Acesso à hierarquia superior.

Henrique J. C. de Oliveira, Gramática da Comunicação, Col. Textos ISCIA, Aveiro, FEDRAVE, Vol. I, 1993, 311 pp., Vol. II, 1995, 328 pp.


VI

A Língua Portuguesa:
Unidade Sistemática na Diversidade Dialectal

 

Área linguística do português. O discurso: diferentes aspectos de análise. Discurso oral e discurso escrito. Níveis ou registos de língua, dialectos e falares, crioulos e português do Brasil. Alguns traços gerais dos falares portugueses. Falares do português do Brasil. O discurso segundo as pessoas intervenientes na comunicação: discursos de primeira, segunda e terceira pessoa e discursos híbridos. O literário e o não literário.

 
 

DIALECTOS E FALARES                         

OS CRIOULOS                                          

O PORTUGUÊS DO BRASIL

Um dos factores, senão talvez o  maior, que   permite  a existência de comunicação, a inter-relação entre os diferentes elementos de uma sociedade, é, sem dúvida, a língua, o sistema de elementos vocais específicos e comuns a todos os membros de uma mesma comunidade linguística. Sem a existência de um código linguístico comum a todos os membros de uma sociedade, a comunicação entre eles tornar-se-ia, se não impossível, pelo menos bastante difícil. A língua é, pois, um importantíssimo elemento do património cultural de uma sociedade, de um povo, por ele preservado, transmitido e transformado e que deve ser comum a todos os seus membros.

Diz-se habitualmente que quem faz a língua é o povo. Mas esta é uma afirmação bastante discutível, como discutível é o conceito de "povo". Importa saber o que se entende por "povo". Habitualmente, emprega-se este vocábulo para designar a camada populacional menos culta de um país. E a camada mais culta? Onde a englobar? Não será ela também uma parte do povo? Não falarão todos a mesma língua? É certo que a camada menos culta apresenta uma maior tendência para utilizar o seu sistema de comunicação segundo o princípio da lei do menor esforço, utilizando uma linguagem mais espontânea e transformadora, obedecendo a regras mínimas das quais nem chega a ter, frequentemente, um conhecimento consciente, provocando frequentes desvios à norma linguística. Por outro lado, a camada mais culta, com um conhecimento mais consciente das regras que regem uma língua, tem tendência para conservar a língua mais estável, travando a sua evolução, tornando-a mais subordinada às "regras do bem falar", fazendo com que ela tenha tendência a manter uma certa uniformidade.

Destas duas tendências opostas inovadora e conservadora , surge-nos novamente a questão inicialmente formulada: afinal, quem faz a língua? A resposta mais correcta será aquela que contemple a globalidade dos falantes de uma determinada comunidade linguística. No caso do Português, será não só todo o povo português, mas também o brasileiro e o dos países que têm o português como língua nacional, englobando-se assim todas as camadas da população. Se é verdade que a camada menos culta contribui para a transformação da língua, actualmente há já muito quem pense que o papel mais decisivo na evolução da língua cabe à camada mais culta. A resposta à questão é, pois, bastante discutível e difícil de dar. Mas uma coisa é certa: todos os elementos de uma mesma comunidade linguística têm de possuir o mesmo código e acompanhar a evolução da língua, caso contrário não poderá haver uma correcta e eficaz comunicação entre eles.

Convém aqui desde já referir que o conhecimento do código linguístico não é o mesmo para todos os membros de uma comunidade linguística. Um igual domínio do código por todos os membros só é possível no plano do ideal. No plano da realidade, numa comunidade linguística, há tantos saberes linguísticos quantos os indivíduos que utilizam uma mesma língua. A competência linguística varia de indivíduo para indivíduo, do mesmo modo que a utilização de uma língua por uma mesma comunidade está condicionada por múltiplos factores.

Figura 45: A área sombreada corresponde ao conhecimento comum aos três elementos representados: A, B e C.

 

Observemos o esquema da figura 45. A cada quadrado corresponde um membro de uma mesma comunidade linguística. Como é sabido, a capacidade intelectual e os conhecimentos variam de indivíduo para indivíduo. Todos eles, uma vez nascidos e/ou inseridos numa dada comunidade linguística, acabam por adquirir maiores ou menores conhecimentos da língua que falam. Dos três membros, representados pelas letras A, B e C, o que apresenta maior competência é o elemento A, ao passo que o elemento C é o que apresenta um número mais reduzido de conhecimentos. Entre eles há zonas de conhecimento que são comuns, pelo que uma comunicação cem por cento eficaz entre todos, isenta de qualquer probabilidade de ruído, só será possível se for utilizado um vocabulário e estruturas comuns a todos eles, correspondentes à área sombreada.

Numa comunidade linguística há, pois, toda uma série de factores extra-linguísticos que concorrem para a diversificação do código relativamente a cada sujeito falante. Há factores de ordem cultural, de ordem geográfica, de ordem profissional, de ordem sócio-cultural e de ordem situacional, que levam a uma diversificação de competências e de utilização da língua.

A nível geográfico ou territorial, todos os habitantes de um dado país têm a noção das diferenças existentes de uma região para outra. No caso do português, bastará a observação do quadro, anteriormente apresentado na figura 2, para compreendermos que o português terá necessariamente de apresentar diferenças de região para região ou de continente para continente. Qualquer lusófono distinguirá a fala de um brasileiro da de um português ou, sem sairmos do mesmo território, de um habitante do norte ou do sul do país, seja ele Portugal, seja o Brasil. No entanto, e como já o referiram diversos estudiosos, o caso do português, apesar das variedades existentes, surpreende pela sua excepcional homogeneidade[1].

A nível individual, cada sujeito falante, dotado de um maior ou menor conhecimento da língua que fala, utiliza-a de modo diferente consoante a situação em que se encontra ou segundo o meio em que está inserido. O sujeito A, numa conversa em casa, entre familiares, utilizará a língua de uma determinada maneira, com vocábulos ou expressões que nunca empregará se se encontra numa situação de relação profissional, num escritório, ou se se encontra numa situação de convívio, por exemplo, num café, entre amigos. Igualmente o maior ou menor grau de familiaridade ou de confiança com as outras pessoas determinará diferentes registos de língua (ou, como também são correntemente designados, níveis de língua ou de linguagem).

De tudo isto se infere que teremos de abordar este problema segundo duas perspectivas: a nível mais amplo, abrangendo todo um território ou área linguística os dialectos e falares; de acordo com a situação de comunicação em que o indivíduo se encontra ou com a sua posição social níveis ou registos de língua[2].  

O primeiro problema que teremos de abordar é o do conceito de dialecto e de falar. Não é muito fácil precisar estes conceitos, especialmente o de dialecto. Segundo Marouzeau[3], dialecto «é uma forma particular tomada por uma língua num dado domínio», caracterizando-se por um «conjunto de particularidades tais que o seu agrupamento dá a impressão de um falar distinto dos falares vizinhos, não obstante o parentesco que os une». Se consultarmos um dicionário de linguística, além da informação sobre a etimologia do vocábulo[4], encontramos como definição «uma forma de uma língua, que tem o seu sistema lexical, sintáctico e fonético próprio e que é utilizado num meio mais restrito que a língua oficial».

Se o dialecto é constituído, tal como se infere das definições anteriores, por um conjunto de particularidades que o tornam distinto da língua oficial, o falar não é mais do que uma particularidade expressiva própria de uma região, que não apresenta uma forma específica e distinta da língua oficial, não oferecendo grandes dificuldades de compreensão.

Relativamente a Portugal continental, à excepção do Guadramilês, do Rionorês, do Mirandês e do Barranquenho os únicos que poderemos considerar como dialectos , o que existe são apenas falares[5]. Segundo Paiva Boléo e Maria Helena Santos Silva[6], existem apenas 6 falares, por sua vez apresentando subfalares: falar Minhoto, Transmontano, Beirão, Baixo Vouga e Mondego, Castelo Branco e Portalegre, Meridional (veja-se o mapa transcrito, figura 46).

A classificação proposta por Lindley Cintra, além da referência aos falares galegos (designados por dialectos), divide os falares portugueses em dois grandes grupos: os falares portugueses setentrionais (que englobam o falar minhoto e o transmontano da classificação anterior); os falares portugueses centro-meridionais (que englobam os restantes falares). 

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Figura 46: Dialectos e falares de Portugal segundo o mapa elaborado em 1958 por M. Helena Santos Silva, sob orientação e com a colaboração de Paiva Boléo.

 

De maneira muito simplificada, apresentamos, no quadro da figura 47, algumas das características dos seis falares de Portugal Continental. Para um estudo mais aprofundado, aconselham-se as obras já citadas de M. Paiva Boléo ou de Lindley Cintra, ou, para uma consulta mais rápida, a gramática de Celso Cunha e Lindley Cintra.

Em relação aos falares das regiões autónomas, Açores e Madeira, estas apresentam um prolongamento dos falares continentais, o que não é de admirar, se nos lembrarmos da história do povoamento destas ilhas. De uma maneira geral, verifica-se aqui um prolongamento dos falares centro-meridionais.

Em S. Miguel, encontramos características peculiares:

1 - O  u  tónico é pronunciado  ü (tal como o u em francês):

                                   tü [tiu]             müla  [miula]

2 - O  a  tónico tende para  o  aberto:

bata > bota]

3 - A vogal final   o  cai ou reduz-se a:

                                   copo > [kop ]             tudo > [tüd ]


Na
Madeira, encontramos como principais particularidades:

1 - O  u  tónico ditonga-se em  au:

[αw]   lua > laua  [lαwa]

2 - O  i  tónico ditonga-se em  ai:  filha > failha

 

L.C.

P.B.

ALGUNS TRAÇOS GERAIS DOS FALARES PORTUGUESES

S

E

T

E

N

T

R

I

O

N

A

I

S

 M
I
N
H
O
T

O

· Abertura da  vogal  tónica  nasal,  conferindo-lhe  uma  cambiante  de  semi- oralidade (-ã- > ã): branca  sumana

· Ditongação da vogal tónica nasal final (-ã > -ão): manhã [manhãu], irmã [irmãu]

· Conservação da pronúncia antiga -om em vez de -ão:  pão [põ],  irmão [irmõ]

· Ditongação crescente ou decrescente em algumas regiões: [Puartu], [bualus]

· Em certas localidades, passagem de a a e:  bureco,  bacalheu,  pestenas

· No minhoto central, passagem de al a aur: alguidar > aurguidar

TRANS

MONTA

NO

· Passagem de a a ê antes de nasal: pestana > pestêna,  montanha > montênha

· Existência de s e z reversos: [bazilha],  [seis]

· Emprego de um e paragógico em palavras terminadas em z: narize

· Abertura das vogais e e o em casos em que são fechados em português normal:  [cabèsa],  [istrèla]

 

C

E

N

T

R

O

 

M

E

R

I

D

I

O

N

A

I

S

BEI

RÃO

· Existência do s e z reversos: Viseu

· Existência do  e  paragógico: dez > deze

· Ditongação do e: treuze 

 BAIXO

VOUGA

E MON

DEGO

· Não apresenta, de uma maneira real, particularidades fonéticas vincadas. No entanto, entre Coimbra e Figueira da Foz, aparecem pequenas diferenças na pronúncia

 CASTE

LO

BRAN

CO E

PORTA

LEGRE

 · A principal característica é a passagem de a a e:

          geada [zieda]   alguidar > algueder

 

  Embora existam outras características, apenas destacamos estas duas:

 

· Passagem do ditongo ei a ê:  Janêro    azête    azêtona

 

· Passagem do i  pretónico a  e:   rebêra   feguêra

M

E

R

I

D

I

O

N

A

L

· O ditongo ei reduz-se a e ou ê:  rebêra   amêxa   quêjêra   pêxe

· O  e  final passa frequentemente a  i:  seti    noiti

· Passagem do  i  em sílaba inicial ou pretónica a  e:  feguêra

· Síncope do  i  na terminação  ia:  família > famila   matéria > matera

· No Algarve,  ê  é pronunciado  è: [Èzébiu]

· Uso dos sufixos  -um e -ito:  gosto > gostum     gato > gatum    canito

· O  u  tónico, no Algarve ocidental, é pronunciado como o  u  em francês ü:
                                 [miula]

 
 

Figura 47: Alguns traços gerais dos falares portugueses (L.C.=Lindley Cintra/P.B.=Paiva Boléo).

 


Relativamente ao
português do Brasil, tendo em conta a extensão vastíssima do território e a insuficiência de estudos de carácter linguístico, torna-se difícil apresentar uma panorâmica rigorosa. Há, no entanto, alguns trabalhos realizados que permitem ter uma ideia da situação do português neste país. Dentre eles, destaca-se o de Antenor Nascentes, que propõe uma classificação com base nas diferenças de pronúncia, tal como foi feito para o português europeu.

 

FALARES

DO   PORTUGUÊS   DO   BRASIL

 

Designação

Áreas abrangidas

N

Amazónico

Pará, Amazonas, Acre e Noroeste de Goiás

O

R

T

E

 Nordestino

Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Nordeste de Goiás

 

Baiano

Sergipe, Baía, Norte de Minas, Centro de Goiás

S

Fluminense

Espírito Santo, Rio de Janeiro, Leste de Minas

U

Mineiro

Centro, Oeste e Leste de Minas

L

Sulista

São Paulo, Paraná, Stª Catarina, Rio Grande do Sul, Sul de Minas, Sul de Goiás, Mato Grosso

Figura 48: Distribuição dos falares brasileiros, segundo Antenor Nascentes.

   
 

Figura 49: Áreas linguísticas do Brasil, segundo Antenor Nascentes.

 

Antenor Nascentes distingue duas grandes áreas: Norte e Sul. Nos falares do Norte, verifica-se a abertura das vogais pretónicas em palavras que não sejam nem diminutivos nem advérbios de modo em   -mente,  e uma "cadência" cantada na fala, enquanto no Sul o ritmo da fala é mais "descansado", isto é, mais lento.

Na região do Norte, Antenor Nascentes considera a existência de dois falares, a que ele dá a designação de "subfalares":  a) o Amazónico;  b) o Nordestino.

Na região do Sul, considera quatro falares: a) o Baiano; b) o Fluminense; c) o Mineiro;  d) o Sulista (Vide quadro da figura 9 e o mapa da figura 10).

Como é lógico, a passagem de uma área para a outra é por vezes imperceptível, havendo frequentemente fenómenos comuns em áreas totalmente afastadas umas das outras. Outro facto interessante é a grande semelhança de fenómenos do português do Brasil com o português europeu. Muitos dos traços característicos de certas regiões de Portugal vão surgir em diferentes pontos do Brasil na fala da camada populacional menos culta. Por exemplo, o  ch  africado, que era característico do português arcaico e que ainda se conserva em certas regiões de Portugal, surge também em várias zonas do Brasil, como em São Paulo e em Mato Grosso.

Mas com esta ou com aquela variedade fonética, um facto é indiscutível: em qualquer região que nos encontremos e à semelhança do que ocorre com o português europeu, verifica-se uma grande unidade da língua portuguesa, não existindo praticamente qualquer dificuldade na compreensão da língua[7].

Dissemos anteriormente que em Portugal apenas existem quatro dialectos Guadramilês, Rionorês, Mirandês e Barranquenho , todos eles situados em zonas fronteiriças. No entanto, na região fronteiriça entre Portugal e Espanha, ora do lado português, ora do espanhol, há toda uma série de linguagens, que passaremos a referir, seguindo um itinerário de Norte para Sul.

 

O FALAR DE ERMISENDE

Na província espanhola de Zamora, vizinha do concelho de Bragança, existe a pequena aldeia de Ermisende, que pertenceu outrora a Portugal, tendo passado a território espanhol a partir de 1640. Os seus habitantes falam uma variedade de português transmontano, cada vez mais influenciado pelo espanhol que, como língua oficial, se lhe vai sobrepondo.

 

O RIONORÊS (ou RIODONORÊS)

Na fronteira luso-espanhola, abrangendo as províncias de Zamora (Espanha) e Bragança (Portugal), fica uma aldeia dividida em dois bairros: um do lado português (Rio de Onor, Riodonor ou Rionor de Portugal); o outro, do lado espanhol (Riohonor). A fronteira é marcada em alguns pontos pelo rio que dá o nome à aldeia, mas, na maior parte das vezes, não existe qualquer linha de separação, sendo a fronteira apenas uma linha imaginária, que passará pelo centro de uma rua, tendo os habitantes as suas terras de lavoura tanto de um lado como do outro. Como as melhores comunicações rodoviárias são as do lado português, a aldeia (que é uma só e não duas, como pensou Leite de Vasconcelos) está hoje mais influenciada pelo português, conservando, no entanto, alguns traços fonéticos que atestam a sua origem leonesa: a conservação do  l  e  n  intervocálicos; o artigo definido masculino   al   com o feminino  a;  etc..
 

GUADRAMILÊS

O guadramilês é falado em Guadramil, pequena aldeia portuguesa do distrito de Bragança, a um quilómetro da fronteira. De origem leonesa, apresenta características muito semelhantes às do rionorês.

 

MIRANDÊS

O mirandês abrange uma área portuguesa relativamente extensa entre o rio Douro e as proximidades de Angueiras, nos concelhos de Miranda do Douro e de Vimioso[8]. Na Alta Idade Média, entre os séculos XII e XV, esta zona conheceu um intenso repovoamento leonês por parte dos mosteiros cistercienses de S. Martín de Castanheda e de Santa Maria de Moureruela. Devido ao seu difícil acesso, constitui como que um enclave leonês em território português. Apresenta características próprias da sua origem leonesa:

          · ditongação do  e  e  o  tónicos latinos;

· conservação do  l  e  n  intervocálico;

· palatalização das consoantes duplas latinas  -ll-  e  - nn -;

· artigos definidos mirandeses  el, la, los, las; etc...

 

SENDINÊS

Variedade do mirandês falada em Sendim, aldeia ao sul de Miranda do Douro.

 

FALAR DE VALVERDE DEL FRESNO, ELJAS, S. MARTIN  DE  TREVEJO

Embora situadas todas estas povoações em Espanha, numa região fronteiriça próxima da região portuguesa de Riba-Côa, apresentam uma variedade de galaico-português com alguns traços leoneses.

 

FALAR DE OLIVENÇA

Antiga povoação portuguesa hoje pertencente à Espanha, a sudoeste de Badajoz, conserva, especialmente por parte das pessoas mais velhas, um português com características alentejanas. As camadas mais jovens são normalmente bilingues.

 

BARRANQUENHO

Em Barrancos, vila alentejana junto à fronteira espanhola, fala-se um português com características alentejanas mesclado de elementos fonéticos, lexicais e morfológicos próprios do espanhol.

 

OS CRIOULOS

Nos actuais países africanos de língua portuguesa, além da língua oficial, com algumas diferenças relativamente ao Português europeu pela introdução de vocabulário proveniente das línguas nativas, existem as chamadas línguas crioulas, resultantes de uma assimilação rudimentar, desprovida de formas gramaticais, da língua dominante. Estas línguas crioulas existem não só em África, mas em vários continentes por onde os portugueses andaram.

Acerca do conceito de crioulo, tem-se escrito bastante e nem sempre da maneira mais acertada, variando as definições com os autores. Uma panorâmica clara sobre os crioulos e sua formação é-nos fornecida por Serafim da Silva Neto na obra já várias vezes por nós citada[9] e cuja leitura recomendamos. No entanto, vejamos alguma coisa sobre o assunto.

Com os descobrimentos, a partir de 1415 e nas décadas seguintes, os Portugueses começaram a frequentar as costas africanas e a tomar contacto com as populações nativas. A pouco e pouco, foram-se fundando praças portuguesas em vários pontos da costa e, à sua volta, constituindo pequenas povoações.

Segundo Oliveira Martins, são constituídos diversos tipos de estabelecimentos ultramarinos feitorias, fazendas e colónias com características específicas e com resultados linguísticos diferentes.

Enquanto numa feitoria o contacto com as populações nativas é esporádico e vacilante, proporcionando a formação de uma língua franca, nas fazendas o contacto entre europeus e nativos é mais profundo e decisivo, proporcionando uma língua de comunicação com uma vida própria, a que se dá o nome de crioulo. Nas colónias o resultado linguístico é diferente. Nestas, como se procura constituir uma segunda pátria, todo o património cultural e linguístico tem tendência a ser transplantado e transmitido à semelhança do país de origem. Foi o que sucedeu, por exemplo, com a romanização da Península Ibérica e com o resto da România, onde o Latim se impôs como língua oficial, dando origem às diferentes línguas latinas e levando ao desaparecimento das línguas anteriormente faladas nos territórios ocupados.

No caso intermédio que é o das fazendas não se procura transplantar o património cultural e linguístico do país de origem. Apenas surge a necessidade de comunicação imediata e de forma bastante rudimentar entre ocupantes e nativos, criando-se uma língua de comunicação improvisada, que acaba por se transmitir entre os nativos de geração em geração, como aconteceu com os crioulos. São estes, portanto, uma língua resultante da necessidade de comunicação imediata, que se caracteriza pela sua simplicidade e rudeza, comparativamente à língua que lhe deu origem.

O carácter de rudeza e simplicidade não é obra exclusiva do indígena. Deve-se em grande parte àqueles que vêm ocupar uma área anteriormente habitada por povos por eles considerados como inferiores. Assim sendo, o povo "superior" procura transmitir ao "inferior" a sua língua de uma maneira simplificada, reduzida ao mínimo indispensável e liberta de todas as possíveis dificuldades de natureza gramatical. Em vez de, por exemplo, transmitir, relativamente aos verbos, seis pessoas gramaticais e um elevado número de modos e de tempos, estes são pura e simplesmente reduzidos à forma do infinitivo.

Como refere o linguista Hugo Schuchardt, tanto o senhor como os escravos tinham como principal objectivo o fazerem-se compreender. O primeiro eliminou da língua europeia tudo quanto fosse difícil e extraordinário; o segundo reteve dela tudo quanto considerou como extraordinário e importante. E obteve-se uma língua intermédia.

Os crioulos são, portanto, e aproveitando a definição de Serafim da Silva Neto[10], «falares de emergência, com caracteres definidos e vida própria, que consistem na deturpação e simplificação extrema de uma língua, quando imperfeitamente transmitida e aprendida por gente de civilização inferior[11]

Os crioulos de origem portuguesa não se limitam ao continente africano; encontram-se em várias regiões do Globo por onde passaram os Portugueses, sendo, no entanto, os africanos os de maior vitalidade. Segundo Celso Cunha e Lindley Cintra, os crioulos podem-se repartir por três continentes: África, Ásia e Oceânia[12].

Na África, temos a considerar os crioulos de Cabo Verde (com duas variedades), os do Golfo da Guiné (S. Tomé, Príncipe e Ano Bom) e os continentais (Guiné-Bissau e Casamance, no Senegal).

Na Ásia, subsistem apenas os crioulos de Malaca (conhecidos por várias designações como papiá-cristão, malaqueiro, malaquês, malaquenho, malaquense, etc.), de Macau, do Sri-Lanka e ainda os de Chaul, Korlai, Tellicherry, Cananor e Cochim, estes últimos no território da União Indiana.

Na Oceânia, sobrevive ainda o crioulo de Tuhu, localidade próxima de Jacarta, na ilha de Java[13].

Os textos complementares, presentes na Sugestão de trabalho, a seguir apresentada, e extraídos de obras literárias bastante conhecidas, permitem-nos ficar com uma ideia dos diferentes aspectos assumidos pela língua portuguesa em diferentes regiões do mundo.

 

Sugestão de trabalho 13

Nas páginas  anteriores, teve a oportunidade de ver que o Português é uma língua cuja área linguística é extremamente vasta, ocupando praticamente os cinco continentes, mas sobretudo o europeu, o africano e o americano, onde vive como língua oficial.

Na presente sugestão de trabalho, vai ter oportunidade de contactar com quatro textos, que mostram a situação da língua portuguesa em igual número de diferentes países: Brasil, Angola, Moçambique e Cabo Verde.

Leia-os e procure realizar as actividades sugeridas.

Texto 1:

A LÍNGUA DO «P»

Maria Aparecida Cidinha, como a chamavam em casa era professora de inglês. Nem rica nem pobre: remediada. Mas vestia-se com apuro. Parecia rica. Até suas malas eram de boa qualidade.

Morava em Minas Gerais e iria de trem para o Rio, onde passaria três dias, e em seguida tomaria o avião para Nova Iorque.

Era muito procurada como professora. Gostava da perfeição e era afetuosa, embora severa. Queria aperfeiçoar-se nos Estados Unidos.

Tomou o trem das sete horas para o Rio. Frio que fazia. Ela com casaco de camurça e três maletas. O vagão estava vazio, só uma velhinha dormindo num canto sob o seu xale.

Na próxima estação subiram dois homens que se sentaram no banco em frente ao banco de Cidinha. O trem em marcha. Um homem era alto, magro, de bigodinho e olhar frio, o outro era baixo, barrigudo e careca. Eles olharam para Cidinha. Esta desviou o olhar, olhou pela janela do trem.

Havia um mal-estar no vagão. Como se fizesse calor demais. A moça inquieta. Os homens em alerta. Meu Deus, pensou a moça, o que é que eles querem de mim? Não tinha resposta. E ainda por cima era virgem. Por que, mas por que pensara na própria virgindade?

Então os dois homens começaram a falar um com o outro. No começo Cidinha não tendeu palavra. Parecia brincadeira. Falavam depressa demais. E a linguagem pareceu-lhe vagamente familiar. Que língua era aquela?

De repente percebeu: eles falavam com perfeição a língua do «p». Assim:

Vopocêpê reperaparopoupu napa mopoçapa boponipitapa?

Jápá vipi tupudopo. Épé linpindapa. Espestapa nopo papapopo.

Queriam dizer: você reparou na moça bonita? Já vi tudo. É linda. Está no papo.

Cidinha fingiu não entender: entender seria perigoso para ela. A linguagem era aquela que usava, quando criança, para se defender dos adultos. Os dois continuaram:

Queperopo cupurrapar apa mopoçapa. Epe vopocepê?

Tampambempem. Vapaipi serper nopo tupunepel.

Queriam dizer que iam currá-la no túnel... O que fazer? Cidinha não sabia e tremia de medo. Ela mal se conhecia. Aliás nunca se conhecera por dentro. Quanto a conhecer os outros, aí então é que piorava. Me socorre, Virgem Maria! me socorre! me socorre!

Sepe repesispistirpir popodepemospo mapatarpar epelapa.

Se resistisse podiam matá-la. Era assim então.

Compom umpum pupunhalpal. Epe roupoubarpar epelapa.

Matá-la com um punhal. E podiam roubá-la.

Como lhes dizer que não era rica? que era frágil, qualquer gesto a mataria. Tirou um cigarro da bolsa para fumar e acalmar-se. Não adiantou. Quando seria o próximo túnel? Tinha que pensar depressa, depressa, depressa.

Então pensou: se eu me fingir de prostituta, eles desistem, não gostam de vagabunda.

Então levantou a saia, fez trejeitos sensuais nem sabia que sabia fazê-los, tão desconhecida ela era de si mesma abriu os botões do decote, deixou os seios à mostra. Os homens de súbito espantados:

Tápá doipoidapa.

Está doida, queriam dizer.

E ela a se requebrar que nem sambista de morro. Tirou da bolsa o batom e pintou-se exageradamente. E começou a cantarolar.

Então os homens começaram a rir dela. Acharam graça na doideira de Cidinha. Esta desesperada. E o túnel?

Apareceu o bilheteiro. Viu tudo. Não disse nada. Mas foi ao maquinista e contou. Este disse:

Vamos dar um jeito, vou entregar ela pra polícia na primeira estação.

E a próxima estação veio.

O maquinista desceu, falou com um soldado por nome de José Lindalvo. José Lindalvo não era de brincadeira. Subiu no vagão, viu Cidinha, agarrou-a com brutalidade pelo braço, segurou como pôde as três maletas, e ambos desceram.

Os dois homens às gargalhadas.

Na pequena estação pintada de azul e rosa estava uma jovem com uma maleta. Olhou para Cidinha com desprezo. Subiu no trem e este partiu.

Cidinha não sabia como se explicar ao polícia. A língua do «p» não tinha explicação. Foi levada ao xadrez e lá fichada. Chamaram-lhe dos piores nomes. E ficou na cela por três dias. Deixavam-na fumar. Fumava como uma louca, tragando, pisando o cigarro no chão de cimento. Tinha uma barata gorda se arrastando no chão.

Afinal deixaram-na partir. Tomou o próximo trem para o Rio. Tinha lavado a cara, não era mais prostituta. O que a preocupava era o seguinte: quando os dois haviam falado em currá-la, tinha tido vontade de ser currada. Era uma descarada. Epe sopoupu upumapa puputapa. Era o que descobrira. Cabisbaixa.

Chegou ao Rio exausta. Foi para um hotel barato. Viu logo que havia perdido o avião. No aeroporto comprou a passagem.

E andava pelas ruas de Copacabana, desgraçada ela, desgraçada Copacabana.

Pois foi na esquina da rua Figueiredo Magalhães que viu a banca de jornal. E pendurado ali o jornal O DIA. Não saberia dizer por que comprou.

Em manchete negra estava escrito: "Moça currada e assassinada no trem."

Tremeu toda. Acontecera, então. E com a moça que a desprezara.

Pôs-se a chorar na rua. Jogou fora o maldito jornal. Não queria saber dos detalhes. Pensou: Épé. Opo despestipinopo épé impimplaplacápávelpel.

O destino é implacável.

CLARICE LISPECTOR, A Via Crucis do Corpo.

1 - Após a leitura do texto 1, procure responder (mentalmente ou por escrito) às questões:

1.1 - O texto, embora curto, apresenta uma história completa, caracterizando-se pela sua grande economia a nível das personagens e do tempo de acção. Classifique-o quanto ao género literário.

1.2 - Divida o texto em partes, tendo em conta a estrutura: introdução, desenvolvimento e conclusão.

1.2.1 - Na divisão anterior, a parte central o desenvolvimento ocupa praticamente todo o texto, desde o quarto parágrafo até à conclusão, constituída pelos dois últimos parágrafos «Pôs-se a chorar na rua ...  O destino é implacável». É pois uma parte bastante extensa, que pode ser subdividida em momentos. Elabore um esquema que permita pôr em destaque o desenrolar dos acontecimentos segundo uma sequência cronológica.

1.3 -  É também possível efectuar uma desmontagem do texto tendo em conta os locais de acção. Com base nestes, verifique como dividiria o texto em partes.

2  -  Efectue o resumo do conto em cerca de dez linhas, no máximo.

3 - Efectue o levantamento dos traços linguísticos característicos do português do Brasil, atendendo aos seguintes ítens:

         3.1 - a nível lexical;

         3.2 - a nível da construção frásica.

 

Texto 2:

O calor começava já a fugir com medo da noite que vinha e um vento, guardando o fresco da chuva da manhã, batia o vestido de Delfina de encontro às pernas fortes, ao corpo rijo dela. O capim verde convidava de todos os lados e, molhado como estava, punha cócegas nos pés de Zeca Santos, metendo-se nos sapatos rotos. Ia muito calado, não sabia mais o que dizer a Delfina, tudo quanto estava inventar debaixo do sape-sape, essas palavras doces que nasciam à toa no calor das farras, agora ali não aceitavam sair. Pelo carreiro acima, devagar, sentia as cigarras a cantar nos troncos das acácias, o vento a dançar os ramos cheios de flores, as folhas murmurando uma conversa parecia de namorados, todo o barulho das picas, dos pardais, dos plim-plaus aproveitando os bichos das chuvas. Delfina vinha com um pequeno sorriso escondido, de fazer-pouco, e foi ela quem adiantou interromper esse silêncio:

Ená! Então você me dá encontro e não dizes nada?

Oh!...  O que eu quero falar você já sabe, Fina!

Ih!? Já sei? Quando é que falaste? E trabalho, já arranjaste?

Sério, com esse assunto Zeca ficou calado. Delfina sempre lhe falava esses casos do trabalho e mesmo quando ele queria fazer-pouco o João Rosa, cafofo e mais não sei quê, a rapariga refilava, assanhada:

Você tens é raiva! O rapaz trabalha, tem seu carro dele, e fala-me mesmo para casar comigo...

Gostava muito de Delfina, queria mesmo ela sabia todas as coisas da vida dele, mas como ia-lhe contar então o que tinha sucedido nesses dias de procura de trabalho? Ou mesmo falar esse trabalho de carregar cimento no porto, serviço assim só de monangamba? Ela não ia aceitar, ia-lhe deixar naquela hora, naquele sítio, no meio do caminho das barrocas. Também dizer não tinha trabalho, não encontrava serviço, era pior. Delfina continuava falar, sentia-se mesmo na voz dela era só para fazer raiva, dizia João Rosa já tinha-lhe prometido falar no patrão para lhe mudarem no escritório; que ela devia mas é ir mesmo na escola da noite; que, depois, queria se casar com ela, se ia aceitar namoro dele e mais outras conversas, só para irritar Zeca Santos. Essas palavras magoavam-lhe lá dentro, sentia tristeza, vergonha dele mesmo, mas também sorte não tinha, gostava a pequena, o pior é que trabalho de todos os dias custa encontrar. Pensou a tarde já estava a ser boa com esse encontro, pena Delfina estar lhe xingar assim. Medroso, agarrou-lhe no braço e baixando a voz falou como ele sabia:

Ouve então, Fininha. Você esqueceste o sábado? Aquilo que disseste, enh? Para quê você está se zangar? E depois, falar assim à toa nesse sungadibengo de Rosa, para quê? Eu não fico raivado, qu' é que você pensa? Agora tenho o meu emprego aí com Maneco, na estação de serviço... E depois, você sabe, você viu no baile, Marcelina anda-me chatear...

Ih! Essa sonsa?! Sakuama! Já viram? Tem nada de cheirar?...

Calou-se logo, Delfina. O sorriso de Zeca Santos estava na frente dela, um sorriso ela gostava e tinha raiva ao mesmo tempo, ficava parecia era cara de gato quando anda brincar com o rato...

Devagar, com toda a técnica ele tinha estudado, desviou-lhe do caminho onde iam, atravessaram um bocado de capim, borboletas e quijongos saltaram para todos os lados. Sentados debaixo de uma grande acácia, vermelha de flores, Zeca puxou Delfina na cintura, ...

LUANDINO VIEIRA, Luuanda, 1972.

1 -      Após a leitura do texto 2, responda (mentalmente ou por escrito) às questões:

1.1 -   Quais os intervenientes na acção do texto?

1.2 -   Qual o local de acção?

1.3 -   Qual o assunto do texto?

2 -      Preste atenção às frases ou vocábulos a seguir transcritos e destacados e comente-os tendo em conta as normas linguísticas correntes da língua portuguesa:

2.1 -   «tudo quanto estava inventar debaixo do sape-sape...»

2.2 -   «O vento a dançar os ramos cheios de flores.»

2.3 -   «Então você me dá encontro e não dizes nada?»

2.4 -   «Você tens é raiva!»

2.5 -   «...tem seu carro dele...»

2.6 -   «...mas como ia-lhe contar...»

2.7 -   «Ela não ia aceitar, ia-lhe deixar naquela hora...»

2.8 -   «Também dizer não tinha trabalho, não encontrava serviço ...»

2.9 -   «...dizia João Rosa já tinha-lhe prometido falar no patrão para lhe mudarem no escritório

2.10 - «Queria se casar com ela.»

2.11 - «Pensava a tarde já estava a ser boa com esse encontro...»

2.12 - «Você esqueceste o Sábado?

2.13 - «Eu não fico raivado...»

2.14 - «...Marcelina anda-me chatear...»

 

Texto 3:

O RIO, ALÉM DA CURVA

Cito o jornal "Notícias", de Maputo, do dia 19 de Fevereiro. Rezava assim: "Um hipopótamo invadiu e destruiu o mobiliário do Centro de Alfabetização e de Corte e Costura do bairro da Munhava, deixando perturbados os residentes do mais populoso bairro da capital de Sofala. (...) O guarda-nocturno daquele centro disse que o animal não era um vulgar hipopótamo, mas um exemplar muito estranho que arrombou a porta da escola, introduziu-se na sala de aulas e começou a destruir a mobília. (...) Circula entre a população o rumor de que o hipopótamo é, afinal, um velho cidadão que perdeu a vida na zona de onde veio o animal e que o referido velho vinha anunciar que a cidade ficará privada de chuvas e que graves doenças matarão muita gente. O facto coincide com o surto de epidemias que grassa naquela região urbana."

O jornal não versou o restante sucedido, após o desfecho. Acrescento aqui as versões dos que testemunharam em imperfeito juízo, gente versada em nocturnas aparições. Felizmente, no actual mundo, não há fontes indignas de crédito.

Jordão Qualquer acordou sobressaltado: que barulhos lhe chegavam lá da escola? Ficou inesperado, abstenso. E se decidiu ficar, a ver as consequências de nada fazer. Mas a barulheira aumentava de volume. Na escola alguém desbotava a manta, em assanhos de zaragatunagem. Ladrões, seriam. Mas assim, naquele descaramento? Estariam a tirar medidas da sua coragem? Jordão puxou a arma e se aproximou do edifício da escola. Calcanhava-se, os pés a contradizer a marcha.

O tamanho dos ruídos era coisa de afugentar atrevido e acobardar herói. Mas o medo é um rio que se atravessa molhado. Enquanto se aproximava Jordão apelava para reforços dos céus: "Que os xicuembos me segurem!" A lua iluminava o caminho. O luar é bom mas não chega para tirar o espinho do pé. É assim que Jordão não pode autenticar o tudo que viu, as coisas que se seguiram e que lhe couberam mais nos olhos que no pensamento. Pois quando ele espreitou na janela viu o enorme bicho mastigando a máquina de costura. A enormeza de tal mamífero nunca lhe tinha sido vista. Não era um simples, desses. Se diria ser um hiperpótamo. O bichorão descobriu o milícia na moldura da janela. Fixou o homem com os seus olhos ensonados, postos no sótão da testa. Depois, voltou a trincar a mobília. Prosseguia assim o piquenique do pícnico.

Pela cabeça de Jordão Qualquer passaram ideias, repentinas como pássaros. Como chegara ali aquele mpfuvo? Será que viera buscar sabedoria, aprender as escritas na ânsia de transitar de artiodáctilo para artiodactilógrafo? Ou vinha se inscrever no corte e costura? Não, não podia. Os dedos dele eram mais desengenhosos que asas de panela. Naqueles segundos de hesitação, o miliciano lembrou o antigamente. Os caçadores de mpfuvo, no cumprimento da tradição, não partiam para o rio sem a bênção dos vapores mágicos.

Marido e mulher se enfumavam daquele remédio para ganharem as boas sortes. Quando o caçador espetava a primeira azagaia na presa um mensageiro ia à aldeia avisar a esposa. A partir de então a mulher estava proibida de sair de casa. Acendia um lume e ficava a guardar a fogueirinha, sem comer e sem beber. Se ela desobedecesse, o seu marido sofreria as raivas do hipopótamo: a vítima virava caçador.

Estar assim em clausura era coisa que também prendia a alma do bicho, impedindo o paquiderme de fugir do seu espaço fatal. O encerramento da mulher só terminava quando, vindas lá do rio, se escutavam as alegrias da consumação da caça. Na povoação todos se alegravam menos ele, Jordão Qualquer. As azagaias pareciam sempre ter ferido sua alma, lá na extensão do rio. Mas agora, na janela da escolinha, não são as canções de júbilo mas a zanga do bicho que desperta o miliciano.

De facto, no real presente, o hipopótamo se zanga com o cenário. Esquinas, portas, paredes: essa geografia ele desconhecia. E todo se arreganha, descortina os dentes. O miliciano definha de medo, só a arma lhe dá tamanho. Súbito, sem pensar, Jordão dispara. Os tiros saltam de rajada, certeiros. O nariz estando em frente da visão nunca estorva os olhos. O bicho estremurchou, em pleno tamanho, todo derrubado. O cor-de-rosa da barriga lhe dava uma aparência recém-nascida. No último instante, o moribundo dedicou ao caçador um olhar cheio de ternura. Como se houvesse não ressentimento mas gratidão. Seria amor à última vista?

Jordão se lembrou como, em criança, ele se enternecia dos mpfuvos, seus desajeitosos modos: tanta nuca para nenhum pescoço! Tão gordos que pareciam aptos para toda a dança. Porque aqueles desastrados bichos, tão pouco terrestres, lhe eram afinal irmãos: ambos não tinham lugar entre a gente. Jordão sonhava com os animais, pareciam canoas viradas do avesso na lenta superfície do rio. E ele, no sonho, montava-lhes o dorso e subia o rio, além da curva. Esse era o devaneio maior: descobrir o adiante da humana paisagem, encontrar o lugar para além de todos os lugares.

Mas agora, de arma na mão, já lhe apetecia ser patrão de outras vidas, espezinhar as restantes criaturas, subitamente inferiores. Lhe subiu uma repentina raiva de, no passado, se ter sentido irmão daquelas animálias. A prepotência lhe vinha da espingarda ou a idade lhe matara a fantasia? Ou será que todo o adulto se adultera?

Alertados pelos tiros chegaram os muitos curiosos. Começaram os ditos e não-ditos, choveram propérios e impropérios:

Mataste o mpfuvo? Não sabes quem era esse animal?

Vais ver o castigo que vamos ser dados por culpa sua...

Nem espere por amanhã. Você se vai arrepender desse seu dedo ter gatilhado.

E foram-se. Sentado no último degrau da escola, Jordão ficou calado com os seus botões. O pensamento lhe tinha emagrecido. Que poderia fazer? Acusavam-no de ter morto um velho transfigurado. Como podia adivinhar sobre a verdade do hipopótamo, suas mensageiras funções? Mergulhou a cabeça entre os braços e assim ficou, mais circunflexo que o acento. Foi quando um safaninho o despertou. Alguém lhe tocava as costas em jeito de lhe querer despertar.

Olhou para trás: um arrepio lhe sacudiu o todo corpo. Era um pequenino mpfuvo, filhote da hipopótama. A cria: o que ela queria? Procurava o amparo, o abrigo de um maior ser. Chafurdou o sovaco do miliciano como se lhe quisesse despertar um imaginário seio. Depois, se juntou ao corpanzil da mãe e grunhiu para convocar sua atenção. Jordão olhou o bicharoquinho, aquela boca de não caber no focinho. Então, se levantou e laçou o órfão nos braços.

O pequeno se agitava, aumentando-se no peso. Jordão tropeçava, quase deixando cair a carga, voltava a gaguejar os passos pela lama das margens. Quando chegou ao rio, o hipopotaminho se empinou em enorme festa e se juntou à familiar manada. Enquanto contemplava a cena, Jordão começou a insuportar o peso da arma. O ombro lhe adoecia da tal carga. Em gesto brusco, como se despedisse de uma parte de si, lançou a espingarda no rio. Foi nesse momento que escutou a humana voz vinda do pequenote filhote que salvara:

Sobe naquela canoa virada.

Canoa? Aquele espesso volume acima da superfície? A voz repetia o convite: "Vá, sobe que eu te mostro o rio além da curva." Então, já tornado encantável, o desarmado Jordão subiu o dorso húmido do sonho e extravagou-se pelo avesso da corrente.

MIA COUTO (escritor moçambicano), O rio, além da curva. In: jornal "PÚBLICO", Ano IV, nº 1104, 14 de Março de 1993, pág. 40. 

1 - Durante a leitura do texto, terá certamente notado algumas divergências relativamente à normas vigentes em Portugal. Além de algum vocabulário pitoresco e novo, criado pelo Autor, terá encontrado várias diferenças, quer a nível morfológico e sintáctico, quer das formas de tratamento: 

1.1 - Efectue o levantamento de todas as expressões que revelam uma construção sintáctica diferente;

1.2 - Reescreva-as de acordo com as normas correntes em Portugal.

 

Texto 4:

HORA DI BAI[14]

O veleiro balanceava ao sabor das ondas. Quem o visse à distância julgá-lo-ia um belo barco de recreio, garbosamente galgando a planura azul e mansa. Para os sobreviventes da estiagem não passava de uma dor que se prolongava na violência do mar encrespado. E quando uma vaga maior, uma vaga de respeito fez gingar o veleiro de bombordo a estibordo, Chico Afonso, o moço do barco, teve um gracejo sem eco em almas tão desconfortadas.

"Eh, gente, mar está a conversar com vocês. Isto é fala do mar. Mar é assim modo gente. Mar conversa, mar chora, mar dança. Mar está dançando samba, hem! Samba da vida o amor é uma ilusão, lá, lá, rá, lá, lá. Vocês não gostam de sambas? Gostam de mornas? Sim senhor. Chico vai cantar uma morninha para vocês. Morninha sabe."

O moço pegou no violão e lançando a vista sobre o mar começou a trautear mornas e um popular troveiro. Havia porém um desencontro entre as canções que ele entoava e o sofrimento que a seus pés se estendia. Só nhô Eugénio sabia pegar na tragédia do povo. Ninguém como ele fora tão fundo no coração da gente. Nem Bèléza, nem Mochinho do Monte. Só agora, larga experiência da vida alcançada e mais; só neste momento, único da sua vida de homem do mar, ele o sentia deveras.

Semicerrando os olhos, a canção desprendia-se-lhe dos lábios sazonada.

Ó mar eterno sem fundo

sem fim

Ó mar das túrbidas vagas

Ó mar

Suspende a zanga um momento

escuta

A voz do meu sofrimento

na luta

Aquela moça do canto ergueu-se e veio sentar-se junto dele a acompanhá-lo em surdina.

"Morna de nhô Eugénio é mesmo sabe, moço."

"Sabe de-mundo morna de Eugénio cantada cá pelo Chico."

A voz de Chico era a voz do navio mártir. A moça ouvia-o e nele tudo lhe fazia adivinhar São Vicente. A vida lá, uma tentação. Mornas, bailes, rapazes, farras e comida. E sentiu reviver a alegria dos tempos idos. Apeteceu-lhe beber água fresca de coco amadurecido, nem sabia porquê.

Inesperadamente, Chico, interrompendo a morna, disse-lhe, ainda de violão cruzado ao peito:

"Melhor cantador de morna em Cabo Verde é Mochinho do Monte."

"Uáh, nem nada."

"Bèléza?"

"Uah, nem nada."

Menina atrevida pensou Chico Afonso, olhando-a com os olhos malandros.

"Teu nome como é?"

"Nita. Nita Mendonça."

"Em São Vicente vou-te procurar."

"Ouve uma coisa. Melhor tocador de morna em Cabo Verde, fica sabendo, é Salibânia. Nunca ouviste cantar Salibânia?"

"Não. Já não é do meu tempo."

"Pois Salibânia, moço, fazia chorar a gente. Morreu cega, coitada. Salibânia parecia mesmo homem, ouviste? Corpo de homem, mãos de homem, fazendo briga como homem. Mulher-macho, de verdade. Mas a cantar morna, moço, (Chico reparou-lhe nos dentes muito brancos e nos olhos azuis), nem Bèléza, nem Mochinho do Monte, ninguém, fica sabendo. Depois fizeram morna de Salibânia, tu sabes."

E de súbito pediu-lhe:

"Moço, canta Hora di bai."

Chico deitou um olhar busado à moça e, de seu modo trocista, deu-lhe vontade de a engonear:

"Milho alheado é sabe e doce / quanto mais com chicharrim."

"Deixa de disparate. Canta Hora di bai."

"Hora di bai? Bô crê ba comigo?"

"Não sejas disparatente."

"Bô é tracolança, menina."

Tracolança podia ser, mas não gostava que lho dissessem. Ia retirar-se.

"Ouve uma coisa. Fica. Eu canto Hora di bai."

Despreocupadamente começou a dedilhar o violão.

MANUEL FERREIRA, Hora di Bai, 1962.
 

1 - Após a leitura do texto 4, responda às questões:

1.1 - Identifique os intervenientes na acção do texto.

1.2 - Destaque as partes correspondentes ao narrador das correspondentes à intervenção das personagens.

1.2.1 - Determine em que se distinguem do ponto de vista linguístico.

1.3 -Destaque, na fala das personagens, as expressões ou palavras que são características da língua de Cabo Verde.

 


[1] – A título exemplificativo, transcrevemos algumas passagens do artigo de MANUEL DE PAIVA BOLÉO, Unidade e variedade da língua portuguesa: 

«– O português é uma das grandes línguas de civilização, entendendo eu por esta expressão a língua falada por um povo que levou a outras regiões do globo ou a outros povos o seu tipo humano e cultural. "Língua de civilização" é, para mim, coisa diferente de "Kultursprache" na terminologia alemã pois que este vocábulo terá de ser traduzido em português por "língua literária"....)

Se pusermos de lado os crioulos propriamente ditos (por exemplo, o de Cabo Verde) e que têm características próprias, o que surpreende e causa admiração nesta área tão extensa do português [aproximadamente 14 600 000 Km2, incluindo o Brasil], é a sua grande unidade. Ao passo que na Espanha, França, Itália, Inglaterra e Alemanha há vários dialectos bem diferenciados, em Portugal só há um que mereça esse nome o mirandês, que foi estudado, principalmente, por Leite de Vasconcelos, antigo mestre da Faculdade de Letras de Lisboa. (Pela área restrita em que se falam, não se torna necessário mencionar expressamente os dialectos guadramilês, rionorês e sendinês, de que se ocupou igualmente o citado filólogo). (...)

Essa unidade do português torna-se ainda mais flagrante se compararmos as diferenças, relativamente pequenas, que existem entre o português europeu e o português do Brasil (...)

São várias as causas desta homogeneidade excepcional da língua portuguesa, homogeneidade que, com meu conhecimento, não tem paralelo em qualquer outra língua da Europa e que tanto contribui para a sua vitalidade. Apontarei somente as causas que me parecem mais importantes. Em primeiro lugar, o ser Portugal um dos mais velhos países da Europa. As suas fronteiras actuais, com ligeiras diferenças, são as mesmas que já existiam no fim do século XIII. Em segundo lugar, os elementos estrangeiros que, desde então e ainda hoje, se integraram na sua população, constituem uma ínfima minoria.

Segundo o censo da população de 1950, 99,75 % eram portugueses e só 0,25 % eram estrangeiros.

Além das causas apontadas, há ainda uma terceira, que contribui para essa homogeneidade e para o carácter bastante conservador do português: o ser uma língua da periferia, menos sujeita, portanto, a influências estranhas. (...)

Mas não obstante esta unidade e homogeneidade excepcionais, a língua portuguesa apresenta uma riqueza e variedade surpreendentes, tanto no que toca ao léxico como no que respeita às linguagens que se podem notar dentro da língua comum... (...)»

in: BOLÉO, M. de Paiva , Unidade e variedade da língua portuguesa, in: Estudos de Linguística Portuguesa e Românica, Coimbra, Vol. I, tomo I, 1974, pp. 253-287.

[2] «É, pois, recente a concepção de língua como instrumento de comunicação social, maleável e diversificado em todos os seus aspectos, meio de expressão de indivíduos que vivem em sociedades também diversificadas social, cultural e geograficamente. Nesse sentido, uma língua histórica não é um sistema linguístico unitário, mas um conjunto de sistemas linguísticos, isto é, um DIASSISTEMA, no qual se interrelacionam diversos sistemas e subsistemas. Daí o estudo de uma língua revestir-se de extrema complexidade, não podendo prescindir de uma delimitação precisa dos factos analisados para controle das variáveis que actuam, em todos os níveis, nos diversos eixos de diferenciação. A variação sistemática está, hoje, incorporada à teoria e à descrição da língua.

Em princípio, uma língua apresenta, pelo menos, três tipos de diferenças internas, que podem ser mais ou menos profundas: 

· 1º) - diferenças no espaço geográfico, ou VARIAÇÕES DIATÓPICAS (falares locais, variantes regionais e, até, intercontinentais);

· 2º) - diferenças entre as camadas socioculturais, ou VARIAÇÕES DIASTRÁTICAS (nível culto, língua padrão, nível popular, etc.);

· 3º) - diferenças entre os tipos de modalidade expressiva, ou VARIAÇÕES DIAFÁSICAS (língua falada, língua escrita, língua literária, linguagens especiais, linguagem dos homens, linguagem das mulheres, etc.).

A partir da nova concepção da língua como diassistema, tornou-se possível o esclarecimento de numerosos casos de polimorfismo, de pluralidade de normas e de toda a inter-relação dos factores geográficos, históricos, sociais, psicológicos que actuam no complexo operar de uma língua e orientam a sua deriva.

Condicionada de forma consistente dentro de cada grupo social e parte integrante da competência linguística dos seus membros, a variação é, pois, inerente ao sistema da língua e ocorre em todos os níveis: fonético, fonológico, morfológico, sintáctico, etc.. E essa multiplicidade de realizações do sistema em nada prejudica as suas condições funcionais.

Todas as variedades linguísticas são estruturadas, e correspondem a sistemas e sub-sistemas adequados às necessidades dos seus usuários. Mas o facto de estar a língua fortemente ligada à estrutura social e aos sistemas de valores da sociedade conduz a uma avaliação distinta das características das suas diversas modalidades diatópicas, diastráticas e diafásicas. A língua padrão, por exemplo, embora seja uma entre as muitas variedades de um idioma, é sempre a mais prestigiosa, porque actua como modelo, como norma, como ideal linguístico de uma comunidade. Do valor normativo decorre a sua função coercitiva sobre as outras variedades, com o que se torna uma ponderável força contrária à variação.

Numa língua existe, pois, ao lado da força centrífuga da inovação, a força centrípeta da conservação, que, contra-regrando a primeira, garante a superior unidade de um idioma como o português, falado por povos que se distribuem pelos cinco continentes.»

In:  CELSO CUNHA e LINDLEY CINTRA, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 2ª edição, Edições Sá da Costa, Lisboa, 1984, pp. 3-4

[3] MAROUZEAU, J. , Lexique de la terminologie linguistique, 2ª ed., Paris, 1943.

[4] O vocábulo dialecto é proveniente do grego dialektos (διάλεκτoς), que designava os diferentes sistemas utilizados em toda a Grécia, cada um para um género literário determinado e considerados como a língua duma região da Grécia.

[5] Embora na gramática anteriormente citada de Celso Cunha e Lindley Cintra se fale de dialectos, será necessário notar que a designação é imprópria, o que aliás se deduz da indicação dos próprios, quando afirmam que empregam «o termo DIALECTO no sentido de variedade regional da língua, não importando o seu maior ou menor distanciamento com referência à língua padrão»  (pp. 4-5 da op. cit.). Assim sendo, dialecto é inadequadamente utilizado na acepção de falar.

[6] De entre as três propostas de classificação relativas aos falares de Portugal Continental, optámos pela de MANUEL DE PAIVA BOLÉO e MARIA HELENA SANTOS SILVA, em O mapa dos dialectos e falares de Portugal Continental, publicado na obra Estudos de Linguística Portuguesa e Românica, vol. I, tomo I, Coimbra, 1974, pp. 310-351.

As outras duas propostas de classificação foram feitas respectivamente por Leite de Vasconcelos, baseada na divisão de Portugal em províncias (VASCONCELOS, J. Leite de - Esquisse d'une dialectologie portugaise, Paris-Lisboa, Aillaud, 1901) e LUÍS FILIPE LINDLEY CINTRA (Boletim de Filologia, Lisboa, 1971). No trabalho de Paiva Boléo e M. H. Santos Silva, além do mapa dos falares de Portugal Continental, por eles elaborado, encontra-se uma reprodução do mapa de Leite de Vasconcelos. Embora em tamanho reduzido, apresentamos uma adaptação do mapa elaborado em 1958 por Maria Helena Santos Silva, sob a orientação e com a colaboração de Manuel de Paiva Boléo. Para uma leitura pormenorizada dos dois mapas referidos, aconselhamos a consulta da obra indicada.

[7] Embora existam algumas diferenças entre o português do Brasil e o de Portugal, transcrevemos apenas as principais divergências a nível fonético, morfológico e sintáctico, lexical e das formas de tratamento:

I - A nível fonético:

              · Palatalização de  t  e  d  antes de  i  ou   e   postónico:

                        tchio;  dchirector;  pedchi

  · Semivocalização  do  -l  em final de sílaba e de palavra:

                        Brasiu,  animau, sautar.

  · Acrescentamento de  i  (epêntese) entre duas consoantes:

                        pineu;  abisurdo  (absurdo);  capitura  (captura)

II - A nível morfológico e sintáctico:

  · Utilização e colocação das formas casuais dos pronomes pessoais (formas de sujeito e de complemento directo ou indirecto) em posições diferentes do usual em Portugal:

                        Exs.                  Eu vi ele bater no minino.

                                               Me diga as horas.

                                               Ela se levantou cedchinho.

  · Construção perifrástica com gerúndio:

                        Está fazendo um calor danado

  · Uso de preposições:   Ele foi no cineminha.  Vamos num?

  · Emprego de  ter  e  haver  de maneira diferente do português europeu:

                                   Não  tem   gentchi naquela casa.

III - A nível das formas de tratamento:

  · Uso de você, familiar (à excepção do Maranhão e Rio Grande do Sul, onde se usa tu) e  o senhor, a senhora  como forma de deferência.

IV - A nível lexical:

· Existência de numerosos vocábulos de origem tupi  (guri - rapaz;  capim - capim;  pipoca - milho;  mingau - papa) e africana  (caçula - filho mais novo;  moleque - miúdo; senzala - habitação de escravos.

Para outras informações mais pormenorizadas, aconselha-se a consulta de MARIA HELENA MIRA MATEUS e outros, Gramática da Língua Portuguesa, 2ª edição, Lisboa, Editorial Caminho, pp. 32-33.

Para ficarmos com uma ideia do Português do Brasil, aliás ouvido constantemente em Portugal através do elevado número de telenovelas brasileiras, que entram quase a todas as horas do dia nas nossas casas, através do pequeno ecrã televisivo, e também do português falado em países africanos de língua oficial portuguesa, leiam-se os textos complementares presentes neste mesmo capítulo, na Sugestão de trabalho, extraídos de obras conhecidas da literatura brasileira e africana.

[8] O mirandês foi estudado pela primeira vez por Leite de Vasconcelos. A esta região parece ter-se deslocado por cinco dias em Agosto de 1883, para efectuar, sob o sol escaldante desse mês, o estudo do dialecto mirandês.

Leite de Vasconcelos e aproveitando as informações de Amândio dos Anjos Gomes, nas Actas das 1ªs Jornadas de Língua e Cultura Mirandesa constatou que o dialecto se transmitiu por via oral, de geração em geração, tendo resistido até aos nossos dias. É hoje nas escolas do concelho de Miranda do Douro uma disciplina de opção, facto que permitirá, certamente, fazer com que este dialecto se conserve para as gerações vindouras.

Leiamos um excerto do texto de Domingos Abílio Gomes Raposo, Vitalidade, Valor e Estudo da Língua Mirandesa:

«Confinada entre o Português e o Espanhol, não se deixou imiscuir por estas embora, como é normal, tenha recebido de ambas, por exemplo, elementos lexicais, em especial do Português. Exemplos: assobiar, belo, amêixoa, baleia, do Português; cerilha, triteiro, duana, do Espanhol.

A influência do Português é mais forte do que a do Espanhol, pelo facto de o Mirandês se falar em território de Portugal.

Fruto de factores atrás descritos, algumas pessoas, sobretudo jovens, deixam de falar a língua de seus pais e avós, embora utilizem o sotaque e alguns vocábulos mirandeses.

Não obstante, a maioria dos mirandeses falam-na entre si desinibidamente e usam-na diariamente, mas, perante pessoas estranhas, evitam falá-la e já desde tempos antigos.

(...) Além de ser uma língua perfeita, com todos os elementos que uma língua pode ter, quer quanto à fonética, quer quanto à morfologia e à sintaxe (...), é um legado riquíssimo dos nossos ascendentes com oito séculos de existência (...)»

Das mesmas actas, extraímos um pequeno texto em prosa como exemplo do dialecto mirandês.

DEL GALHO Y DE LA RAPOSA

Era üa beç ü galho que quijo passar la nuite nü galho dü sobreiro, a la borda de ü camino, alhá pa Funte Lhadröñ.

Quando chigou la purmanhana, passou alhi üa raposa, pul camino.

La raposa tine fame e andaba a saber del q'habie de cumer.

Öubiu l galho a cantar no sobreiro e fui-s'alhá. I ãmpeçórü antöü a tocar a missa üas campanas, após q'ã Funte Lhadröñ, ã Mora, o ã Palaçolo.

Stando a tocar a missa, diç la raposa pal galho:

A cumpadre galho, antöün que stais ende a fazer?

Oh! pus stöu eiqui a ber quië passa.

Bós nü oubis; diç la raposa, stã a tocar a missa, home, andai daí!... Abeixai dende i bamos a ëilha!...

I arresponde el galho:

Pus si, comadre raposa, asp'rai ü pouquito, i an quanto yöu abaixo, estã a chigar els perricos del cura, que bénen yá eili, e apuis bamos todos!...

Ah cumpadre galho! arresponde la raposa, mui assustada i ampeçando a currer deixai-me que tengo muita priessa, böu-me yöu sola de lantre, que yá stá l cura a spera, de balde, até lhougo!...

I la raposa scapou-se a fugir, que nië siete galgos l'agarrában.

(Recolhido por António Maria Mourinho em 1947). Vide: Actas das 1ªs Jornadas de Língua e Cultura Mirandesa, Miranda do Douro, 1987.

[9] SERAFIM DA SILVA NETO, História da Língua Portuguesa, Col. Linguagem, nº 11, 3ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Presença, 1979, págs. 430-442.

[10] SERAFIM DA SILVA NETO, op. cit., pág. 436.

[11] Elementos essenciais do crioulo, segundo Serafim da Silva Neto:

«Esclarecidos assim os factos, vejamos como se pode estabelecer uma definição para esse tipo de falares.

Proporemos a seguinte definição: Os crioulos são falares de emergência, com caracteres definidos e vida própria, que consistem na deturpação e simplificação extrema de uma língua, quando imperfeitamente transmitida e aprendida por gente de civilização inferior.

            Aí estão os elementos essenciais:

            a) o crioulo é um falar transitório;

            b) o crioulo apresenta caracteres definidos, que se deixam prender a um fio condutor;

            c) o crioulo tem vida própria: ele é o meio de expressão de que dispõe o grupo;

            d) o crioulo é a deturpação e simplificação de uma língua (português, francês, espanhol, inglês, holandês);

            e) essa língua básica foi transmitida deficientemente, pois, como reconhece Vendryès, "os superiores nunca se deram ao trabalho nem tiveram vontade de ensinar uma fala correcta";

            f) o crioulo serve de instrumento de comunicação entre seres inferiores e subalternos.

O item c) ministra-nos, claramente, a diferença entre o crioulo e o português de negros. Este não constitui um conjunto de caracteres definidos. É meramente individual: exemplifica-nos a fase inicial, e o primeiro contacto, que pode preparar o advento do crioulo.

O português de negros consiste na algaravia ocasional das tribos que, resistindo à assimilação, mantêm intactos os seus padrões culturais, inclusive, é claro, a própria língua.

Nisso repousa, precisamente, a diferença entre os crioulos e o sabir, o pidgin-english, o chinook, isto é, um grupo de falares a que podemos chamar crioulizantes.

O sabir, que tem importância histórica, pois ascende à Idade Média, é uma fala intermediária, de material românico, que servia de comunicação entre os Cristãos e os Turcos e Árabes. Hoje, o seu emprego está muito restrito.

O pidgin-english é a língua franca, usada nos portos do Extremo Oriente, para as necessidades do intercâmbio comercial.

O chinook, de base indígena, serve de meio de comunicação para Ingleses e Franceses na costa norte-ocidental da América do Norte, do Alasca ao rio Oregão.

Nos crioulos há vários graus de aprendizagem, pois, segundo as circunstâncias, o primitivo falar xacoco mantém-se ou é aos poucos renovado pelo sangue novo da língua europeia. De geração em geração, graças sobretudo à escola, vai-se aperfeiçoando e enriquecendo a primitiva fala de emergência. É o que está sucedendo em relação ao crioulo francês na ilha Maurícia e ao macaísta. (...)

Daí o admitir-se a existência do semi-crioulo, ou seja, um estágio mais aperfeiçoado da primitiva aprendizagem. Ele exemplifica-nos o choque entre o falar europeu e o crioulo. Este vai sendo, pouco a pouco, invadido por palavras e giros do falar das pessoas socialmente mais bem dotadas. O semi-crioulo encerra, pois, formas e torneios semicultos.»

SERAFIM DA SILVA NETO, História da Língua Portuguesa, 3ª edição, Rio de Janeiro, Presença, 1979, pp. 436-437.

[12] Vd. CELSO CUNHA e LINDLEY CINTRA, Nova Gramática do Português Contemporâneo, 2ª ed., Lisboa, Edições Sá da Costa, 1984, pp. 23-24.

[13] Para uma breve panorâmica das características dos crioulos nesta regiões, consulte-se a gramática anteriormente citada de PILAR VÁZQUEZ CUESTA e MARIA ALBERTINA M. DA LUZ, Gramática da Língua Portuguesa, Edições 70, 1988, pp. 145-152.

[14] Significado de expressões ou vocábulos que poderão dificultar a compreensão do texto: sabe - saboroso, agradável (a forma do pres. do indic. do verbo saber  'ter sabor' passou a ser usada como adjectivo, em vez da correspondente 'saboroso');  sabe de-mundo - muito agradável; Hora di bai - hora de despedida;  busado - atrevido;  engonear - aborrecer;  chicharrim - chicharro pequeno;  Bô crê ba? - Tu queres ir?;  Bô é tracolança - Tu és menina da vida.


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