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             O poeta “Anto”, de Sá-Carneiro, é uma 
            homenagem a António Nobre, crismada com o nome do seu exílio 
            literário. 
            A primeira quadra testemunha, pela fantasia 
            das imagens, uma capacidade criadora que se realiza pela 
            transposição de sensações ou sentimentos para a paisagem sugerida. 
            As abstracções contidas em certas notações psicológicas como 
            “enlevos” ou “saudades” são, de alguma forma, objectivadas nas 
            sucessivas aproximações ao universo das impressões sensoriais. O 
            tempo outonal é sugerido na atmosfera de abandono e melancolia, nas 
            formas esguias e na nostalgia do luar. Este quadro desmaia na 
            efemeridade de “febres” delgadas ou vaporosos “enlevos” e na 
            inconsistência cinética da paisagem. O ambiente criado reveste-se de 
            um pendor onírico através da elevação febril do ópio ou do abandono 
            à volúpia. O quadro evasivo é mesclado de erotismo e sensualidade.  | 
          
        
        Depois de ter sido concebida, na primeira estrofe, 
        a ilusão ambiental, é esboçado, na estância seguinte, o perfil poético 
        de Anto. A veia aristocrática surge como nota dominante nos epítetos que 
        moldam a segunda parte do poema (“pajem”, “príncipe” e “Senhor feudal”). 
        Curiosamente, esta sucessão de sabor heráldico combina com a “Memória” 
        profética de António Nobre: «Num berço de prata, dormia deitado, / três 
        moiras vieram dizer-lhe o seu fado / (E abria o menino seus olhos tão 
        doces): / — Serás um príncipe! mas antes... não fosses.» A sua estirpe 
        poética vaticina-lhe o isolamento, o exílio ou a solidão. E a evocação 
        artística do poeta, enclausurado na torre de marfim, é geminada com o 
        refúgio do “insulado” na Torre de Anto. Nela, o ser predestinado viveu 
        uma curta existência de encantamento e idealidade poética. A vivência do 
        poeta surge também marcada pelo estigma do sentimentalismo (com a 
        expressão eterna de doçura no olhar) e esta característica também figura 
        no poema de Mário de Sá-Carneiro com os registos psicológicos contidos 
        em “ternuras” e “carícias magoadas”. Ainda sob o signo do destino, a 
        vida definha num quadro crepuscular de melancolia outonal, de acordo com 
        a sugestão paisagística do poeta de “Indícios de Oiro”. Assim, a 
        debilidade da natureza acompanha a fragilidade e decadência da vida 
        humana.
        A presença de António Nobre na obra de Mário de 
        Sá-Carneiro veicula a consciência do significado dessa figura para a 
        geração do “Orpheu”, destacando-se como precursor da poesia moderna. 
        Segundo Fernando Pessoa, “de António Nobre partem todas as palavras com 
        sentido lusitano que de então para cá têm sido pronunciadas."
        No estudo crítico de João Gaspar Simões que 
        prefacia as "Poesias” de Mário de Sá-Carneiro, este nome é citado a par 
        de António Nobre em várias passagens desse texto introdutório. Ambos são 
        referidos no grupo dos poetas considerados intensamente subjectivos ou 
        introvertidos. O tema fundamental de cada um deles é a própria 
        existência individual (“Nobre fala de si mesmo; Sá-Carneiro é de si 
        mesmo que fala.”). A marca do subjectivismo alastrou na atmosfera do 
        Simbolismo, conferindo à expressão literária nacional, corporizada por 
        esses dois poetas, entre outros, uma grande originalidade. No fim da 
        exposição de João Gaspar Simões, é revelado ainda um outro ponto de 
        contacto entre os dois poetas, apreciando a sua evolução literária: 
        “Sá-Carneiro era umas vezes vulcanicamente metafórico, outras quase 
        reflectidamente analítico. Mas na fase derradeira há uma modificação 
        completa. Sá-Carneiro deixa de todo o metaforismo abstracto: faz-se 
        homem concreto. A voz de António Nobre vem fundir-se com a sua.”
        
         
        Caprichos de lilás, febres 
        esguias,
        Enlevos de ópio — íris-abandono...
        Saudades de luar, timbre de Outono,
        Cristal de essências langues, fugidias...
        O pajem débil das ternuras 
        de cetim,
        O friorento das carícias magoadas;
        O príncipe das Ilhas transtornadas —
        Senhor feudal das Torres de marfim...
        Mário de Sá-Carneiro, Poesias.
        Paula Tribuzi