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Página 3 |
Boletim da Biblioteca
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ah a cor da noite
de todos os animais
solitários. lenta aparição.
corações feridos na travessia
dos prados quietos.
sombras inclinadas ângulos
rarefeitos na treva
os ramais sem muro.
cães acossados na nudez
do lugar
atravessam a geografia do deserto
inteiro. Em nebulosa romaria.
por dentro das grutas
insones
pesam as pálpebras líquidas
despenhadas na ausência.
há os amantes no silêncio
claro da lua.
nas peles desnudas tacteiam
um instante. um fim de solidão.
há mãos que derivam na
escrita
nas sílabas crepusculares
intentando réstias de memória.
ah as vozes invisíveis
antigas no medo límpio. |
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há uma voz insistente
que chama da rua
linguarejar de fim de verão na noite amena
na pausa dos gestos ensaio mínimos os passos
breves estalidos folhas precoces na idade
distante a voz que a rua não alcança
marulha nas sombras dos muros antigos
líquida
sinto-a devolver-me a sede |
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penso as pequenas pétalas de uma cidade
enviesada
caules magníficos erguendo as taças nos
breves canteiros,
a voragem dos passeios sob o céu agreste
o céu dos teus olhos que despertam as
madrugadas
de fábricas imensas na ausência dos
girassóis
de pranto na boca das crianças em meio das
ruínas.
penso essa pequena claridade
gotas raras de orvalho. |
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O CÉU
DE MAGRITTE
Ele aguardava ser
chamado pelo director que o convocara. Tão raro era!
Devia ser especial a novidade. Fixava a parede
branca, escrutinava-a com o olhar, procurava uma
infracção, uma pequena fractura, uma minúscula
mancha, uma gota de humidade, algum bichinho
assustado. Nada! A parede permanecia imaculadamente
branca. O que não entendia, não podia mesmo ser. Por
um momento, acreditou que também os seus olhos se
haviam tornado brancos. |
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Entrou. O vigilante ficou à porta. Parecia inquieto,
o que também era raro. À saída, foi conduzido de
novo à cela. Ficava nas águas-furtadas da casa
grande. As cores do arco-íris reluziam nas gotículas
que ainda escorriam os vidros da clarabóia. Sete as
cores do arco-íris. Sete anos a repetir meta-se na
sua vida! porque a minha mágica... Silêncio
esquadrinhado no tecto espelhado da mansarda que
guardava todos os segredos, instantes onde arranhava
os limites do visível, memória das horas indizíveis…
e o céu é o mar do meu poema…
Desceu o olhar ao jardim, onde o
vigilante de bata branca fitava o banco vazio em
frente. E recordou as palavras do director: “Tem
estado calmo, melhor, e o seu médico deu-lhe alta.
Já não constitui perigo para a sociedade nem para si
mesmo. Além disso, o vigilante está em idade de
reforma, vai-se aposentar.” Olhou de novo o homem de
bata branca… meta-se na sua vida! porque a minha é
mágica... O vigilante reapareceu. Era a hora do
passeio no jardim. “Hora de passeio no jardim” disse
ele com secura. Em todo o caso, ainda os pássaros...
Todo o canto era deles.
...... Os dias passaram iguais,
perfilados em sentido. No dia da saída, os dois
homens permaneceram, por alguns minutos, parados em
frente ao portão, na mesma hesitação muda.
...... – Vou estranhar a nova
casa – disse o ex-vigilante.
...... – Vou estranhar o
novo céu – respondeu o ex-paciente – neste, tudo era
possível.
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