Para
quem, nas suas jornadas, não se limitar a ver a paisagem pura, mas
procurar também rever, em imaginação, os factos históricos que a
Natureza muda testemunhou, a região das Beiras será privilegiadamente
uma das parcelas do solo português mais prontas a oferecer-lhe estímulos
de evocação. Os seus rios, cumes e planaltos assistiram, com efeito, no
decorrer dos séculos, a sucessos muito importantes para a nossa
existência colectiva. Nos redutos naturais e quase inexpugnáveis das
suas montanhas viveram e defenderam-se os mais temidos adversários da
ocupação romana da Península Ibérica, aqueles que a tradição tanto
erudita como popular apontam como os nossos. ascendentes directos: os
lusitanos.
Tal
tradição, é certo, não a aceitou o severo Herculano, alegando ser
arbitrário filiar a nacionalidade portuguesa na longínqua tribo
celtibérica, dadas as sucessivas emigrações de povos que, de permeio,
entre o ingresso dos romanos e a formação da nacionalidade, dizimaram e
mesclaram as populações primitivas da
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15 / Península. Seja como
for, a Serra da Estrela, o coração da Beira de hoje, não deixa de ser
uma fonte de evocação histórica, tão ligado anda o seu antigo nome de
Montes Hermínios às extraordinárias façanhas dos montanheses comandados
por Viriato e, depois de seu assassinato, pelo exilado general romano
Sertório. Nos seus profundos vales travaram-se combates de que resultou
por vezes o aniquilamento total de algumas legiões. Não poucos generais,
alguns aureolados por outras campanhas, (Licínio Lúculo, Galba, Pláucio,
César, Pompeu), correram o risco de perder o seu prestígio diante da
astúcia e resistência desses montanheses. Após a submissão do reduto dos
Hermínios (que custou mais de um século a conseguir), os romanos
construíram algumas estradas militares através desse teatro de
guerrilhas. Não é difícil ao viajante, depois dos estudos de Hübner e
outros indagadores ulteriores, determinar nas zonas da Beira que quiser
percorrer, os pontos onde poderá encontrar restos dessas vias. A mais
importante atravessava a Beira Litoral, descendo de Portus Cale, pela
incógnita Talábriga, Aemínium (actual Coimbra) e Conímbriga, em direcção
a Scalabis. Outra, partindo de Caurium, ligava a Guarda a Balsemão,
seguindo para Braga. Viseu parece ter sido um nódulo importante de
algumas vias da Lusitânia interior; no seu subúrbio se encontra uma
cava, vestígio, segundo alguns, de um polígono defensivo de origem
luso-romana. Mas a excursão mais interessante, relativa à romanização,
que poderemos fazer nesta região das Beiras, é a visita às ruínas de
Conímbriga ou Condeixa-a-Velha.
Transportando-nos alguns séculos adiante, para a fase da reconquista
neo-gótica da Península, encontramos de novo a Beira como teatro de
guerra. Fernando de Leão e Castela, em uma das suas afortunadas
expedições para o sudoeste peninsular contra os sarracenos, depois de
conquistar Tarouca e Viseu, e de ocupar o flanco dos antigos Hermínios,
em Seia, assediou com êxito (1064) Coimbra, ajudado pela legendária
espada do Cid e guiado pelo conselho de um poderoso moçárabe, de nome
Sesnando, natural de Tentúgal, personagem foragido não se por que razões
do ambiente político de Sevilha. Como paga desta ajuda, o rei leonês
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investiu o seu poderoso auxiliar do encargo de defensor do território de
entre Douro e Mondego. Sesnando, com notável actividade, consolidou a
nova linha de fronteira, organizando a defesa dos campos do Mondego,
podendo bem reputar-se o primeiro preparador mediato da independência
portucalense. Foi da síntese do seu distrito com o territorio de entre
Minho e Tâmega, esse viveiro de orgulhosos barões (no tempo de Sesnando
revoltados contra o rei Garcia da Galiza), síntese em boa parte
cooperada (segundo Herculano) pela rivalidade dos arcebispos de Braga e
Compostela, que a nacionalidade portuguesa se formou.
O sul da
Beira Litoral está cheio de testemunhos da prolongada pugna contra os
muçulmanos. Percorrendo-a, encontraremos os mais importantes suportes
das primitivas razias ou fossados nos muros de
Montemor-o-Velho, de Penela, de Pombal, de Leiria.
Não é,
porém, somente pelas relíquias medievais do litoral que a Beira contém
estímulos de evocação; é principalmente pela sua divisória fronteiriça,
contígua da planura leonesa, de trânsito relativamente fácil, que esta
zona vertebral do território português contém sinais do seu excepcional
valor histórico. Expulso o moiro das margens do Guadiana, as
preocupações deslocaram-se para a raia leonesa, tornando a Beira objecto
de numerosas obras defensivas. Durante o longo reinado de D. Dinis
restauraram-se alguns muros decadentes e ergueram-se importantes
castelos novos desde a foz do Côa à do Pônsul. Se o viajante, depois de
possuir algum conhecimento directo desta zona raiana, se encontrar em um
dia claro, na cumeada da Serra da Estrela (ou mesmo junto da Torre da
Guarda), poderá, melhor do que pelos livros, diante da amplidão posta
diante de si, como uma imensa carta em relevo, ver a coesão e razão de
ser do sistema de obras militares que os primeiros monarcas portugueses
conceberam e realizaram. Duas linhas importantes de baluartes se lhe
apresentarão, correndo o horizonte: a primeira, reforçando as
trincheiras do Côa e do Pônsul, constituída pelas defesas e atalaias de:
Numão, Castelo Rodrigo, Pinhel, Almeida, Castelo Mendo, Alfaiates,
Sortelha, Sabugal, Penamacor, Penha Garcia, Idanha-a-Nova; atrás desta,
outra Iinha angulosa e robusta de castelos: Penedono, Longroiva,
Marialva, Aguiar da Beira, Moreira de Rei, Trancoso Celorico da Beira,
Linhares, Guarda, Belmonte, Monsanto, Castelo Branco. A situação
eminente de qualquer destas fortificações (inermes hoje, mas
poderosamente eficazes no seu tempo) exprime bem o sentido superiormente
voluntarioso e lúcido que presidiu à sua escolha. Das suas ruínas
abrangem-se inesquecíveis horizontes.
(O texto continua na pág. 17
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(1)
– Por SANT'ANNA DIONÍSIO.
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