Acesso à hierarquia superior.

Henrique J. C. de Oliveira, Gramática da Comunicação, Col. Textos ISCIA, Aveiro, FEDRAVE, Vol. I, 1993, 311 pp., Vol. II, 1995, 328 pp.


VIII

A Língua Portuguesa
Diferentes Aspectos de Análise do Discurso

 

A narração: conceito; acção; tempo; espaço. Entidades da narrativa: o narrador; o narratário; a personagem; a participação e ciência do narrador. A acção e a sequência narrativa. Relação actancial e estrutura das acções. Trabalhos práticos sobre a narração. O diálogo. O monólogo, o solilóquio e a efusão lírica.

 
 

O DIÁLOGO

Tal como a etimologia da própria palavra indica (do grego dia 'com' e logos 'palavra, discurso'), o diálogo não é mais do que a permuta verbal entre duas ou mais pessoas. É a base da enunciação ou do acto enunciativo segundo Benveniste. Só pode haver comunicação se existir um eu e um tu, ou seja, se houver um sujeito emissor e um sujeito receptor. Nesta situação de comunicação as funções de emissor e receptor são reversíveis, alternando-se sucessivamente.

Na Antiguidade Clássica e também no período do Renascimento, o diálogo constituía uma forma didáctica de exposição. Recordem-se, por exemplo, Aristóteles, Sócrates e Platão. E se nos quisermos limitar à literatura europeia do período clássico, lembremo-nos dos Diálogos (1589) de Frei Amador Arrais e dos Apólogos Dialogais (1721) de D. Francisco Manuel de Melo, para nos reportarmos à literatura portuguesa[1].

O diálogo é considerado como o veículo mais expressivo no domínio da produção escrita, no conto, na novela, no romance, na epopeia, e o meio mais relevante no domínio do teatro. Constitui, portanto, um modo de expressão importante, podendo «compartilhar com a descrição ou a narração as honras de veículo expressivo mais eficaz[2]».

Do ponto de vista estrutural, o diálogo costuma ser classificado nos cinco tipos seguintes[3]:

· discurso directo;

· discurso indirecto;

· discurso indirecto livre;

· monólogo interior;

· solilóquio.

 

MONÓLOGO,  SOLILÓQUIO, EFUSÃO LÍRICA

Intencionalmente agrupámos o monólogo, o solilóquio e a efusão lírica na mesma rubrica, uma vez que apresentam afinidades entre si.

O monólogo (do grego mónos=um e lógos=palavra, discurso), do ponto de vista linguístico, consiste numa situação de enunciação em que aquele que o produz é simultaneamente o sujeito emissor e o sujeito receptor. Se a comunicação consiste em tornar comum aquilo que pensamos, sentimos ou pretendemos, dando-o a conhecer a outra pessoa, na situação de monólogo não há qualquer exteriorização para outrem no sentido em que normalmente utilizamos o vocábulo comunicação. A situação de monólogo situa-se, em princípio, ao nível da pura manifestação. No entanto, como aquele que pratica o monólogo como que se desdobra em duas pessoas, falando para o seu outro «eu», alguns linguistas consideram que o monólogo puro não existe, verificando-se, no fundo, uma situação de "diálogo".

A situação de monólogo ocorre na mente da pessoa que o pratica, resultando de um desdobramento da pessoa em duas entidades mentais: o «eu» e o «outro eu», que trocam entre si ideias como se tratasse de duas entidades independentes. Esta situação é bastante fácil de detectar na vida real. Não é por acaso que o povo utiliza a expressão «falar com os seus botões». Frequentemente deparamos com pessoas que estando ou sentindo-se sozinhas exteriorizam as suas ideias falando em voz alta, para ouvirem as suas próprias palavras. E também não é por acaso que, por vezes, as pessoas falam frente a um espelho com a sua própria imagem.

O monólogo é geralmente designado pela expressão «monólogo interior», expressão que, à primeira vista, poderá parecer redundante, na medida em que, se o monólogo é uma actividade psíquica, necessariamente terá de ser uma actividade interior, produzida na mente de todo o sujeito falante mesmo em situações de comunicação com outros, pois, geralmente, antes de exteriorizarmos as nossas ideias ou desejos, efectuamos pequenas pausas, mais ou menos demoradas, para reflectirmos não só sobre aquilo que vamos dizer, mas também na maneira como o vamos dizer. Por isso o discurso produzido na situação de monólogo interior se caracteriza por uma desarticulação lógica das frases e por uma sequência por vezes incoerente das ideias. Mas a expressão «monólogo interior» permite distinguir a situação que estamos a analisar, evitando a confusão com o monólogo teatral, tipo de peça em que apenas existe uma personagem em cena, como é o caso do Monólogo do Vaqueiro (1502) de Gil Vicente ou As mãos de Eurídice (1951) de Pedro Bloch.

Do ponto de vista literário, o monólogo interior é uma técnica narrativa utilizada pela primeira vez em 1887 pelo escritor Edouard Dujardin, na obra Les lauriers sont coupés, embora haja estudiosos que discordem e reivindiquem para Laurence Sterne o privilégio como precursor ao empregá-lo, em 1761, na obra Tristram Shandy. Mas quem criou a designação «monólogo interior» foi Valéry Larbaud, num estudo acerca de James Joyce, correspondendo à expressão inglesa «stream of consciousness» ('fluxo de consciência'), denominação proposta por William James nos Principles of Psychology (1890).

O monólogo interior caracteriza-se por um/a:

· uso de frases fragmentárias, incoerentes, soltas e caóticas;

· uso de frases desarticuladas, sem grande nexo sintáctico;

· total liberdade de associações lexicais;

· reflexo de um pensamento desinibido e desarticulado;

· conteúdo verbal que não se destina a outrem;

· fluxo de consciência cujo objectivo é reflectir sobre sensações, pensamentos, lembranças, fantasias, etc.

 

Segundo o que nos é dito por Massaud Moisés[4], o monólogo interior pode ser apresentado de duas maneiras: directa ou indirectamente. Se durante a narração se passa directamente do mundo exterior para a mente da personagem «sem a intervenção ostensiva do escritor, de molde que a personagem expõe o magma subterrâneo de sua mente numa espécie de confidência ao leitor, sem barreiras de qualquer natureza e sem obediência à normalidade gramatical», estaremos na presença do monólogo directo; se se verifica uma interferência patente, nítida, do narrador «na transcrição da correnteza mental da personagem, como se detivesse o privilégio de sondar-lhe e captar-lhe o tumultuado mundo psíquico sem deformá-lo, ao menos aparentemente», estaremos perante um monólogo interior indirecto.

   
 

Figura 72: Aspectos assumidos pelo monólogo.

 

Quer se trate de um ou de outro processo, a verdade é que estaremos sempre perante a situação de monólogo, tornando-se por isso desnecessário distinguir os dois processos, tanto mais que, frequentemente, se torna difícil e discutível dizer se se trata de um ou do outro processo. Muito mais importante, isso sim, será distinguir num texto a situação de monólogo.

O solilóquio (do latim SOLILOQUIU < SOLUS = 'sozinho? + LOQUI = 'falar', ou seja, falar sozinho, termo utilizado por Santo Agostinho no seu Liber Soliloquium) é equivalente ao monólogo interior mas, ao contrário do primeiro, consiste na oralização do que se passa na mente da personagem. É um tipo de situação que tanto pode ocorrer no teatro como no romance, durante a qual a personagem, sozinha, perante os espectadores ou o leitor, articula em voz alta os seus pensamentos, utilizando geralmente um discurso de primeira pessoa.

Quando no começo desta rubrica fizemos referência àquela situação em que uma pessoa, perante um espelho ou mesmo sem ele, fala conscientemente em voz alta para si mesma, elaborando e articulando correctamente as frases como se estivesse outra pessoa a ouvir, a situação, embora de monólogo, é já uma situação de solilóquio. Este distingue-se do monólogo interior na medida em que o sujeito que fala estrutura todas as suas emoções, desejos e ideias de uma forma lógica e coerente.

O solilóquio foi muito utilizado no teatro ao longo dos séculos XVI e XVII por diversos autores, de entre os quais poderemos destacar Shakespeare (recorde-se o exemplo muito conhecido de solilóquio presente no Hamlet, «to be or not to be» = 'ser ou não ser), Calderon de la Barca (La vida es sueño, 1635), Lope de Vega (Soliloquios, 1612) e, para nos reportarmos a Portugal, Gil Vicente (Farsa de Inês Pereira[5].

Entre os séculos XVI e XIX utilizou-se no teatro um estratagema equivalente ao solilóquio, designado por aparte, em que a personagem, voltando-se para a assistência, torna audíveis os seus pensamentos, transformando-a numa espécie de confidente.

 

Quando na situação de monólogo interior a mente desliza para um universo diferente do normal, no qual predomina uma atmosfera carregada de valores estéticos, de valores poéticos, estaremos na presença da efusão lírica. Podemos, em síntese, afirmar que a situação de monólogo pode assumir três aspectos distintos: o monólogo interior; o solilóquio; a efusão lírica.

 

Sugestão de trabalho 22

Leia com atenção os textos a seguir apresentados e procure identificar os momentos em que se verifica a situação de monólogo, classificando cada um deles de acordo com as características anteriormente apresentadas e sintetizadas no quadro da figura 72.

texto 1

Entra logo Inês Pereira e finge que está lavrando só, em casa, e canta esta cantiga:

           Quien con veros pena y muere

           que hará cuando no os viere?[6]

 

           (Falando)

           Renego deste lavrar[7]

           e do primeiro que o usou!

           Ó Diabo que o eu dou,

           que tão mau é d'aturar!

           Ó Jesu! que enfadamento,

           e que raiva, e que tormento,

           que cegueira, e que canseira!

           Eu hei-de buscar maneira

           d'algum outro aviamento[8]

 

           Coitada, assim hei-de estar

           encerrada nesta casa

           como panela sem asa

           que sempre está num lugar?

           E assi hão-de ser logrados

           dous dias amargurados,

           que eu possa durar viva?

           E assi hei-de estar cativa

           em poder de desfiados?[9]

                           GIL VICENTE, Farsa de Inês Pereira

 

texto 2

Ainda assim! Não me esconjurem já o rapaz... Poeta, entendamo-nos; não é que fizesse versos: nessa não caiu ele nunca, mas tinha aquele fino sentimento de arte, aquele sexto sentido do belo, do ideal que só têm certas organizações privilegiadas de que se fazem os poetas e os artistas.

Eis aqui um fragmento de suas aspirações poéticas. Vejam as amáveis leitoras que não têm metro, nem rima nem razão...  Mas enfim versos não são.

 

«Olhos verdes!...

«Joaninha tem os olhos verdes...

«Não se reflecte neles a pura luz do céu, como nos olhos azuis.

«Nem o fogo - e o fumo das paixões, como nos pretos.

«Mas o viço do prado, a frescura e animação do bosque, a flutuação e a transparência do mar...

«Tudo está naqueles olhos verdes.

«Joaninha, porque tens tu os olhos verdes?

«Nos olhos azuis de Georgina arde, em sereno e modesto brilho, a luz tranquila de um amor provado, seguro, que deu quanto havia de dar, quanto tinha que dar.

«Os olhos azuis de Georgina não dizem senão uma só frase de amor, sempre a mesma e sempre bela: Amo-te, sou tua!

«Nos olhos negros e inquietos de Soledade nunca li mais que estas palavras: Ama-me, que és meu!

«Os olhos de Joaninha são um livro imenso, escrito em caracteres móveis, cujas combinações infinitas excedem a minha compreensão.

«Que querem dizer os teus olhos, Joaninha?

«Que língua falam eles?

«Oh! para que tens tu os olhos verdes, Joaninha?

«A açucena e o jasmim são brancos, a rosa vermelha, o alecrim azul ...

«Roxa é a violeta, e o junquilho cor de ouro.

«Mas todas as cores da natureza vêm de uma só, o verde.

«No verde está a origem e o primeiro tipo de toda a beleza.

«As outras cores são parte dela; no verde está o todo, a unidade da formosura criada.

«Os olhos do primeiro homem deviam de ser verdes.

«O céu é azul...

«A noite é negra...

«A terra e o mar são verdes...

«A noite é negra mas é bela: e os teus olhos, Soledade, eram negros e belos como a noite.

«Nas trevas da noite luzem as estrelas que são tão lindas... mas no fim de uma longa noite quem não suspira pelo dia?

«E que se vão... oh! que se vão enfim as estrelas!...

«Vem o dia... o céu é azul e formoso: mas a vista fatiga-se de olhar para ele.

«Oh! o céu é azul como os teus olhos, Georgina...

«Mas a terra é verde: e a vista repousa-se nela, e não se cansa na variedade infinita de seus matizes tão suaves.

«O mar é verde e flutuante... Mas oh! esse é triste como a terra é alegre.

«A vida compõe-se de alegrias e tristezas...

«Joaninha, Joaninha, porque tens tu os olhos verdes?...

Já se vê que o nosso doutor de bivaque, o soldado que lhe chamou maluco ao pensador de tais extravagâncias, tinha razão e sabia o que dizia.

Infelizmente não se formulavam em palavras estes pensamentos poéticos tão sublimes. Por um processo milagroso de fotografia mental, apenas se pôde obter o fragmento que deixo transcrito.

Que honra e glória para a escola romântica se pudéssemos ter a colecção completa!

Fazia-se-lhe um prefácio incisivo, palpitante, britante...  Punha-se-lhe um título vaporoso, fosforescente... por exemplo: Ecos surdos do coração ou Reflexos de alma ou Hinos invisíveis ou Pesadelos poéticos ou qualquer outro deste género, que se não soubesse bem o que era nem tivesse senso comum.

                              ALMEIDA GARRETT, Viagens na minha terra, cap. XXIII.

 

Além da actividade proposta nas sugestões de trabalho, procure aplicar os conhecimentos adquiridos acerca da narração e entidades narrativas, respondendo às questões a seguir formuladas:

1 - Identifique as entidades da narrativa correspondentes às partes sublinhadas nas expressões:

               1.1 - «Vejam as amáveis leitoras que...»

               1.2 - «Não me esconjurem já o rapaz...»

 

2 - Caracterize o tipo de narrador presente no excerto, tendo em conta a sua participação e a sua ciência ou ponto de vista.

 

3 - Delimite os momentos presentes no excerto, indicando numa curta frase o conteúdo de cada um.

 

texto 3

Eu odeio gentes que têm sempre uma história triste para contar todo o mundo tem suas dificuldades aquela pobre da Nancy Blake morreu faz um mês de pneumonia aguda bem eu não sabia dela muita coisa a não ser que ela era mais amiga da Floey do que minha é um aborrecimento ter de responder ele sempre faz eu dizer coisas erradas e não pára de falar como se estivesse fazendo discurso seu triste acabrunhamento solidariedade eu faço sempre aquele erro e paidrinho com dois is eu espero que ele me escreva uma carta maior na vez que vem se é verdade que ele gosta mesmo de mim oh Deus seja louvado que agora eu achei alguém para me dar o que eu tanto precisava pra me encher o coração a gente não tem neste lugar as oportunidades que se tinha faz tempo eu queria tanto alguém me escrevesse uma carta de amor e dele não era bem tanto assim e eu disse para ele que ele podia escrever o que quisesse seu sempre Hugh Boylan.

                                                   JAMES JOYCE, Ulisses
 


[1] – A nível da literatura de outros países, poderemos citar as obras Dialogues des morts (1683) de Fontenelle, Dialogues sur l'éloquence (1684) e Dialogues des morts (1700, 1712 e 1718) de Fénelon, Diálogo de la lengua (1737) de Juan de Valdés, Dialogues philosophiques (1876) de Renan, etc.

[2] Vd. Massaud MOISÉS, Dicionário de termos literários, op. cit., pág. 143.

[3] Consulte-se a rubrica inicial deste capítulo sobre o discurso directo, indirecto e indirecto livre e as rubricas acerca do monólogo e do solilóquio.

[4] Veja-se MASSAUD MOISÉS, Dicionário de termos literários, 5ª edição, São Paulo, Editora Cultrix, 1988, pp. 145-146.

[5] A Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente, inicia-se apresentando-se a protagonista Inês Pereira que fala sozinha, lamentando-se da sua situação. Ela, moça nova e solteira, ao contrário das outras, vê passar a sua juventude sempre encerrada em casa a bordar, quando o seu desejo é casar e folgar como todas fazem.

[6] Quem com ver-vos pena e morre / que fará quando vos não vir?

[7] «Renuncio esta costura» ou «Odeio esta costura».

[8] «Eu hei-de arranjar maneira / de conseguir outro modo de vida.»

[9] E assim hei-de estar fechada em casa / presa a fazer travesseiros com franjas?

 


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