-AB;  30-AF.


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