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        Havia um médico, bom homem, em corte de um poderoso 
        rei, sem refolho de malícia, que visitando Sua Alteza, ainda que o 
        achasse afligido com qualquer trabalho ou dor não mostrava 
        entristecer-se, mas, aplicados os remédios que entendia lhe eram 
        necessários, consolava el-rei dizendo: que se não agastasse, que 
        sofresse seu trabalho com paciência, porque tudo o que Deus faz é pelo 
        melhor. 
        
          
            
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         Aconteceu que morreu o príncipe herdeiro do reino, 
        pelo que el-rei esteve encerrado e muito triste; e querendo este médico 
        visitá-lo e consolá-lo, como todos faziam, o fez com as palavras de seu 
        costume, dizendo-lhe: 
        — Senhor, não vos agasteis tanto, que seja ocasião de 
        perda de vossa pessoa; tudo que Deus faz é pelo melhor. 
        El-rei não teve paciência a este dito em tal tempo, e 
        disse: 
        — Que pior me podia ser a mim acerca do príncipe, que 
        morrer-me ele? Prometo de me vingar deste simples e ver se lhe dará por 
        melhor a morte que lhe mandarei dar, se deixá-lo viver. 
        E chamou dois homens, que eram para isso, e 
        disse-lhes: 
        — Ide após Fuão, que agora vai daqui, e dizei-lhe que 
        lhe quereis dar um recado meu, e como chegar a ouvi-lo matai-o que eu o 
        mando; não temais a justiça. 
        
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        Os quais foram a casa do médico e acharam a porta da 
        escada fechada, porque, como todos traziam dó pelo príncipe, ele também 
        quando chegou a sua casa vinha muito afrontado, e para comer despiu-se 
        por desabafar, ficando em calças e gibão, e por não ser achado assim se 
        alguém o buscasse, que lhe pareceu que estava desonesto, mandou cerrar a 
        porta da rua, e os que o vinham matar disseram que traziam recado de 
        el-rei, e o médico alvoraçado com isto lançou sobre si o capuz de dó, e 
        quis ir adiante dos moços a abrir-lhe ele a porta, e com a pressa ao 
        descer empeçou no capuz e de tal maneira se atravessou na porta que 
        quebrou uma perna pela coxa, de que dava grandíssimos gritos. Acudiram 
        os servidores de casa; tirando-o dali o lançaram na cama, que os brados 
        que dava era lastimosa coisa de ouvir. Foi curado por donas de sua casa, 
        como ele mandou, e respondido aos homens que estavam à porta que se 
        fossem e dissessem a Sua Alteza o que acontecera; e eles o fizeram 
        assim. E o médico esteve mais de seis meses em uma cama, que cuidaram 
        que morresse daquilo; porém sarou, e depois que se ergueu, coxeando da 
        perna foi beijar as mãos a el-rei, e el-rei vendo-lhe o defeito que 
        tinha e o trabalho passado, o quis consolar com palavras meigas; mas o 
        médico pelo costume que tinha não aceitou consolação: 
        — Não me pesa disso, porque o que Deus faz é pelo 
        melhor. 
        Ouvido por el-rei e visto como em causa própria, 
        teve-o dali por diante por bom homem, e perdeu o rancor que contra ele 
        tinha; e visto na verdade ser por melhor o quebrar-lhe a perna, que se a 
        não quebrasse morrera, como ele mandava, lhe fez mercê para seu gasto, e 
        aceitou seu conselho. 
        (Trancoso, Contos e Histórias, parte II, conto 
        III.) 
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        Nota: 
         
        
        Acha-se no Conde de Lucanor, de D. João 
        Manuel, n.º XVII (ed. 1642, fl. 81, v). Indubitavelmente esta redacção 
        do século XIV tem uma fonte árabe. Pág. 78 deixámos outra redacção 
        portuguesa do msanuscrito do século XIV, Orto do Esposo.
        
        
        In: Teófilo Braga, Contos Tradicionais do Povo 
        Português, col. Portugal de Perto n.º 15, Lisboa, Publicações Dom 
        Quixote, 1987, vol. II, pp. 128-129. Ilustração de Gaspar Albino. 
        
        
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