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Boletim da Biblioteca    

Textos de Maria Manuel Rocha

(professora de Português da ESJE)

http://blogcompalavrasaofundo.blogspot.com/

ah a cor da noite
de todos os animais
solitários. lenta aparição.
corações feridos na travessia
dos prados quietos.
sombras inclinadas ângulos
rarefeitos na treva
os ramais sem muro.

cães acossados na nudez do lugar
atravessam a geografia do deserto
inteiro. Em nebulosa romaria.

por dentro das grutas insones
pesam as pálpebras líquidas
despenhadas na ausência.

há os amantes no silêncio claro da lua.
nas peles desnudas tacteiam
um instante. um fim de solidão.

há mãos que derivam na escrita
nas sílabas crepusculares
intentando réstias de memória.

ah as vozes invisíveis
antigas no medo límpio.

 

há uma voz insistente
que chama da rua
linguarejar de fim de verão na noite amena

na pausa dos gestos ensaio mínimos os passos
breves estalidos folhas precoces na idade

distante a voz que a rua não alcança
marulha nas sombras dos muros antigos

líquida sinto-a devolver-me a sede

   
 

penso as pequenas pétalas de uma cidade enviesada
caules magníficos erguendo as taças nos breves canteiros,
a voragem dos passeios sob o céu agreste
o céu dos teus olhos que despertam as madrugadas
de fábricas imensas na ausência dos girassóis
de pranto na boca das crianças em meio das ruínas.

penso essa pequena claridade
gotas raras de orvalho.

   
   


      
O CÉU DE MAGRITTE

     Ele aguardava ser chamado pelo director que o convocara. Tão raro era! Devia ser especial a novidade. Fixava a parede branca, escrutinava-a com o olhar, procurava uma infracção, uma pequena fractura, uma minúscula mancha, uma gota de humidade, algum bichinho assustado. Nada! A parede permanecia imaculadamente branca. O que não entendia, não podia mesmo ser. Por um momento, acreditou que também os seus olhos se haviam tornado brancos.

 

     Entrou. O vigilante ficou à porta. Parecia inquieto, o que também era raro. À saída, foi conduzido de novo à cela. Ficava nas águas-furtadas da casa grande. As cores do arco-íris reluziam nas gotículas que ainda escorriam os vidros da clarabóia. Sete as cores do arco-íris. Sete anos a repetir meta-se na sua vida! porque a minha mágica... Silêncio esquadrinhado no tecto espelhado da mansarda que guardava todos os segredos, instantes onde arranhava os limites do visível, memória das horas indizíveis… e o céu é o mar do meu poema…
     Desceu o olhar ao jardim, onde o vigilante de bata branca fitava o banco vazio em frente. E recordou as palavras do director: “Tem estado calmo, melhor, e o seu médico deu-lhe alta. Já não constitui perigo para a sociedade nem para si mesmo. Além disso, o vigilante está em idade de reforma, vai-se aposentar.” Olhou de novo o homem de bata branca… meta-se na sua vida! porque a minha é mágica... O vigilante reapareceu. Era a hora do passeio no jardim. “Hora de passeio no jardim” disse ele com secura. Em todo o caso, ainda os pássaros... Todo o canto era deles.
...... Os dias passaram iguais, perfilados em sentido. No dia da saída, os dois homens permaneceram, por alguns minutos, parados em frente ao portão, na mesma hesitação muda.
...... – Vou estranhar a nova casa – disse o ex-vigilante.
...... – Vou estranhar o novo céu – respondeu o ex-paciente – neste, tudo era possível.

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