Acesso à hierarquia superior.

Hélder Bandarra, O Percurso do Artista, Aveiro, Novembro 2010, 180 páginas.

2. O artista em 1ª pessoa

SERVIÇO MILITAR

Antecipei o meu serviço militar e frequentei o curso de sargentos milicianos na Escola Prática de Cavalaria em Santarém. Era de meu interesse cumprir o serviço militar para mais facilmente poder fazer face ao mercado de trabalho e iniciar a vida profissional. Pairava-me na cabeça a ideia de partir para o Brasil.

Esq. Cavalaria 4 – Bali - Goa - Índia, 1961 - Pág. 15

Sem que contasse, fui para Goa, “Estado Português da Índia”, onde cumpri cerca de dois anos de serviço. Nas horas livres, fiz alguns retratos de amigos e colegas, que achavam que para tal tinha jeito, o que me ajudou a passar o tempo. Foi em Pangim que comprei os meus primeiros óleos. Tive algumas encomendas para realizar a nível militar, como decoração de quartéis. Fiz um estudo de baixo-relevo para uma fachada de colégio e grandes quadros de Vice-Reis da Índia.

Esq. Cavalaria 4, Bali – Goa -Índia, 1961

Pela selva de Goa, percorri caminhos e picadas. Encontrei aldeias indígenas do interior. Convivi e troquei experiências com pessoas maravilhosas. Conheci a manga, o caju, a jaca e outros frutos maravilhosos; vi macacos, cobras e muitas espécies de aves; aprendi a comer o caril e o xacuti nos bares mais típicos de Goa, assim como a tomar chá com leite. Encontrei, em locais isolados, pequenos santuários hindus e budistas com toda a tradição de recolhimento. Observei, desenhei e pintei os nativos das aldeias. Foram dois anos de emancipação e reflexão cultural e de crescimento interior. / 16 /

Em Dezembro de 1961, quando da invasão de Goa pelas forças indianas, fui feito prisioneiro de guerra. Estive alguns meses numa condição extremamente precária, em dois campos de concentração de Navelim e Pondá. Conheci bem de perto os horrores da guerra, assistindo à morte de um amigo por rebentamento de mina anti-carro. O preconceito pátrio e uma política errada ultramarina conduziram as nossas forças militares a uma humilhação sem precedentes – uma retirada e rendição em condições desonrosas e desumanas.

1960 – Os meus primeiros trabalhos a óleo – Goa, Índia - pág. 16
1960 – Os meus primeiros trabalhos a óleo – Goa, Índia

Em Navelim, primeiro campo de concentração, e depois em Pondá, só tinha um cantil de água para beber durante todo o dia. A roupa era a mesma que trazia no corpo quando fui preso. Durante aproximadamente seis meses de encarceramento, dormi no chão em cima de dois assentos de jeep, sob um tecto escaldante de um parque aberto de viaturas militares. Estive com outros colegas numa formatura em frente de um pelotão de fuzilamento no campo de Pondá. Não seria oportuno contar aqui os porquês…
 
Nesta situação difícil, ainda era obrigado a trabalhos forçados no exterior com outros amigos, como desassorear pontes destruídas por explosões; muitos dias ficávamos no meio do rio passando pedra a pedra entre filas de colegas com água pela cintura. A alguns soldados ”simpáticos e inimigos” ainda fiz retratos a lápis; apesar de tudo, eles tinham para connosco respeito e até compreensão. Nesta situação tão difícil, consegui, por empréstimo, umas rupias; e pedi que me arranjassem tinta-da-china, papel e uma caneta. Com esse material fiz muitos desenhos sobre temas de guerra, o que me deu para ganhar algum dinheiro e poder encomendar bens alimentares de primeira necessidade, como arroz, batatas e óleo. Comer um bife às escondidas era um luxo. Tinha alguns amigos que me ajudavam a vender os desenhos.  
/ 17 /

Desenho a tinta da china - Campo de concentração, Ponda - Pág. 17
Desenho a tinta da china - Campo de concentração, Ponda

Não esqueço a amizade com o António Correia do Porto, que sempre me acompanhou nestas aventuras militares desde a primeira hora. Pela vida fora e ainda hoje continuamos amigos. Regressei a Portugal em meados de 1962, voando de Pangim para Carachi, no Paquistão, numa operação complicada de repatriamento organizada pelos governos de Portugal e da Índia. Embarquei no paquete Pátria com destino à metrópole.

 
Página anterior Página inicial Página seguinte