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Uma das perplexidades maiores suscitadas pelo conjunto da obra de Hélder
Bandarra residirá, não tanto no fascinante trabalho da cor, assumido
como componente essencial de uma identidade marcada por contrastes que o
vigor da festa pictórica agudiza, mas mais na constatação de que estes
desenhos, estes quadros, aquelas pinturas, sendo deste tempo, estão
muito para lá dos estreitos limites de tempo definidos por uma
contemporaneidade simultaneamente avassaladora e redutora. |
Expliquemo-nos. Num tempo de forçosas catalogações, Hélder Bandarra
constrói um imaginário apostado em respirar para além das veredas
ajustadas a discursos moldados pelo sopro dos ares que passam. Coma
serena força de quem está porque sempre assim esteve, sem necessidade de
se perder nos corredores de modismos circunstanciais, o pintor deixa-se
mergulhar nas cenas de um quotidiano rasgado pelo mistério que sempre
condiciona todas as inocências. A pureza do traço não é aqui o caminho
mais fácil e directo para definição da imagem, mas antes um poderoso
veículo de afirmação de uma linguagem estruturada e responsável por um
discurso notável de coerência, em que o acessório jamais é confundido
com o essencial.
Há uma audácia implícita nas dimensões destes desenhos, que nos remete
para momentos grandiosos da arte através dos tempos. É impossível ficar
indiferente à necessidade de estabelecer uma relação com outras etapas
da expressão pictórica de Hélder Bandarra, de modo a podermos desaguar
numa constatação incontornável: o seu universo é o da grande criação e o
sujeito desse universo é sempre o Homem.
O Homem com as suas paixões violentas, seduções infinitas, alegrias
contagiantes, choros envolventes. Há, por vezes, um delicioso sentido de
festa a pontuar a universalidade destes desenhos incapazes de escapar à
representação dramática do mundo em que nos movimentamos. A aparente
contradição entre o sentido dramático da vida e retalhos de quotidianos
festivos pontua os hiatos suscitados pela conveniência do ser e a
inconveniência do estar.
Às vezes deixamo-nos arrastar por paixões imensas construídas de
pequenos nadas, retratos a preto e branco de existências insubmissas,
mas amarfanhadas no tempo.
Com estes trabalhos em grafite, Hélder Bandarra assume um retrato outro,
porventura controverso, mas seguramente moldado por uma infinita paixão
pelos corpos, pelos rostos, pelos sentidos, pelos olhares.
O olhar e o modo como se olha – a urgência estampada nos olhos que se
contemplam – conferem a estes desenhos uma dimensão onírica. E, no
entanto, há aqui uma imensa sobriedade, uma estranha forma de dar vida a
seres sensíveis, apaixonados, seduzidos pelo longe espraiado em rostos
afinal tão próximos.
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É esse o drama das sociedades contemporâneas. Tudo parece estar ao
alcance da mão.
Tudo parece estar provocadoramente próximo. Tudo parece estar apenas à
distância de um toque. E, contudo, vivemos longe. Tocamo-nos e não nos
vemos. Respiramos o mesmo ar e não nos sentimos. A sombra dos outros
jamais se confunde com a nossa própria sombra, porque os olhares –
sempre os olhares – estão demasiados distantes para sentirem
proximidade.
Os desenhos de Hélder Bandarra encenam esse paradoxo e esfacelam os
contentamentos de consciências acomodadas. Estão carregados de emoções e
estabelecem o contraponto sentido de quem vê os corpos como emanação de
seres que se inventam no quotidiano fingimento de abraços despojados de
sensações.
Nos desenhos de Hélder Bandarra, os rostos assumem uma neutralidade
perturbante. Talvez porque às vezes os rostos parecem máscaras, ou,
seguramente, porque as máscaras são a invenção dos rostos possíveis.
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Valdemar Cruz
Exposição de desenhos de grande
formato
Galeria Municipal de Aveiro, Novembro 1996 |