O DIÁLOGO
Tal como a etimologia da própria
palavra indica
(do grego dia 'com' e logos 'palavra, discurso'), o diálogo não é mais do
que a permuta verbal entre duas ou mais pessoas. É a base da enunciação ou do
acto enunciativo segundo Benveniste. Só pode haver comunicação se existir um eu
e um tu, ou seja, se houver um sujeito emissor e um sujeito receptor. Nesta
situação de comunicação as funções de emissor e receptor são reversíveis,
alternando-se sucessivamente.
Na Antiguidade Clássica e também no
período do Renascimento, o diálogo constituía uma forma didáctica de exposição.
Recordem-se, por exemplo, Aristóteles, Sócrates e Platão. E se nos
quisermos limitar à literatura europeia do período clássico, lembremo-nos
dos Diálogos (1589) de Frei Amador
Arrais e dos
Apólogos
Dialogais (1721) de D. Francisco
Manuel de Melo, para nos
reportarmos à literatura portuguesa[1].
O
diálogo é considerado
como o veículo mais expressivo no domínio da produção escrita, no conto, na
novela, no romance, na epopeia, e o meio mais relevante no domínio do teatro.
Constitui, portanto, um modo de expressão importante, podendo «compartilhar
com a descrição ou a narração as honras de veículo expressivo mais eficaz[2]».
Do ponto de vista estrutural, o
diálogo costuma ser classificado nos cinco tipos seguintes[3]:
· discurso directo;
· discurso indirecto;
· discurso indirecto livre;
· monólogo interior;
· solilóquio.
MONÓLOGO, SOLILÓQUIO, EFUSÃO
LÍRICA
Intencionalmente agrupámos o monólogo, o solilóquio e
a efusão lírica na mesma rubrica, uma vez que apresentam afinidades entre si.
O
monólogo
(do grego mónos=um
e lógos=palavra, discurso), do ponto de vista linguístico, consiste numa
situação de enunciação em que aquele que o produz é simultaneamente o sujeito
emissor e o sujeito receptor. Se a comunicação consiste em tornar comum aquilo
que pensamos, sentimos ou pretendemos, dando-o a conhecer a outra pessoa,
na situação de monólogo não há qualquer exteriorização para outrem no sentido
em que normalmente utilizamos o vocábulo comunicação. A situação de monólogo situa-se,
em princípio, ao nível da pura manifestação. No entanto, como aquele que
pratica o monólogo como que se desdobra em duas pessoas, falando para o seu
outro «eu», alguns linguistas consideram que o monólogo puro não existe,
verificando-se, no fundo, uma situação de "diálogo".
A situação de monólogo ocorre na
mente da pessoa que o pratica, resultando de um desdobramento da pessoa em duas
entidades mentais: o «eu» e o «outro eu», que trocam entre si ideias como se
tratasse de duas entidades independentes. Esta situação é bastante fácil de detectar
na vida real. Não é por acaso que o povo utiliza a expressão «falar com os seus
botões». Frequentemente deparamos com pessoas que estando ou sentindo-se
sozinhas exteriorizam as suas ideias falando em voz alta, para ouvirem as suas
próprias palavras. E também não é por acaso que, por vezes, as pessoas falam
frente a um espelho com a sua própria imagem.
O monólogo é geralmente designado
pela expressão «monólogo interior», expressão
que, à primeira vista, poderá parecer redundante, na medida em que, se o
monólogo é uma actividade psíquica, necessariamente terá de ser uma actividade
interior, produzida na mente de todo o sujeito falante mesmo em situações de
comunicação com outros, pois, geralmente, antes de exteriorizarmos as nossas
ideias ou desejos, efectuamos pequenas pausas, mais ou menos demoradas, para
reflectirmos não só sobre aquilo que vamos dizer, mas também na maneira como o
vamos dizer. Por isso o discurso produzido na situação de monólogo interior se
caracteriza por uma desarticulação lógica das frases e por uma sequência por
vezes incoerente das ideias. Mas a expressão «monólogo interior» permite
distinguir a situação que estamos a analisar, evitando a confusão com o
monólogo teatral, tipo de peça em que apenas existe uma personagem em cena,
como é o caso do
Monólogo do
Vaqueiro (1502) de Gil Vicente ou As mãos
de Eurídice (1951) de
Pedro Bloch.
Do ponto de vista literário, o
monólogo
interior é uma técnica
narrativa utilizada pela primeira vez em 1887 pelo escritor Edouard
Dujardin, na obra Les
lauriers sont coupés, embora haja estudiosos que discordem e reivindiquem
para Laurence
Sterne o privilégio
como precursor ao empregá-lo, em 1761, na obra Tristram Shandy.
Mas quem criou a designação «monólogo
interior» foi
Valéry Larbaud, num estudo
acerca de
James Joyce,
correspondendo à expressão inglesa «stream of
consciousness» ('fluxo de
consciência'),
denominação proposta por
William James nos Principles
of Psychology (1890).
O monólogo interior caracteriza-se
por um/a:
· uso de frases fragmentárias,
incoerentes, soltas e caóticas;
· uso de frases desarticuladas, sem
grande nexo sintáctico;
· total liberdade de associações
lexicais;
· reflexo de um pensamento desinibido
e desarticulado;
· conteúdo verbal que não se destina
a outrem;
· fluxo de consciência cujo objectivo é reflectir sobre
sensações, pensamentos, lembranças,
fantasias, etc.
Segundo o que nos é dito por Massaud
Moisés[4], o monólogo
interior pode ser apresentado de duas maneiras: directa ou indirectamente. Se
durante a narração se passa directamente do mundo exterior para a mente da
personagem «sem a intervenção ostensiva do escritor, de molde que a personagem
expõe o magma subterrâneo de sua mente numa espécie de confidência ao leitor,
sem barreiras de qualquer natureza e sem obediência à normalidade gramatical»,
estaremos na presença do
monólogo
directo;
se se
verifica uma interferência patente, nítida, do narrador «na transcrição da
correnteza mental da personagem, como se detivesse o privilégio de sondar-lhe
e captar-lhe o tumultuado mundo psíquico sem deformá-lo, ao menos
aparentemente», estaremos perante um
monólogo
interior indirecto.
|
|
|
|
Figura 72: Aspectos
assumidos pelo monólogo. |
|
Quer se trate de um ou de outro processo, a verdade é que
estaremos sempre perante a situação de monólogo, tornando-se por isso
desnecessário distinguir os dois processos, tanto mais que, frequentemente, se
torna difícil e discutível dizer se se trata de um ou do outro processo. Muito
mais importante, isso sim, será distinguir num texto a situação de monólogo.
O
solilóquio (do latim
SOLILOQUIU─ < SOLUS =
'sozinho? + LOQUI = 'falar', ou seja, falar sozinho, termo utilizado por Santo
Agostinho no seu
Liber
Soliloquium) é
equivalente ao monólogo interior mas, ao contrário do primeiro, consiste na
oralização do que se passa na mente da personagem. É um tipo de situação que
tanto pode ocorrer no teatro como no romance, durante a qual a personagem,
sozinha, perante os espectadores ou o leitor, articula em voz alta os seus
pensamentos, utilizando geralmente um discurso de primeira pessoa.
Quando no começo desta rubrica
fizemos referência àquela situação em que uma pessoa, perante um espelho ou
mesmo sem ele, fala conscientemente em voz alta para si mesma, elaborando e
articulando correctamente as frases como se estivesse outra pessoa a ouvir, a
situação, embora de monólogo, é já uma situação de solilóquio. Este distingue-se
do monólogo interior na medida em que o sujeito que fala estrutura todas as
suas emoções, desejos e ideias de uma forma lógica e coerente.
O solilóquio foi muito
utilizado no teatro ao longo dos séculos XVI e XVII por diversos autores, de
entre os quais poderemos destacar Shakespeare (recorde-se
o exemplo muito conhecido de solilóquio presente no Hamlet, «to be or
not to be» = 'ser ou não ser), Calderon de la
Barca (La vida
es sueño, 1635),
Lope de Vega (Soliloquios,
1612) e, para nos reportarmos a Portugal, Gil Vicente (Farsa de
Inês Pereira[5].
Entre os séculos XVI e XIX utilizou-se
no teatro um estratagema equivalente ao solilóquio, designado por aparte, em que a
personagem, voltando-se para a assistência, torna audíveis os seus
pensamentos, transformando-a numa espécie de confidente.
Quando na situação de
monólogo
interior a mente
desliza para um universo diferente do normal, no qual predomina uma atmosfera
carregada de valores estéticos, de valores poéticos, estaremos na presença da
efusão lírica. Podemos, em
síntese, afirmar que a situação de monólogo pode assumir três aspectos
distintos: o monólogo interior; o solilóquio; a efusão lírica.
Sugestão de trabalho
22
Leia com atenção os textos a
seguir apresentados e procure identificar
os momentos em que se verifica a situação de monólogo, classificando cada um
deles de acordo com as características anteriormente apresentadas e
sintetizadas no quadro da
figura 72.
texto 1
Entra logo Inês Pereira e finge que
está lavrando só, em casa, e canta esta cantiga:
Quien con veros pena y muere
que
hará cuando no os viere?[6]
(Falando)
Renego deste
lavrar[7]
e do primeiro
que o usou!
Ó Diabo que o
eu dou,
que tão mau é
d'aturar!
Ó Jesu! que
enfadamento,
e que raiva,
e que tormento,
que cegueira,
e que canseira!
Eu hei-de
buscar maneira
d'algum outro
aviamento[8]
Coitada,
assim hei-de estar
encerrada
nesta casa
como panela
sem asa
que sempre
está num lugar?
E assi hão-de
ser logrados
dous dias
amargurados,
que eu possa
durar viva?
E assi hei-de
estar cativa
em poder de
desfiados?[9]
GIL VICENTE, Farsa de
Inês Pereira
texto 2
Ainda assim! Não me esconjurem já o
rapaz... Poeta, entendamo-nos; não é que fizesse versos: nessa não caiu
ele nunca, mas tinha aquele fino sentimento de arte, aquele sexto sentido do belo,
do ideal que só têm certas organizações privilegiadas de que se fazem os
poetas e os artistas.
Eis aqui um fragmento de suas
aspirações poéticas. Vejam as amáveis leitoras que não têm metro, nem rima
─ nem razão... Mas enfim versos não são.
«Olhos verdes!...
«Joaninha tem os olhos verdes...
«Não se reflecte neles a pura luz do
céu, como nos olhos azuis.
«Nem o fogo - e o fumo das
paixões, como nos pretos.
«Mas o viço do prado, a frescura e
animação do bosque, a flutuação e a transparência do mar...
«Tudo está naqueles olhos verdes.
«Joaninha, porque tens tu os olhos
verdes?
«Nos olhos azuis de Georgina arde,
em sereno e modesto brilho, a luz tranquila de um amor provado, seguro, que deu
quanto havia de dar, quanto tinha que dar.
«Os olhos azuis de Georgina não
dizem senão uma só frase de amor, sempre a mesma e sempre bela: Amo-te,
sou tua!
«Nos olhos negros e inquietos de
Soledade nunca li mais que estas palavras: Ama-me, que és meu!
«Os olhos de Joaninha são um livro
imenso, escrito em caracteres móveis, cujas combinações infinitas excedem a
minha compreensão.
«Que querem dizer os teus olhos,
Joaninha?
«Que língua falam eles?
«Oh! para que tens tu os olhos
verdes, Joaninha?
«A açucena e o jasmim são brancos, a
rosa vermelha, o alecrim azul ...
«Roxa é a violeta, e o junquilho cor
de ouro.
«Mas todas as cores da natureza vêm
de uma só, o verde.
«No verde está a origem e o primeiro
tipo de toda a beleza.
«As outras cores são parte dela; no
verde está o todo, a unidade da formosura criada.
«Os olhos do primeiro homem deviam
de ser verdes.
«O céu é azul...
«A noite é negra...
«A terra e o mar são verdes...
«A noite é negra mas é bela: e os
teus olhos, Soledade, eram negros e belos como a noite.
«Nas trevas da noite luzem as
estrelas que são tão lindas... mas no fim de uma longa noite quem não suspira
pelo dia?
«E que se vão... oh! que se vão
enfim as estrelas!...
«Vem o dia... o céu é azul e
formoso: mas a vista fatiga-se de olhar para ele.
«Oh! o céu é azul como os teus
olhos, Georgina...
«Mas a terra é verde: e a vista
repousa-se nela, e não se cansa na variedade infinita de seus matizes tão
suaves.
«O mar é verde e flutuante... Mas
oh! esse é triste como a terra é alegre.
«A vida compõe-se de alegrias
e tristezas...
«Joaninha, Joaninha, porque tens tu
os olhos verdes?...
Já se vê que o nosso doutor de
bivaque, o soldado que lhe chamou maluco ao pensador de tais extravagâncias,
tinha razão e sabia o que dizia.
Infelizmente não se formulavam em
palavras estes pensamentos poéticos tão sublimes. Por um processo milagroso de
fotografia mental, apenas se pôde obter o fragmento que deixo transcrito.
Que honra e glória para a escola
romântica se pudéssemos ter a colecção completa!
Fazia-se-lhe um prefácio
incisivo, palpitante, britante...
Punha-se-lhe um título
vaporoso, fosforescente... por exemplo:
─ Ecos surdos do
coração
─ ou
─ Reflexos de
alma
─ ou
─ Hinos
invisíveis
─ ou
─ Pesadelos
poéticos
─ ou qualquer
outro deste género, que se não soubesse bem o que era nem tivesse senso comum.
ALMEIDA GARRETT,
Viagens na
minha terra, cap. XXIII.
Além da actividade proposta nas
sugestões de trabalho, procure aplicar os conhecimentos adquiridos acerca da
narração e entidades narrativas, respondendo às questões a seguir formuladas:
1 -
Identifique as entidades da narrativa correspondentes às partes sublinhadas nas
expressões:
1.1
-
«Vejam as amáveis leitoras que...»
1.2
-
«Não me esconjurem já o rapaz...»
2 -
Caracterize o tipo de narrador presente no excerto, tendo em conta a sua
participação e a sua ciência ou ponto de vista.
3 -
Delimite os momentos presentes no excerto, indicando numa curta frase o
conteúdo de cada um.
texto 3
Eu odeio gentes que têm sempre uma
história triste para contar todo o mundo tem suas dificuldades aquela pobre da
Nancy Blake morreu faz um mês de pneumonia aguda bem eu não sabia dela muita
coisa a não ser que ela era mais amiga da Floey do que minha é um aborrecimento
ter de responder ele sempre faz eu dizer coisas erradas e não pára de falar
como se estivesse fazendo discurso seu triste acabrunhamento solidariedade eu
faço sempre aquele erro e paidrinho com dois is eu espero que ele me escreva
uma carta maior na vez que vem se é verdade que ele gosta mesmo de mim oh Deus
seja louvado que agora eu achei alguém para me dar o que eu tanto precisava pra
me encher o coração a gente não tem neste lugar as oportunidades que se tinha
faz tempo eu queria tanto alguém me escrevesse uma carta de amor e dele não era
bem tanto assim e eu disse para ele que ele podia escrever o que quisesse seu
sempre Hugh Boylan.
JAMES JOYCE, Ulisses
[1] – A nível da literatura de outros países, poderemos
citar as obras Dialogues des morts (1683) de Fontenelle, Dialogues
sur l'éloquence (1684) e Dialogues des morts (1700, 1712 e 1718) de
Fénelon, Diálogo de la lengua (1737) de Juan de Valdés, Dialogues
philosophiques (1876) de Renan, etc.
[2] – Vd. Massaud MOISÉS, Dicionário de termos literários,
op. cit., pág. 143.
[3] – Consulte-se a rubrica inicial deste capítulo sobre
o discurso directo, indirecto e indirecto livre e as rubricas acerca do
monólogo e do solilóquio.
[4] – Veja-se MASSAUD MOISÉS, Dicionário de termos
literários, 5ª edição, São Paulo, Editora Cultrix, 1988, pp. 145-146.
[5]
– A Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente, inicia-se
apresentando-se a protagonista
─ Inês Pereira
─ que fala sozinha, lamentando-se da sua situação.
Ela, moça nova e solteira, ao contrário das outras, vê passar a sua juventude
sempre encerrada em casa a bordar, quando o seu desejo é casar e folgar como
todas fazem.
[6] – Quem com ver-vos pena e morre / que fará quando
vos não vir?
[7] – «Renuncio esta costura» ou «Odeio esta costura».
[8] – «Eu hei-de arranjar maneira / de conseguir outro
modo de vida.»
[9] – E assim hei-de estar fechada em casa / presa a
fazer travesseiros com franjas?
|