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Fabrico Tradicional do Azeite em Portugal (Estudo Linguístico-Etnográfico), Aveiro, 2014, XIV+504 pp. ©

 

VI

PRENSAS DE AZEITE

 

a) A vara peninsular:

Mostrámos já a importância da prensa de vara, apresentámos os nomes por que é conhecida, procurámos estabelecer a sua definição e distinguimos dois tipos fundamentais; iremos agora ocupar-nos do estudo minucioso da vara peninsular, incidindo essencialmente sobre o que encontrámos em Portugal; faremos, em seguida, uma breve apresentação da vara italiana, e procuraremos ver as vantagens e desvantagens de um e outro tipo; simultaneamente, veremos também as fases que podemos distinguir no funcionamento de cada um deles.

Pela expressão vara peninsular pretendemos indicar um tipo de vara idêntico nos dois países vizinhos da Península Ibérica, por oposição à vara italiana, que apresenta sensíveis diferenças em relação a esta, como teremos oportunidade de verificar.

Analisemos em primeiro lugar a vara propriamente dita, cuja função é a de uma alavanca, para depois passarmos ao sistema de accionamento.

Os comprimentos da vara são muito variáveis de lagar para lagar. Ao passo que em Espanha apresenta 10 e 14 metros de comprimento, respectivamente em Poyales e Mombeltrán – as únicas de que temos conhecimento através dos artigos consultados –, sendo a da segunda povoação formada por seis troncos unidos entre si por meio de cintas de aço(10), em Portugal as varas mais compridas que encontrámos oscilavam entre 8 e 9 metros, sendo formadas por uma peça única, que não é mais do que um enorme tronco de árvore, a que não faltam sequer as raízes mais grossas para lhe aumentarem o peso.

Segundo Ladislau Piçarra(11), o comprimento total das varas, no concelho de Serpa, oscila entre 7 e 10 metros. Na Beira Alta, mais rigorosamente em Pinhel, as varas do lagar visitado por Maria Margarida Furtado Martins(12) mediam aproximadamente entre 8 a 9 metros.

O comprimento mínimo da vara por nós registado foi de cerca de 6 metros, no lagar do Pedregal, P. 51, no distrito do Porto. Desta vara apresentamos, aproximadamente a meio deste capítulo, a figura 83.

Dividida em três zonas distintas, a que correspondem os três pontos principais de uma alavanca do tipo já mencionado(13), a vara é quase sempre encaixada na parede. Esta, construída com enormes blocos de pedra e de considerável largura, para melhor suportar as enormes pressões exercidas verticalmente de baixo para cima pelo feixe, apresenta uma cavidade de secção aproximadamente quadrada, bem delimitada por dois maciços blocos de pedra. As dimensões destes blocos variam muito de lagar para lagar. Colocados vertical e paralelamente, sobressaem do plano da parede alguns centímetros.

Em Espanha, ao contrário do que se usa entre nós, a vara está segura entre dois grossos barrotes de madeira chamados madrinas, sobre os quais assenta uma carga de pedra unida com a parede da casa, para maior segurança, e cuja função é a de servir de contrapeso durante o funcionamento da prensa, que, em vez de ser atravessada por um eixo, assenta sobre uns travessões que ligam as madrinas e a que dão o nome de bramas(14).

Apesar destas pequenas diferenças, a vara espanhola apresenta um sistema de funcionamento idêntico  à existente em Portugal,  o que nos permite inseri-la dentro da mesma família, a que já nos referimos.

Deixemos o lagar espanhol, e voltemos à análise do lagar português. Dissemos que a vara portuguesa é quase sempre encaixada na parede, entre dois blocos de pedra, que delimitam a abertura onde ela está inserida. Colocados vertical e paralelamente, apresentam uma configuração muito variada de região para região, como variáveis são também os nomes pelos quais o povo os conhece.

No distrito de Coimbra, chamam a esta pedras agulheiras (P. 297) ou agulheiro (P. 261, 286), termos provenientes de agulha, que também registámos em Braga, P. 28, 29, 31, 32, e Coimbra, P. 256, 261, 286.

Figura 77: Sacos das varas, entre as quais ela encaixa na parede (Santo António, freg. S. Pedro, conc. Celorico da Beira, dist. Guarda).

Os dicionários de Eduardo de Faria(15) e de António de Morais Silva(16) registam o vocábulo agulheiro, que definem respectivamente da seguinte maneira:

«(...) Buraco que se faz na parede para se meterem os paus que sustentam os andaimes; qualquer buraco nas paredes das casas, portas, etc. (...)».

«(...) Buraco na parede, para introduzir a ponta do barrote, que sustenta o bailéu ou andaime (...)».

Como se vê, os sentidos apresentados por estes dois dicionário, embora diferentes, têm certa afinidade com o que nós registámos relativamente aos lagares.

A agulha é uma grossa haste de secção circular, de madeira ou de ferro, que, enfiada nos buracos das agulheiras (vejam-se as figuras 77 e 78), segura a vara, servindo-lhe de eixo. O já citado dicionário de Eduardo de Faria, pág. 205, 1ª coluna, define-a da seguinte maneira:

«(agric.) pau da grossura de um braço, introduzido por duas pedras, e com o qual se sustenta a vara».

Ao lado  de  agulha  e  com  o  mesmo  sentido,  surge-nos ainda o vocábulo agulhão, registado no distrito de Coimbra, P. 258.

Da mesma família destas palavras são os vocábulos agulhar e agulhadouro/agulhadeiro, apresentados pelo dicionário de Morais(17). O primeiro indica-nos o acto de «meter a agulha do lagar nos agulhadouros»; o segundo designa o «furo no coice da vara do lagar, e nas pedras chamadas orcelas, madres ou virgens, e pelo qual passa a agulha da vara».

Para designar as agulheiras ou agulheiro, registámos ainda os vocábulos gateiras (Braga, P. 32), rabadão (P. 56) e sacos (Guarda, P. 211).

O já citado dicionário de Almeida Costa e Sampaio e Melo apresenta rabadão com o sentido de «rabo da vara do lagar».

Além destes, encontramos ainda o vocábulo queixo, indicado por Maria Margarida Furtado Martins(18).

Vimos que o dicionário de Morais, a propósito de agulhadouro, nos apresenta os termos orcelas, madres e virgens com o mesmo sentido. A definição que nos dá de orcela, pág. 532, 2ª col.. é a seguinte:

«s. f. Provinc. Cada uma das peças paralelas que sustentam uma haste de ferro ou de madeira, que serve de eixo à vara do lagar no seu movimento ascendente ou descendente».

 

 
  Figura 78: Agulheiras das varas. À direita, a agulha de ferro. (Vilarinho, P. 258, freg. Eiras, conc. e dist. Coimbra).  

Em alguns lagares, as agulheiras ocupam o mesmo plano da parede. Distinguem-se, no entanto, nitidamente, porque a parede apresenta nesta zona uma reentrância, de maneira a permitir que a agulha possa ser enfiada nos buracos das pedras. Não é raro encontrarmos lagares que aproveitam essa cavidade para guardar objectos vários. Colocam-lhe uma tábua  a  servir de porta,  e  transformam-na em armário.

No caso do lagar de Vila Viçosa, P. 116, no distrito de Aveiro, a vara é encaixada entre duas pedras verticais ao mesmo nível da parede, tendo horizontalmente, por cima e por debaixo, duas grossas e largas lajes de pedra, das quais a superior é bastante mais comprida, o que lhe confere maior resistência para suportar a pressão exercida pela potente alavanca.

 

 
  Figura 79: Pormenor das pedras que seguram a vara do lagar (Ponte do Feixe, P. 34, freg. Infesta, conc. Celorico de Basto, dist. Braga).  

No lagar da Ponte do Feixe, P. 34, distrito de Braga, há anos parado devido a um incêndio, seguido por uma cheia, que o deixaram em péssimo estado, as varas, ao contrário da grande maioria das prensas deste tipo, ocupam aproximadamente o centro do edifício e estão fixas entre dois blocos verticais paralelos de granito, tal como nos é mostrado pela figura 79. Sobre os dois blocos assenta um terceiro em posição horizontal, que suporta, por sua vez, uma pesada parede do mesmo material, que divide o edifício em duas metades.

A partir do meio da vara até à parede onde ela encaixa fica a zona de aperto. Em todos os lagares está nitidamente delimitada, pois fica compreendida entre as virgens e as agulheiras. Sobre a plataforma de cimento e por debaixo do feixe existe uma zona circular, onde são empilhadas as seiras. Dos nomes dados a esta zona nos ocuparemos, quando, no capítulo seguinte, tratarmos da descrição de como e onde é feito o enseiramento.

As virgens são duas colunas verticais de madeira, colocadas paralelamente, uma de cada lado da vara, para impedir que esta decline para algum lado. Fixas na parte superior às chamadas «linhas do bigamento do lagar» (distrito de Coimbra, P. 297), separam normalmente as tarefas da zona de enseiramento.

No distrito de Coimbra, numa grande maioria dos lagares, as virgens apresentam, na parte inferior, uma espécie de taipal ou tapume de madeira, que protege as tarefas do rebentamento das seiras, evitando que esguichos e bocados de massa caiam dentro delas e estraguem o azeite (vejam-se as  figuras 74 e 80).

 

 
  Figura 80: Elementos constituintes da prensa de vara. Para identificação das peças numeradas, consultar a nota 19.  

No lagar do Pedregal, P. 51, no distrito do Porto, as virgens apresentam, a cerca de metade da sua altura, uma haste de ferro, que as atravessa de lado a lado, visível na fotografia da figura 83 . A função deste ferro é, fundamentalmente, a de servir de apoio à vara, quando em descanso, evitando assim que se exerça pressão sobre o fuso, o que poderia danificá-lo. Este mesmo acessório, que no caso do lagar da figura 83 serve também de suporte às candeias de azeite, encontra-se muito difundido em lagares do país vizinho, sendo conhecido por fiel. As virgens, a que chamam, em Espanha, madrinas del fiel, apresentam, como no caso do lagar do Pedregal, uma dupla finalidade: servir de amparo à vara e servir-lhe de descanso, por meio do chamado fiel, que é introduzido na ranhura feita nas virgens, a que dão o nome de roto del fiel(20).

Na maioria dos lagares portugueses, a função do fiel, que não existe, é exercida por barrotes de madeira, que os mestres têm o cuidado de colocar sob as varas, assim que chegam ao fim da lagaragem.

Além dos vocábulos birgem/virgem, registados nos distritos de Braga, P. 32, Coimbra, P. 256, 297, 302, e Porto, P. 51, e birges/virges, registados em Aveiro, P. 116, 117, 116, Braga, P. 29, Guarda, P. 211, Porto, P. 54a, as duas colunas laterais de madeira são também conhecidas por alçapremas, Bragança, P. 92, Coimbra, P.286, balaústes, Aveiro, P. 118, e colunas, Porto, P. 56.

O vocábulo virgem existe também em castelhano com sentido idêntico(21). O dicionário de Rafael Bluteau(22) regista este vocábulo com sentido afim, apenas com a diferença de que as duas vigas, segundo o Autor e ao contrário do que nós encontrámos, ficam fora do lagar:

«Virgens do lagar, são duas peças empinadas fora do lagar, que tolhem que a vara, ou feixe, decline para algum lado».

Na extremidade oposta ao fulcro ou zona onde a vara encaixa na parede fica situada a chamada cabeça da vara (Aveiro, P. 118; Coimbra, P. 256, 262, 297, 300; Leiria, P. 362) ou reigão da vara (Braga, P. 28). Corresponde esta parte à raiz da árvore, de que algumas varas conservam as partes mais grossas e cujos espaços são por vezes preenchidos com argamassa e cimento.

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(10) – A informação é-nos fornecida por ALBERT KLEMM, op. cit., pág. 137: «En Poyales la viga de prensar está constituída por un grueso tronco de árbol tallado, con una sección transversal de 65:56 cm; en Mombeltrán se han unido 6 troncos por médio de cintas de acero o cinchos para se formar la viga; esta tiene 14 m de largo y una sección transversal de 75 cm de ancho y 90 cm de altura.»

(11)ANTÓNIO LADISLAU PIÇARRA, O azeite no concelho de Serpa; seu fabrico tradicional, in: "Congresso de Leitaria, Olivicultura e Indústria do Azeite em 1905", Lisboa, (Real Associação Central da Agricultura Portuguesa), 1906, vol. II, pág. 629.

(12)MARIA MARGARIDA FURTADO MARTINS, A oliveira (Estudo linguístico), Dissertação de licenciatura em Filologia Românica (inédita), Coimbra, 1945, parte III, cap. I, pág. 73.

(13) – Na vara podemos considerar três zonas: o eixo ou fulcro da vara, a zona de aperto e a cabeça da vara. Para um conhecimento dos nomes dos diferentes componentes da vara, veja-se a figura 80, cuja legenda se apresenta na respectiva nota de rodapé.

(14) – Veja-se ALBERT KLEMM, op. cit., págs. 137-138.

(15) – EDUARDO DE FARIA, Novo dicionário da língua portuguesa, 2ª ed., Lisboa, 1850, pág. 205, 2ª col.

(16)ANTÓNIO DE MORAIS SILVA, Grande dicionário da língua portuguesa, 10ª ed., vol. I, pág. 116, 2ª col.

(17) – ANTÓNIO DE MORAIS SILVA, op. cit., vol. I, pág. 517, 2ª col. e pág. 518, 1ª col.

(18)MARIA MARGARIDA FURTADO MARTINS, op. cit., parte III, cap. I, pág. 73.

(19) – Veja-se a figura 80, cujos constituintes são os seguintes: 1-agulha da vara; 2-agulheira; 3-vara ou feixe; 4-pedra que assenta sobre as agulheiras e suporta a pressão da vara; 5-virgens; 6-concha; 7-torno para firmar a concha; 8-cabeça da vara; 9-fuso; 10-ouvido do fuso; 11-tranca de tocar o fuso; 12-ranhura da chave, chaveta ou chavetão; 13-peso, penedo ou pouso; 14-tarefas; 15-enseiramento; 16-malhais; 17-taipal ou tapume das virgens.

(20) – Informação colhida em A. KLEMM, op. cit., tomo VIII, pág. 138.

(21)Veja-se TOMÁS BUESA OLIVER, op. cit., tomo I, pág. 92.

(22)RAFAEL BLUTEAU, op. cit., tomo II, pág. 529, 1ª col.

 

 

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