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Hélder Bandarra, O Percurso do Artista, Aveiro, Novembro 2010, 180 páginas.

2. O artista em 1ª pessoa

AVEIRO – LISBOA – PORTO

Não me encontrava minimamente vocacionado para desenvolver uma actividade profissional em Aveiro. A cidade era muito “apertada”, pouco aberta, e havia falta de meios e empregos. Para não perder a veia artística que estava latente em mim, passei alguns meses em casa a pintar, fazendo uma exposição de pintura no Teatro Aveirense com o amigo Jaime Borges. Na livraria deste amigo nasceram muitos eventos culturais. Ele era um dinamizador para muitas realizações. Nesse espaço, os amigos juntavam-se para trocar impressões. Alimentávamos o sonho de Paris e seus artistas. Com ele combinei a minha primeira exposição no Salão Nobre do Teatro Aveirense, em 1963. A exposição foi muito participada pela elite aveirense. Ficaram patentes ao público uma vintena de quadros a óleo e a pastel e idêntica quantidade do Jaime em ferro, óleos e guaches.

“O violinista”, óleo – 1959 - pág. 22

“O violinista”, óleo – 1959

/ 23 / Em 1964, este amigo inaugura a primeira galeria de arte em Aveiro e uma exposição de pintura escultura e desenho denominada "nove artistas de Aveiro" em que também participei. Esta galeria realizou quatro salões de arte conhecidos pelos salões de Aveiro, onde obtive dois segundos prémios de pintura nos anos de 1965 e 1966.
 
Neste contexto, o Dr. Vasco Branco foi para nós uma referência cultural; amigo e pessoa muito viajada, transmitia-nos novos conhecimentos e falava de novos artistas. Creio que foi através dele que ouvi falar de Picasso, o artista que colocava um olho em  cima e outro em baixo. Era o modernismo a bater-me à porta. Era um jovem curioso sedento de novidades. Cá tudo chegava muito tarde e a más horas.

Catálogo da Exposição - pág. 23

Catálogo da Exposição

Experimentei os meus primeiros desenhos e pinturas abstractas. Com ele nasceu o grupo “Círculo de Artes Plásticas do Clube dos Galitos”. Embrião de expressão artística que veio mais tarde, em 1971, a dar origem à fundação do grupo Aveiro-Arte, do qual sou sócio fundador. Foi formado o Circulo Experimental dos Artistas de Aveiro com dezasseis artistas, entusiastas e activos, que  deram origem a este movimento, cujo objectivo era a união dos artistas plásticos naturais da região de Aveiro ou nela radicados que revelassem nítida tendência para a experimentação, para a criatividade e modernidade com inequívoca qualidade estética.

Este grupo participou em inúmeras iniciativas cívicas e exposições, viajou pelo país e estrangeiro, levando a nossa arte ao conhecimento de milhares de pessoas e instituições, divulgando a cidade e a cultura de Aveiro. A nossa presença no Parlamento Europeu, em 2008, foi o maior acontecimento vivido pelo nosso grupo. É também de referir a atribuição pelo Município de Aveiro da medalha de mérito municipal em 12 de Maio de 2001.
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Nessa altura o meu irmão Manuel tinha regressado do Brasil e arranjado um trabalho na Agência de Publicidade ZEIGER, em Lisboa. Ficou lá alguns meses, decidindo voltar ao Brasil por incompatibilidade com o meio lisboeta. Foi ele que me indicou ao seu patrão, empresário alemão, para me admitir nos seus estúdios como designer. Ainda trabalhei com ele um mês antes da sua saída. Neste atelier de trabalho conheci
Manuel Lapa, o mestre e professor da Escola das Belas Artes de Lisboa, excelente artista e de grande elevação moral, com quem trabalhei em vários projectos artísticos. Na mesma empresa era meu colega de trabalho o grande e saudoso poeta Ary dos Santos – irreverente, genial e um declamador de excepção. Nessa altura publicou o seu primeiro livro de poesia; almoçava connosco quase diariamente, contava histórias e declamava poesias para os colegas nas horas de repasto, inflamando tudo e todos à sua volta.

“Mulheres do mar”, óleo - pág. 24
“Mulheres do mar”, óleo

/ 25 / "Pescadores com redes", óleo / 26 /
Fiquei a residir num quarto alugado na Rua Viriato n.º 5, perto da Maternidade Alfredo da Costa. A minha “suite” era uma pequena dispensa onde eu mal cabia e onde passei três difíceis e penosos meses. Em seguida, arranjei um outro quarto, em casa de um colega, fotógrafo de profissão, na Rua de Entre Paredes ao Campo Pequeno, tendo por perto a antiga e animada Feira Popular. Era uma família simpática que me tratava com respeito e amizade. Foi uma fase profissional muito intensa e instável, com mudanças frequentes.

A minha adaptação à cidade de Lisboa não foi nada fácil: novos hábitos, horários, maneiras de ser e de estar; na verdade era um novo país ao qual me fui adaptando, contornando provações e dificuldades.
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Saí dos estúdios ZEIGER para fazer uma sociedade com dois colegas de profissão. Criámos o nosso próprio espaço, um atelier onde se fazia fotografia industrial, serigrafia e outros trabalhos gráficos.

Cartaz que obteve o 1.º Prémio num Concurso Mundial de Cartazes – Tóquio, 1967 - pág. 26
Cartaz que obteve o 1.º Prémio num Concurso Mundial de Cartazes – Tóquio, 1967

Como designers trabalhávamos muitas horas para ganharmos esta aposta profissional. Alugámos um andar na Rua Actor Isidoro, junta à Alameda D. Afonso Henriques. Penso que corria o ano de 1964 e eu deambulava pelas ruas de Lisboa cantarolando as músicas dos Beatles.

Com o escultor Francisco Simões, no seu atelier em Sintra – 2009 - pág. 27
Com o escultor Francisco Simões, no seu atelier em Sintra – 2009

Meses depois, fui convidado para trabalhar no Comissariado Nacional de Turismo, no Palácio Foz, aos Restauradores, na área do turismo gráfico. Fazia cartazes, desdobráveis, capas de livros, tudo aquilo que exigia intervenção gráfica.
 
Essa fase profissional da minha vida foi muito importante, porque acalmei aquele mar revolto dos meus primeiros anos na capital. Nesses serviços, em parceria com José Carrasco, fiz a concepção gráfica de um cartaz que representou Portugal num concurso  mundial de turismo em Tóquio, obtendo o primeiro lugar.
No Parque dos Poetas, Oeiras, junto à estátua de Alexandre O’Neill - pág. 28

Foi meu colega de estúdio aquele que é hoje um dos grandes nomes da escultura portuguesa – Francisco Simões. Assisti aos seus primeiros trabalhos. Éramos confidentes em todas as horas, jovens artistas que tudo faziam para acompanhar o progresso e a revolução cultural e social da época. Estávamos nos anos 60. Nas ruas de Lisboa fervilhavam experiências e as nossas actividades culturais eram constantes. Tínhamos / 28 / amigos excelentes com quem partilhávamos as nossas ideias, relações com poetas, artistas plásticos, profissionais da Rádio e da Televisão. Tempo que não esqueço e uma amizade que perdura.

No Parque dos Poetas, Oeiras, junto à estátua de Alexandre O’Neill

Mudei para um quarto na Rua da Verónica, no bairro da Graça, junto ao Batalhão de Sapadores Bombeiros.

O meu chefe nesses serviços, Licínio de Melo, foi exercer funções noutra empresa e convidou-me para o substituir nos dois part-time que ocupava. Assim, passei a exercer só de manhã no turismo, em vez do dia todo; e, de tarde, ingressei na Agencia de Publicidade Sonarte, cujo patrão era o Sr. Artur Agostinho, locutor e figura conhecida que não precisa de apresentação. Tive com ele uma relação profissional excelente, de respeito e estima. É um amigo que nunca esquecerei. Foram anos de aprofundamento artístico e contactos excelentes. Convivi com colegas de enorme capacidade intelectual, com quem privei diariamente, como Fernando Pernes, critico de Arte, Raul Calado, expert em Jazz, e homens da televisão como Jorge Alves e Fialho Gouveia, com quem mantinha conversas nos intervalos de gravações de rádio que eles vinham fazer à nossa Agência. Tive o privilégio de trabalhar numa campanha de publicidade com o insigne poeta surrealista Alexandre O’Neill que me visitou em trabalho por diversas vezes.
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Tudo quanto acontecia em Lisboa em exposições eu acompanhava. Havia aquela exaltação de nos afirmarmos. Nas aulas pintei um nu a óleo que o mestre Gil Teixeira Lopes fez questão de mostrar aos seus outros colegas professores da escola. Fiquei sensibilizado.

 “Evocação de Aveiro”, Hélder Bandarra – Segundo Prémio de Pintura - pág. 29
 “Evocação de Aveiro”, Hélder Bandarra – Segundo Prémio de Pintura

Nesse tempo João Hogan, Fausto Boavida e Francisco Simões eram companheiros da “bica”. Em Aveiro decorriam os salões de Arte Aveiro I e Aveiro II onde fui premiado com dois segundos prémios de pintura. 
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De novo mudei de residência passando a morar no Bairro das Colónias, na Rua do Zaire, n.º 40-2.º Dt.º, onde aluguei um apartamento para viver sozinho. Finalmente tinha o meu atelier, onde podia, à vontade, espalhar os materiais de arte que preenchiam o meu sonho de jovem artista.
 

Era a realização da minha vocação de sempre. Matriculei-me nas aulas nocturnas da Sociedade Nacional de Belas Artes onde permaneci três anos e tive como professores, no desenho, Hélder Baptista, e na pintura, o grande mestre Gil Teixeira Lopes. Foi  mais um arranque importante na minha carreira. Com colegas excelentes mantínhamos tertúlias de café e convívios; com os mestres trocávamos conhecimentos, processos e técnicas.

Retrato de Graziela Correia – Porto - pág. 30

Retrato de Graziela Correia – Porto

Casei em 1967 e ainda vivi em Lisboa até ao fim do ano de 1969 na Rua Alexandre Braga, junto ao Jardim Constantino. O meu filho Alexandre tinha acabado de nascer e, em 1970, quando ele tinha um ano, mudámo-nos para o Porto, onde fixámos residência / 31 / em casa dos meus sogros ao Carvalhido, na Rua 9 de Abril, 179. Foi mais uma mudança na minha vida que ditou outras obrigações familiares e profissionais. Nesta casa, onde vivi, arranjei um espaço para pintar e, nos meus tempos livres, fui fazendo desenhos e pinturas diversas que me mantinham numa certa regularidade artística, podendo participar em algumas exposições.

Esta minha mudança de percurso teve a ver com a possibilidade de poder trabalhar numa litografia do Porto, a Empresa Poligráfica de Armando Ribeiro onde dirigi a parte gráfica. Vivi entre as máquinas de impressão, as tintas, as aflições dos impressores, as urgências de entregas de trabalhos. Era toda uma organização completamente diferente das agências de Lisboa. Em simultâneo, trabalhava com outros colegas numa secção de desenho, concebendo e executando maquetas de cartazes, livros desdobráveis, expositores.

Foi um tempo de grande produtividade gráfica e com deslocações frequentes a clientes para consulta e aprovação de trabalhos. Aí permaneci até 1980. Entretanto, decidi sair da empresa porque comecei a ter a certeza que poderia trabalhar por conta própria e libertar-me daquela enorme responsabilidade.
         
 

“Operários”, óleo - pág. 31

 

“Mãe e filho carregando lenha”, desenho a lápis - pág. 31

 
  “Operários”, óleo   “Mãe e filho carregando lenha”, desenho a lápis  

/ 32 / As exposições de pintura colectivas e individuais iam-se processando e a minha valorização na expressão plástica ia-se cimentando. As relações profissionais eram cada vez melhores e o meu campo de manobra foi-se expandindo.

O Rui Alberto, o António Rei e eu com o meu filho ao colo - pág. 32
O Rui Alberto, o António Rei e eu com o meu filho ao colo

O Grupo Colectivo de Artes Plásticas do Porto foi formado na década de 70. Nasceu da paixão de artistas – o Rui Alberto, o António Rei e eu – quando trabalhávamos nessa litografia do Porto. Depois do trabalho, fazíamos encontros em minha casa no  meu atelier e começámos a produzir obras para exposições.
 

Tínhamos um grande entusiasmo em experimentar novas técnicas trocar pontos de vista e fazermos leituras. Realizámos muitas exposições pelo norte e centro do país. Fomos um grupo de intervenção cultural e tínhamos como objectivo fazer encontros  com as populações rurais, trabalhadores e cooperativas.

Lembro-me de fazer uma exposição na antiga fundição Paula Dias em Aveiro e outra em Macedo de Cavaleiros. Muitos destes eventos fazem parte do meu arquivo. Como éramos também artistas gráficos, fazíamos os nossos próprios cartazes com  técnica de Graffiti, que resultavam muito interessantes e dos quais guardo alguns originais.

Cartaz com intervenção manual graffiti - pág. 32

Cartaz com intervenção manual graffiti

/ 34 / 1973 foi o ano do amigo José Sacramento abrir ao público a sua galeria “GRADE”. Foi um acontecimento importante, uma lufada de ar fresco que veio dinamizar e entusiasmar os artistas da terra. Meses depois, vieram os anos difíceis e conturbados da revolução de Abril, “a fogueira” das politicas e a instabilidade das pessoas, empresas e instituições.
 
Estudo - caneta sobre papel (A4) - pág. 34
Estudo - caneta sobre papel (A4)

Sempre apoiámos a dinâmica da GRADE com colóquios, happenings, convívios com música ao vivo, exposições. Por lá passaram muitos e bons artistas. Participei em várias exposições individuais e colectivas e, com esta galeria, cresci bastante no meu  percurso artístico. Aveiro, através deste espaço cultural, tornou-se mais conhecida em todo o país. Ao José Sacramento vai o meu reconhecimento e estima pela sua excepcional actividade.

A partir dos anos 90, estruturei um Atelier de Ensino de expressão plástica, de ocupação de tempos livres, em V. N. de Gaia, para iniciação ao ensino de adultos, nas modalidades de pintura e desenho. Este espaço de arte é uma actividade à qual me dedico,  dando assim oportunidade às pessoas de poderem também usufruir de conhecimentos artísticos e de realização pessoal, de saudável convívio e de uma acrescida relação humana.

 
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