Acesso à hierarquia superior.

Hélder Bandarra, O Percurso do Artista, Aveiro, Novembro 2010, 180 páginas.

2. O artista em 1ª pessoa

INFÂNCIA
Minha mãe, Florinda Ferreira, e meu pai, José Bandarra. - Pág. 5

Nasci em Aveiro em 25 de Novembro de 1940 na Rua São Sebastião, n.º 83, onde fui assistido pela amiga de família e parteira Angélica Oliveira, senhora muito dedicada e de muitos méritos cívicos.

Minha mãe sempre me contava que tinha nascido à meia-noite, entre os dias 25 e 26, e com essa dúvida, acabou por me registar a 25 de Novembro.

Minha mãe, Florinda Ferreira, e meu pai, José Bandarra.

Tinha um ano, quando fui viver para a Rua da Fábrica, mesmo no centro da cidade, junto às antigas pontes. No quintal da minha, casa havia uma magnifica e bela roseira trepadeira portuguesa, duas ameixoeiras brancas, cujo sabor ainda recordo com saudade das tardes passadas empoleirado nos seus ramos comendo os seus frutos. Tinha um pequeno pátio de terra onde eu brincava e jogava à bola. Sendo o mais novo dos quatro irmãos era mais acarinhado pelos meus pais, embora, naturalmente, menos compreendido pelos meus irmãos que me “traquinavam”.

Fui o quarto e último filho a nascer, quando deflagrou a 2.ª guerra Mundial. Meu pai tinha uma oficina de carpintaria em frente ao edifício da Capitania, onde hoje existe o Centro Comercial Fórum.

Recordo-me de meus pais me contarem sobre os dias conturbados dos anos 40, do racionamento, das carências sociais e da falta de trabalho. Lembro-me vagamente do armistício.

Aos sete anos de idade – 1947 - Pág. 5

Aos sete anos de idade – 1947

/ 6 / A minha infância sempre foi ligada à ria, aos canais e às marinhas de sal de Aveiro. Quem me quisesse ver feliz era ter água por perto. Sentir o labor dos nossos marnotos, a safra e o amanhar dos tabuleiros de sal; ainda hoje gosto de presenciar essas actividades. A entrega, a luta contra os elementos, o sol, a água e ventos ajudaram a temperar a minha personalidade.

  Desenhos de 1959 - Pág. 6   Desenhos de 1959 - Pág. 6  
  Desenhos de 1959  

Gostava de ver os caranguejos na maré baixa e atirar pedras às tainhas na maré cheia. Pequenas bateiras de pesca, todo aquele cenário mágico dos canais com salgueiros e tramagueiras caídas para a água, brancas gaivotas garças e maçaricos de bico comprido deslumbravam-me. Aquele cheiro às flores das dunas e das árvores rasteiras entre a Barra e a Costa Nova inebriava-me.

"Barcos na Ria" – Óleo sobre tela, Aveiro - Pág. 6

/ 7 / Tenho de memória todos os passos do pescador de pequeno barco. Sinto-me capaz de realizar desenhos ou pinturas de todas as pessoas que labutam nesse modo de vida. As minhas recordações de menino ainda hoje existem. Essa fase plástica de pescadores e homens da ria já passou, mas deixei muitos trabalhos realizados com esses temas. Toda a minha viagem artística durante cinquenta anos foi feita de aprendizagens, realizações temáticas que me levaram sempre ao limite da satisfação e do saber.

Barcos na Ria - Pág. 7

Nunca abandonei um campo de pesquisa sem ter esgotado todas as suas componentes estéticas, sempre tentei ultrapassar os desafios que me surgiam. Bem me lembro do mestre Augusto Gomes, que não cheguei a conhecer mas não deixei de receber a sua influência, que me inspirou e criou em mim naquele tempo uma vontade de desenvolver a temática do mar e o seu desígnio trágico.

Sempre me sensibilizou o trabalho do pescador humilde e abnegado que, para sustentar a família, era capaz dos maiores sacrifícios. De noite ou de dia, com frio, chuva ou sol, procurava encontrar esse sustento. A pequena embarcação, as redes e outros utensílios de pesca fizeram despertar em mim o desejo plástico de dominar pelo desenho ou pintura toda essa magia do homem do mar, nunca deixando de me comover ao executar esses trabalhos.

/ 8 / Quando escrevo ou recordo a minha mãe, não existe palavra ou pensamento capaz de descrever o sentimento de gratidão e amor que tenho para com ela. É algo que me transcende e a caneta não consegue descrever. Fui sempre o seu menino que me agrada recordar. A saudade é profunda quando sentimos a falta de alguém que sempre nos protegeu e amou. Tinha uma grande espiritualidade e uma muito fácil relação humana. Toda a sua vida foi de sacrifício, altruísmo e abnegação à família.

Com minha mãe e meu irmão, José Carlos, em 1950 no Buçaco. - Pág. 8

Com minha mãe e meu irmão, José Carlos, em 1950 no Buçaco.

Com os meus irmãos dei os primeiros passos para o inicio da minha tendência artística, visual e plástica. Comecei a rabiscar coisas tentando imitar o que os via fazer; para mim foram sempre um abraço amigo em todas as horas, um registo que a mente gravou e que nem o tempo vai apagar; com eles desenvolvi a curiosidade, o saber e a magia das cores, aprendi a manusear os materiais de desenho para encontrar soluções. Cada um com o seu jeito muito pessoal, com outro ver e sentir das coisas, sempre me aconselhavam ou ajudavam a fazer melhor, tudo aquilo que eu ia fazendo. Eram excelentes artistas dos quais me orgulho de ser irmão.

Faina na Ria - Pág. 9
Faina na Ria

O meu irmão mais velho, o Manuel, tinha um potencial artístico muito grande, de muito rigor; era um designer versátil e completo, interessado em todas as formas artísticas, místico, sensível e apaixonado pelas coisas de Aveiro. Com ele aprendi a utilizar a aguarela, a tinta da china, as colagens, a fazer máscaras de Carnaval com barro, gesso e papel de jornal. Vi-o fazer trabalhos em madeira de grande qualidade, fotografia e cinema. Mais tarde, emigrou Para o Brasil “à procura de melhores ventos”. Dedicou-se à propaganda e às artes gráficas, em S. Paulo, vindo a notabilizar-se nessa actividade.

Meu irmão, Jeremias, com sua filha Sara, em Caldelas – 1983, pastel - Pág. 10
Meu irmão, Jeremias, com sua filha Sara, em Caldelas – 1983, pastel

/ 9 / Com ele, e no Brasil, aprendi diversas técnicas de materiais sensíveis para a pintura e componentes fundamentais para a expressão plástica: diluentes, aglutinantes, aditivos, pigmentos, texturas e aplicações sólidas. Para o desenho, exercitei o carvão com novos ritmos criativos experimentando os sprays, as écolines e os vernizes. Descobri que o objectivo principal da aprendizagem plástica não é aprender a pintar quadros atractivos mas sim a formação da pessoa. A pintura é um acto criativo em que articulamos conhecimento e sensibilidade, integrando hábitos manuais e intelectuais, dentro de um “saber fazer”. Pela via das artes gráficas, aprendi a manusear e a entender muitos materiais de desenho e pintura, descobri a via do trabalho experimental explorando as potencialidades informativas dos materiais. Foi um registo que guardei durante anos, e que agora despertou para as obras abstractas a que me dedico neste momento, cumprindo um ciclo diferente no meu percurso artístico.

/ 10 / O meu irmão José Carlos era muito crítico, mas sempre me apoiou. Ele, também um óptimo artista com um enorme potencial, desenvolveu a sua profissão na carpintaria do nosso pai, fazendo com as madeiras óptimos trabalhos.

O meu irmão Jeremias foi sempre um porto de abrigo, um conselheiro de todas as horas a quem muito devo; ele também um artista único nos dias de hoje. Criativo por excelência e dotado de um saber artístico raro, teve e tem, ao longo da sua vida, uma intransigente postura de pessoa justa, consensual e altruísta ao longo da sua vida. A ele devo muitas realizações culturais em que tenho participado. Não por ser meu irmão, mas tenho por ele o maior apreço e estima, porque o considero um grande artista da minha geração.

Moliceiros com Igreja da Misericórdia, Aveiro – 1963, lápis - Pág. 11

Moliceiros com Igreja da Misericórdia, Aveiro – 1963, lápis

/ 12 / Frequentei a escola primária da Glória e a escola Comercial de Aveiro. Fui sempre um aluno destacado nas disciplinas de desenho e trabalhos manuais. Ainda hoje evoco com respeito as memórias e o contributo que tiveram na minha actual vida artística os meus professores Júlio Sobreiro e Porfírio de Abreu.

Cada pessoa, normalmente, traz do berço certos talentos e potenciais, mas essas habilidades naturais devem ser desenvolvidas ou perder-se-ão. Compete aos professores dar aos seus alunos a resposta e as soluções para os problemas que os artistas enfrentaram no início das sua carreiras.

Os quatro irmãos - da esquerda para a direita: Hélder, Manuel, Jeremias e José Carlos. - Pág. 12.
Os quatro irmãos - da esquerda para a direita: Hélder, Manuel, Jeremias e José Carlos.

O sol, água e o sal e as sardas na cara eram ingredientes marcantes da criança que eu era. “Depois era a Feira de Março”, feira anual popular de grande diversão que já existe há séculos na cidade de Aveiro. Era um mês de sonhos, porque lá encontrava as pinturas mais bizarras, desde fadas a monstros horrendos, numa dinâmica de carrosséis, circos, equilibristas, jogos de rua, com as cores fauves que ainda hoje me seduzem. Sentia o povo artesão na sua plenitude criadora, humilde e sofredora. Famílias pobres que ganhavam, com sacrifícios, o sustento para as suas gentes.

Passava horas a ver os artistas a pintar os carrosséis. O cheiro dos barros, dos apitos, das cornetas, das comidas dentro das barracas e das farturas seduziam-me. O poço da morte com os artistas Fred e Betty em cima duma moto, em grande velocidade nos rolamentos, com a bandeira portuguesa nas mãos, fazendo acrobacias, deslumbrava-me.

Era criança e tudo isso era um espanto para mim; até hoje registo e conservo na memória esses fazedores de sonhos.

/ 13 / O meu pai arranjava-me revistas americanas, que comprava ao peso num alfarrabista, que eram ricamente ilustradas por mestres famosos do desenho como Rokwell, Fawsset, Connor Doyle. Cito, entre outras, as revistas Saturday Evening Post, a Colliers e Ladies. Tentava fazer igual copiando; exercitava e visualizava técnicas. As horas passavam e eu, agarrado aos meus exercícios, sentia o prazer de ter lápis, papel e borracha para poder desenhar. Testemunho com um abraço de amizade e lembrança o António Caetano, à data funcionário da antiga Livraria Vieira da Cunha que, nos anos 50, era em Aveiro uma espécie de El Corte Inglês. Era ali que os artistas encontravam alguns materiais de arte. Como criança, olhava para tudo aquilo enfeitiçado pela magia dos lápis de cor, dos livros, papéis e aguarelas. Algumas vezes, quando lá ia comprar um lápis, o António dava-me outro, uma folha ou uma borracha e era sempre um natal quando isto acontecia.

Andava eu pelos meus tenros anos e a carpintaria do meu pai foi outra escola de saber e aprendizagem. O meu pai vivia a sua actividade numa labuta constante entre máquinas, madeiras e empregados. Via-o fazer moldes em papel, para cortar tábuas, como se fosse um alfaiate a tirar medidas para um fato; todas aquelas ferramentas, colas, lixas despertavam em mim o querer fazer; adorava andar por ali envolvido naquelas obras, sentindo o cheiro das madeiras. Também fiz alguns objectos como espadas, punhais, carrinhos de mão com uma roda, pequenos barcos, arcos e flechas. Por vezes acontecia magoar-me nas mãos.

Nos meus doze anos de idade – 1952 - Pág. 13
Nos meus doze anos de idade – 1952

O meu pai levava-me muitas vezes à cidade do Porto, onde ele ia escolher, comprar e mandar serrar madeiras para as obras que tinha de executar na sua oficina. Era uma serração de madeiras que existia em Campanhã. Para mim, ver as gruas pegando nos pesados toros colocando-os no charriot para serem cortados em tábuas era um deslumbramento. O cheiro do serrim, a força da máquina, tudo era fantástico; ainda hoje, 

/ 14 / passados todos estes anos, uso o serrim nas minhas texturas plásticas e sinto-me feliz pelo meu pai ter sido meu amigo e compreensivo, ajudando-me a crescer em todos os momentos da minha vida. Reconheço que teve uma vida de muito trabalho e que tudo fez para nos educar e manter a estabilidade familiar.

"De volta a casa" - óleo - Pág. 14
"De volta a casa" - óleo.

Sempre tive bons amigos. É uma riqueza que possuímos, um património inestimável que fortalece a vida de todos nós. Falar em Gaspar Albino é contar em duas linhas uma amizade de muitos anos. Ainda me lembro desse jovem e talentoso artista que, nos finais dos anos 50, fez uma exposição individual com grande brilho, que me entusiasmou bastante. Ele incendiou muitos talentos adormecidos. Foi para mim um grande empurrão. Partilhei com ele muitas exposições e experiências e ainda hoje mantemos uma sólida amizade.

Em 1959 participei na minha primeira exposição colectiva aquando da comemoração dos 200 anos de elevação de Aveiro a cidade e os seus 1000 anos de história. Fiz um cartaz para essa comemoração, que esteve exposto em Aveiro com outros cartazes sujeitos a concurso. Foi o meu primeiro encontro com o público, ou seja, o meu baptismo de exposições.

 
Página anterior Página inicial Página seguinte