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Nasci em Aveiro em 25 de Novembro de 1940 na Rua São
Sebastião, n.º 83, onde fui assistido pela amiga de família e parteira
Angélica Oliveira, senhora muito dedicada e de muitos méritos cívicos.
Minha mãe sempre me contava que tinha nascido à meia-noite,
entre os dias 25 e 26, e com essa dúvida, acabou por me registar a 25 de
Novembro.
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Minha mãe, Florinda Ferreira, e meu pai, José Bandarra. |
Tinha um ano, quando fui viver para a Rua da Fábrica, mesmo
no centro da cidade, junto às antigas pontes. No quintal da minha, casa
havia uma magnifica e bela roseira trepadeira portuguesa, duas
ameixoeiras brancas, cujo sabor ainda recordo com saudade das tardes
passadas empoleirado nos seus ramos comendo os seus frutos. Tinha um
pequeno pátio de terra onde eu brincava e jogava à bola. Sendo o mais
novo dos quatro irmãos era mais acarinhado pelos meus pais, embora,
naturalmente, menos compreendido pelos meus irmãos que me “traquinavam”.
Fui o quarto e último filho a nascer, quando deflagrou a 2.ª
guerra Mundial. Meu pai tinha uma oficina de carpintaria em frente ao
edifício da Capitania, onde hoje existe o Centro Comercial Fórum.
Recordo-me de meus pais me contarem sobre os dias conturbados
dos anos 40, do racionamento, das carências sociais e da falta de
trabalho. Lembro-me vagamente do armistício.
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Aos
sete anos de idade – 1947 |
/ 6 / A
minha infância sempre foi ligada à ria, aos canais e às marinhas de sal
de Aveiro. Quem me quisesse ver feliz era ter água por perto. Sentir o
labor dos nossos marnotos, a safra e o amanhar dos tabuleiros de sal;
ainda hoje gosto de presenciar essas actividades.
A entrega, a luta contra os elementos, o sol, a água e ventos ajudaram a
temperar a minha personalidade.
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Desenhos de 1959 |
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Gostava de ver os caranguejos na maré baixa e atirar pedras
às tainhas na maré cheia. Pequenas bateiras de pesca, todo aquele
cenário mágico dos canais com salgueiros e tramagueiras caídas para a
água, brancas gaivotas garças e maçaricos de bico comprido
deslumbravam-me. Aquele cheiro às flores das dunas e das árvores
rasteiras entre a Barra e a Costa Nova inebriava-me.
/ 7 / Tenho
de memória todos os passos do pescador de pequeno barco. Sinto-me capaz
de realizar desenhos ou pinturas de todas as pessoas que labutam nesse
modo de vida. As minhas recordações de menino ainda hoje existem. Essa
fase plástica de pescadores e homens da ria já passou, mas deixei muitos
trabalhos realizados com esses temas. Toda a minha viagem artística
durante cinquenta anos foi feita de aprendizagens, realizações temáticas
que me levaram sempre ao limite da satisfação e do saber.
Nunca abandonei um campo de pesquisa sem ter esgotado todas
as suas componentes estéticas, sempre tentei ultrapassar os desafios que
me surgiam. Bem me lembro do mestre Augusto Gomes, que não cheguei a
conhecer mas não deixei de receber a sua influência, que me inspirou e
criou em mim naquele tempo uma vontade de desenvolver a temática do mar
e o seu desígnio trágico.
Sempre me sensibilizou o trabalho do pescador humilde e
abnegado que, para sustentar a família, era capaz dos maiores sacrifícios.
De noite ou de dia, com frio, chuva ou sol, procurava encontrar esse
sustento. A pequena embarcação, as redes e outros utensílios de pesca
fizeram despertar em mim o desejo plástico de dominar pelo desenho ou
pintura toda essa magia do homem do mar, nunca deixando de me comover ao
executar esses trabalhos.
/ 8 / Quando
escrevo ou recordo a minha mãe, não existe palavra ou pensamento capaz
de descrever o sentimento de gratidão e amor que tenho para com ela. É
algo que me transcende e a caneta não consegue descrever. Fui sempre o
seu menino que me agrada recordar. A saudade é profunda quando sentimos
a falta de alguém que sempre nos protegeu e amou. Tinha uma grande
espiritualidade e uma muito fácil relação humana. Toda a sua vida foi de
sacrifício, altruísmo e abnegação à família. |
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Com
minha mãe e meu irmão, José Carlos, em 1950 no Buçaco. |
Com os meus irmãos dei os primeiros passos para o inicio da
minha tendência artística, visual e plástica. Comecei a rabiscar coisas
tentando imitar o que os via fazer; para mim foram sempre um abraço
amigo em todas as horas, um registo que a mente gravou e que nem o tempo
vai apagar; com eles desenvolvi a curiosidade, o saber e a magia das
cores, aprendi a manusear os materiais de desenho para encontrar
soluções. Cada um com o seu jeito muito pessoal, com outro ver e sentir
das coisas, sempre me aconselhavam ou ajudavam a fazer melhor, tudo
aquilo que eu ia fazendo. Eram excelentes artistas dos quais me orgulho
de ser irmão.
Faina na Ria
O meu irmão mais velho, o Manuel, tinha um potencial artístico
muito grande, de muito rigor; era um designer versátil e completo,
interessado em todas as formas artísticas, místico, sensível e
apaixonado pelas coisas de Aveiro. Com ele aprendi a utilizar a
aguarela, a tinta da china, as colagens, a fazer máscaras de Carnaval
com barro, gesso e papel de jornal. Vi-o fazer trabalhos em madeira de
grande qualidade, fotografia e cinema. Mais tarde, emigrou Para o Brasil
“à procura de melhores ventos”. Dedicou-se à propaganda e às artes
gráficas, em S. Paulo, vindo a notabilizar-se nessa actividade.
Meu irmão, Jeremias, com sua
filha Sara, em Caldelas – 1983, pastel
/ 9 / Com
ele, e no Brasil, aprendi diversas técnicas de materiais sensíveis para
a pintura e componentes fundamentais para a expressão plástica:
diluentes, aglutinantes, aditivos, pigmentos, texturas e aplicações
sólidas. Para o desenho, exercitei o carvão com novos ritmos criativos
experimentando os sprays, as
écolines
e os vernizes. Descobri que o objectivo principal da aprendizagem
plástica não é aprender a pintar quadros atractivos mas sim a formação
da pessoa. A pintura é um acto criativo em que articulamos conhecimento
e sensibilidade, integrando hábitos manuais e intelectuais, dentro de um
“saber fazer”. Pela via das artes gráficas, aprendi a manusear e a
entender muitos materiais de desenho e pintura, descobri a via do
trabalho experimental explorando as potencialidades informativas dos
materiais. Foi um registo que guardei durante anos, e que agora
despertou para as obras abstractas a que me dedico neste momento,
cumprindo um ciclo diferente no meu percurso artístico.
/ 10 / O meu
irmão José Carlos era muito crítico, mas sempre me apoiou. Ele, também
um óptimo artista com um enorme potencial, desenvolveu a sua profissão
na carpintaria do nosso pai, fazendo com as madeiras óptimos trabalhos.
O meu irmão Jeremias foi sempre um porto de abrigo, um
conselheiro de todas as horas a quem muito devo; ele também um artista
único nos dias de hoje. Criativo por excelência e dotado de um saber
artístico raro, teve e tem, ao longo da sua vida, uma intransigente
postura de pessoa justa, consensual e altruísta ao longo da sua vida. A
ele devo muitas realizações culturais em que tenho participado. Não por
ser meu irmão, mas tenho por ele o maior apreço e estima, porque o
considero um grande artista da minha geração.
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Moliceiros com Igreja da Misericórdia, Aveiro – 1963, lápis |
/ 12 /
Frequentei a escola primária da Glória e a escola Comercial de Aveiro.
Fui sempre um aluno destacado nas disciplinas de desenho e trabalhos
manuais. Ainda hoje evoco com respeito as memórias e o contributo que
tiveram na minha actual vida artística os meus professores Júlio
Sobreiro e Porfírio de Abreu.
Cada pessoa, normalmente, traz do berço certos talentos e
potenciais, mas essas habilidades naturais devem ser desenvolvidas ou
perder-se-ão. Compete aos professores dar aos seus alunos a resposta e
as soluções para os problemas que os artistas enfrentaram no início das
sua carreiras.
Os
quatro irmãos - da esquerda para a direita: Hélder, Manuel, Jeremias e
José Carlos.
O sol, água e o sal e as sardas na cara eram ingredientes
marcantes da criança que eu era. “Depois era a Feira de Março”, feira
anual popular de grande diversão que já existe há séculos na cidade de
Aveiro. Era um mês de sonhos, porque lá encontrava as pinturas mais
bizarras, desde fadas a monstros horrendos, numa dinâmica de carrosséis,
circos, equilibristas, jogos de rua, com as cores
fauves
que ainda hoje me seduzem. Sentia o povo artesão na sua plenitude
criadora, humilde e sofredora. Famílias pobres que ganhavam, com
sacrifícios, o sustento para as suas gentes.
Passava horas a ver os artistas a pintar os carrosséis. O
cheiro dos barros, dos apitos, das cornetas, das comidas dentro das
barracas e das farturas seduziam-me. O poço da morte com os artistas
Fred e Betty em cima duma moto, em grande velocidade nos rolamentos, com
a bandeira portuguesa nas mãos, fazendo acrobacias, deslumbrava-me.
Era criança e tudo isso era um espanto para mim; até hoje
registo e conservo na memória esses fazedores de sonhos.
/ 13 /
O meu pai arranjava-me revistas americanas, que comprava ao peso num
alfarrabista, que eram ricamente ilustradas por mestres famosos do
desenho como Rokwell, Fawsset, Connor Doyle.
Cito, entre
outras, as revistas Saturday Evening Post, a Colliers e Ladies.
Tentava fazer igual
copiando; exercitava e visualizava técnicas. As horas passavam e eu,
agarrado aos meus exercícios, sentia o prazer de ter lápis, papel e
borracha para poder desenhar. Testemunho com um abraço de amizade e
lembrança o António Caetano, à data funcionário da antiga Livraria
Vieira da Cunha que, nos anos 50, era em Aveiro uma espécie de El Corte
Inglês. Era ali que os artistas encontravam alguns materiais de arte.
Como criança, olhava para tudo aquilo enfeitiçado pela magia dos lápis
de cor, dos livros, papéis e aguarelas. Algumas vezes, quando lá ia
comprar um lápis, o António dava-me outro, uma folha ou uma borracha e
era sempre um natal quando isto acontecia.
Andava eu pelos meus tenros anos e a carpintaria do meu pai
foi outra escola de saber e aprendizagem. O meu pai vivia a sua
actividade numa labuta constante entre máquinas, madeiras e empregados.
Via-o fazer moldes em papel, para cortar tábuas, como se fosse um
alfaiate a tirar medidas para um fato; todas aquelas ferramentas, colas,
lixas despertavam em mim o querer fazer; adorava andar por ali envolvido
naquelas obras, sentindo o cheiro das madeiras. Também fiz alguns
objectos como espadas, punhais, carrinhos de mão com uma roda, pequenos
barcos, arcos e flechas. Por vezes acontecia magoar-me nas mãos. |
Nos meus doze anos de idade – 1952 |
O meu pai levava-me muitas vezes à cidade do Porto, onde ele
ia escolher, comprar e mandar serrar madeiras para as obras que tinha de
executar na sua oficina. Era uma serração de madeiras que existia em Campanhã. Para mim, ver as gruas pegando nos
pesados toros colocando-os no
charriot
para serem cortados em tábuas era um deslumbramento. O cheiro do serrim,
a força da máquina, tudo era fantástico; ainda hoje,
/ 14 /
passados todos estes anos, uso o serrim nas minhas texturas plásticas e
sinto-me feliz pelo meu pai ter sido meu amigo e compreensivo,
ajudando-me a crescer em todos os momentos da minha vida. Reconheço que
teve uma vida de muito trabalho e que tudo fez para nos educar e manter
a estabilidade familiar.
"De volta a casa" - óleo.
Sempre tive bons amigos. É uma riqueza que possuímos, um
património inestimável que fortalece a vida de todos nós. Falar em
Gaspar Albino é contar em duas linhas uma amizade de muitos anos. Ainda
me lembro desse jovem e talentoso artista que, nos finais dos anos 50,
fez uma exposição individual com grande brilho, que me entusiasmou
bastante. Ele incendiou muitos talentos adormecidos. Foi para mim um
grande empurrão. Partilhei com ele muitas exposições e experiências e
ainda hoje mantemos uma sólida amizade.
Em 1959 participei na minha primeira exposição colectiva
aquando da comemoração dos 200 anos de elevação de Aveiro a cidade e os
seus 1000 anos de história. Fiz um cartaz para essa comemoração, que
esteve exposto em Aveiro com outros cartazes sujeitos a
concurso. Foi o meu primeiro encontro com o público, ou seja, o meu
baptismo de exposições. |