«Pequeno ainda, cabendo na palma
da mão, brincava com as areias, rebolava-se nos seixos
brancos, aos pés da montanha sua mãe, triste e isolada,
roendo mágoas que a ninguém dizia... Nada maior que uma
seitoira, o Vouga ao nascer.
... Vem o dia e as cabras pisam-no,
sujam-no com as patas. Amuado foge a esconder-se nas lapas.
Depois distrai, e criança inquieta, pincha, resvala, perde-se
no giro em que anda, sem saber onde.
... Ribeirinho Vouga encostou-se às
pedras e com os olhos vivos espreitava a face morena da terra.
... Galgou precipícios, escorregou
sobre rochas a suar espuma. Nenhum obstáculo tolhia o seu
passo... Não o cansava a pressa da abalada. Maior distância
percorria e mais vigor cobrava. Dilatando o peito, endurecia
os pulsos, e a voz engrossava, reproduzia-se longe em ecos.
O que trouxe pelas encostas ranchos de pinheiros a espreitar.
Cautelosos, os primeiros chegados gesticulavam em conselho de
prudência aos vizinhos, para se afastarem do latagão, que
ninguém travaria na marcha.
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O rio, na sua aflição de
gigante torturado, explodiu em furores. Rachou serras ao
meio, descarnou penedos... Quando a paixão o acometia,
passava noite e dia a beber regatos, caudais, ribeiros bravos,
interminavelmente, alucinado, no impulso de afogar a imagem
que a distância engrandecia.
Assustados os montes, evitavam-no
como a doido furioso.
Foi então que na dianteira lhe
surgiu a planície imensa, carnuda, sensualmente deitada...
O Vouga... rasgou-lhe as entranhas,
escalavrou, dissecou, abrindo as carnes macias.
A Planície... bebia-o, sugava-lhe o
sangue, enfraquecia-o.
O Vouga mirrava, decrescia, vergando
o corpo sonolento, braços inertes, passos sem vigor, a pupila
embaciada.
Cansara-o a planície, vencera-o e
assim desdenhava:
- Campeão das serras, que é da tua força?
Cobriu-se de choupos e salgueiros
tenros e calmando-lhe a febre, acalentou-o a recomendar-lhe
sono tranquilo.
Mas o Vouga distinguiu perto a voz
do Mar a chamá-lo.
... Vagaroso, num passo de velho,
se chegou ao Grande Senhor mar que o recebeu afável e
depois de saber as mágoas que sofrera lhe prometeu levá-lo a
novas terras, a outros continentes, percorrer as montanhas,
dominar os píncaros, liberto do peso do corpo, transfigurado,
mais lindo do que nunca fora. Andaria pelo céu em coches de
ouro forrados de púrpura, tão alto como as águias» (SAMUEL MATA, Rio
Vouga, in -
Língua
de Prata).
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