BOLETIM CULTURAL E RECREATIVO - SECUNDÁRIA JOSÉ ESTÊVÃO - AVEIRO


 

Um poeta na voz doutro poeta

 


Em Lisboa com Cesário Verde

 

Nesta cidade, onde agora me sinto

mais estrangeiro do que os gatos persas;

Nesta Lisboa, onde mansos e lisos

os dias passam a ver as gaivotas,

e a cor dos jacarandás floridos

se mistura à do Tejo, em flor também,

só o Cesário vem ao meu encontro,

me faz companhia, quando de rua

em rua procuro um rumor distante

de passos ou aves, nem eu sei já bem.

Só ele ajusta a luz feliz dos seus

versos aos olhos ardidos que são

os meus agora; só ele traz a sombra

dum verão muito antigo, com corvetas

lentas ainda no rio, é a música,

o sumo do sol a escorrer da boca,

ó minha infância, meu jardim fechado,

ó meu poeta, talvez fosse contigo

que aprendi a pesar sílaba a sílaba

cada palavra, essas que tu levaste

quase sempre, como poucos mais,

à suprema perfeição da língua.

            Eugénio de Andrade

 

Na obra de Eugénio de Andrade figuram nomes da vida cultural portuguesa e estrangeira em diversos domínios. A secção intitulada "Homenagens e outros Epitáfios" assume o reconhecimento do valor de várias sensibilidades artísticas, de alguma forma renascidas poeticamente. Em certos textos, a recordação adquire o tom de um convívio que revitaliza uma herança estética.

"Em Lisboa com Cesário Verde" é a expressão de um encontro poético num quadro de memória do "poeta pintor". Todo o poema recria um ambiente de empatia com "O livro de Cesário Verde".

O espaço retratado é a cidade de Lisboa, tal como numa boa parte dos textos de Cesário Verde, e a sua relação com o sujeito poético é marcada pela agressiva distância de um ser inadaptado ao mundo urbano, palmilhado por um deambular solitário. A hostilidade da vida na capital é também a nota dominante da poesia de Cesário Verde relativamente ao espaço circundante, sempre aprisionador para um "camponês” desenraizado.

 

No poema de Eugénio de Andrade, os termos "gatos persas" e "jacarandás" sugerem claramente a ideia de trasladação e o mundo evocado é o da aventura expansionista no convívio com o exotismo de outras culturas. Vários poemas de Cesário Verde lembram este mesmo contexto, particularmente "O Sentimento dum Ocidental", com a referência às "crónicas navais e à figura de Camões, "salvando um livro a nado".

O método poético utilizado na descrição da paisagem citadina baseia-se no recurso a sensações (como as visuais — "a cor dos jacarandás" — e as auditivas — "um rumor distante de passos ou aves") — e na combinação de impressões sensoriais ("e a música, / o sumo do sol a escorrer da boca"). Também Cesário Verde recorria a um processo vincadamente impressionista, muito marcado pelo jogo de percepções sensitivas. E, tal como na poesia de Cesário Verde, os contornos da realidade são ténues como a fluidez de uma aguarela: "a cor dos jacarandás floridos / se mistura à do Tejo, em flor também".

O outro espaço sugerido no texto de Eugénio de Andrade é o mundo campestre, associado a um tempo passado — o fértil universo da infância. No "Livro de Cesário Verde", a cidade. e o campo são as faces de um binómio em que se agita o sujeito poético, ora preso e atrofiado, ora estimulado e livre. O poema "Nós" é uma realização do contraste desses espaços com base na evocação de uma experiência familiar. Por vezes, mesmo inserido num ambiente citadino, o poeta descobria vestígios da natureza; e neste poema de Eugénio de Andrade está igualmente denunciada a procura de "um rumor distante de aves", lembrando o mundo livre do campo.

Eugénio de Andrade  

A vivência na atmosfera urbana motiva, no texto de Eugénio de Andrade, o convívio poético com Cesário Verde, sublimado pela intenção da homenagem.

Nos versos finais do poema é realçado o valor de Cesário pela sua mestria na utilização poética da Língua, elevada na procura incessante da perfeição formal.

A parte central do texto de Eugénio de Andrade é, por um lado, a expressão de um sentimento de admiração pela poesia de Cesário Verde:

"Só ele ajusta a luz feliz dos seus
versos aos olhos ardidos que são
os meus agora...".

Por outro lado, este fragmento testemunha a evocação de uma situação paralela que inspirou um poema de um heterónimo de Fernando Pessoa, também dedicado a Cesário Verde, e cuja estrofe inicial é a seguinte:

"Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em
frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde."

A simetria das situações é denunciada pela correspondência dos vocábulos do campo semântico da luz.

Esta vivência de intertextualidade alarga o âmbito do relacionamento poético mantido na homenagem de Eugénio de Andrade e articula certas afinidades estéticas que favorecem uma visão plural do fenómeno literário.

Ana Paula Tribuzi


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