DIALECTOS E FALARES
OS CRIOULOS
O PORTUGUÊS DO BRASIL
Um dos factores, senão
talvez o maior,
que permite a existência de comunicação, a inter-relação entre os diferentes elementos de uma sociedade, é, sem dúvida, a
língua, o sistema de
elementos vocais específicos e comuns a todos os membros de uma mesma
comunidade
linguística. Sem a
existência de um
código
linguístico comum a todos
os membros de uma sociedade, a comunicação entre eles tornar-se-ia,
se não impossível, pelo menos bastante difícil. A língua é, pois, um
importantíssimo elemento do património cultural de uma sociedade, de um povo,
por ele preservado, transmitido e transformado e que deve ser comum a todos os
seus membros.
Diz-se
habitualmente que quem faz a língua é o povo. Mas esta é uma afirmação bastante
discutível, como discutível é o conceito de "povo". Importa saber o
que se entende por "povo". Habitualmente, emprega-se este
vocábulo para designar a camada populacional menos culta de um país. E a camada
mais culta? Onde a englobar? Não será ela também uma parte do povo? Não falarão
todos a mesma língua? É certo que a camada menos culta apresenta uma maior
tendência para utilizar o seu sistema de comunicação segundo o princípio da
lei do menor
esforço, utilizando
uma linguagem mais espontânea e transformadora, obedecendo a regras mínimas das
quais nem chega a ter, frequentemente, um conhecimento consciente, provocando
frequentes desvios à norma
linguística. Por outro
lado, a camada mais culta, com um conhecimento mais consciente das regras que
regem uma língua, tem tendência para conservar a língua mais estável, travando
a sua evolução, tornando-a mais subordinada às "regras do bem
falar", fazendo com que ela tenha tendência a manter uma certa
uniformidade.
Destas
duas tendências opostas
─ inovadora e
conservadora
─, surge-nos
novamente a questão inicialmente formulada: afinal, quem faz a língua? A
resposta mais correcta será aquela que contemple a globalidade dos falantes de
uma determinada comunidade linguística. No caso do Português, será não só todo
o povo português, mas também o brasileiro e o dos países que têm o português
como língua nacional, englobando-se assim todas as camadas da população. Se
é verdade que a camada menos culta contribui para a transformação da língua,
actualmente há já muito quem pense que o papel mais decisivo na evolução da
língua cabe à camada mais culta. A resposta à questão é, pois, bastante
discutível e difícil de dar. Mas uma coisa é certa: todos os elementos de uma
mesma
comunidade
linguística têm de
possuir o mesmo código e acompanhar a evolução da língua, caso contrário não
poderá haver uma correcta e eficaz comunicação entre eles.
|
Convém
aqui desde já referir que o conhecimento do
código
linguístico não é o mesmo
para todos os membros de uma comunidade linguística. Um igual domínio do código
por todos os membros só é possível no plano do ideal. No plano da realidade,
numa comunidade linguística, há tantos saberes linguísticos quantos os
indivíduos que utilizam uma mesma língua. A
competência
linguística varia de
indivíduo para indivíduo, do mesmo modo que a utilização de uma língua por uma
mesma comunidade está condicionada por múltiplos factores. |
Figura 45:
A área sombreada corresponde ao
conhecimento comum aos três elementos representados: A, B e C. |
|
Observemos
o esquema da figura 45. A
cada quadrado corresponde um membro de uma mesma comunidade linguística. Como é
sabido, a capacidade intelectual e os conhecimentos variam de indivíduo para
indivíduo. Todos eles, uma vez nascidos e/ou inseridos numa dada comunidade
linguística, acabam por adquirir maiores ou menores conhecimentos da língua que
falam. Dos três membros, representados pelas letras A, B e C, o que apresenta
maior competência é o elemento A, ao passo que o elemento C é o que apresenta
um número mais reduzido de conhecimentos. Entre eles há zonas de conhecimento
que são comuns, pelo que uma comunicação cem por cento eficaz entre todos,
isenta de qualquer probabilidade de ruído, só será possível se for utilizado um
vocabulário e estruturas comuns a todos eles, correspondentes à área sombreada.
Numa
comunidade linguística há, pois, toda uma série de
factores extra-linguísticos que concorrem
para a diversificação do código relativamente a cada sujeito falante. Há
factores de ordem cultural, de ordem geográfica, de ordem profissional, de
ordem sócio-cultural e de ordem situacional, que levam a uma
diversificação de competências e de utilização da língua.
A
nível geográfico ou territorial, todos os habitantes de um dado país têm a
noção das diferenças existentes de uma região para outra. No caso do português,
bastará a observação do quadro, anteriormente apresentado na figura 2, para
compreendermos que o português terá necessariamente de apresentar diferenças de
região para região ou de continente para continente. Qualquer lusófono
distinguirá a fala de um brasileiro da de um português ou, sem sairmos do mesmo
território, de um habitante do norte ou do sul do país, seja ele Portugal, seja
o Brasil. No entanto, e como já o referiram diversos estudiosos, o caso do português,
apesar das variedades existentes, surpreende pela sua excepcional homogeneidade[1].
A
nível individual, cada sujeito falante, dotado de um maior ou menor
conhecimento da língua que fala, utiliza-a de modo diferente consoante a
situação em que se encontra ou segundo o meio em que está inserido. O sujeito
A, numa conversa em casa, entre familiares, utilizará a língua de uma
determinada maneira, com vocábulos ou expressões que nunca empregará se se
encontra numa situação de relação profissional, num escritório, ou se se
encontra numa situação de convívio, por exemplo, num café, entre amigos. Igualmente
o maior ou menor grau de familiaridade ou de confiança com as outras pessoas
determinará diferentes registos de língua (ou, como também são correntemente
designados, níveis de língua ou de linguagem).
De
tudo isto se infere que teremos de abordar este problema segundo duas
perspectivas: a nível mais amplo, abrangendo todo um território ou área
linguística
─ os dialectos
e falares; de acordo com a situação de comunicação em que o indivíduo se
encontra ou com a sua posição social
─
níveis ou
registos de língua[2].
O
primeiro problema que teremos de abordar é o do conceito de dialecto e de
falar. Não é muito fácil precisar estes conceitos, especialmente o de dialecto.
Segundo
Marouzeau[3],
dialecto «é uma
forma particular tomada por uma língua num dado domínio», caracterizando-se
por um «conjunto de particularidades tais que o seu agrupamento dá a
impressão de um falar distinto dos falares vizinhos, não obstante o parentesco
que os une». Se consultarmos um dicionário de linguística, além da
informação sobre a etimologia do vocábulo[4], encontramos
como definição «uma forma de uma língua, que tem o seu sistema lexical,
sintáctico e fonético próprio e que é utilizado num meio mais restrito que a
língua oficial».
Se
o dialecto é constituído, tal como se infere das definições anteriores, por um
conjunto de particularidades que o tornam distinto da língua oficial, o
falar não é mais do
que uma particularidade expressiva própria de uma região, que não apresenta uma
forma específica e distinta da língua oficial, não oferecendo grandes
dificuldades de compreensão.
Relativamente
a Portugal continental, à excepção do
Guadramilês, do Rionorês, do Mirandês e do Barranquenho
─ os únicos que
poderemos considerar como dialectos
─, o que existe
são apenas
falares[5]. Segundo Paiva
Boléo e Maria Helena
Santos Silva[6], existem
apenas 6 falares, por sua vez apresentando subfalares: falar
Minhoto, Transmontano,
Beirão,
Baixo Vouga e
Mondego,
Castelo Branco
e Portalegre,
Meridional (veja-se
o mapa transcrito, figura 46).
A
classificação proposta por
Lindley Cintra, além da
referência aos falares
galegos (designados
por dialectos), divide os falares portugueses em dois grandes grupos: os falares
portugueses setentrionais (que englobam
o falar minhoto e o transmontano da classificação anterior); os falares
portugueses centro-meridionais (que englobam
os restantes falares).
|
|
|
|
Figura 46:
Dialectos e falares de Portugal
segundo o mapa elaborado em 1958 por M. Helena Santos Silva, sob
orientação e com a colaboração de Paiva Boléo. |
|
De
maneira muito simplificada, apresentamos, no quadro da figura 47, algumas das
características dos seis falares de Portugal Continental. Para um estudo mais
aprofundado, aconselham-se as obras já citadas de M. Paiva Boléo ou de Lindley Cintra, ou, para uma
consulta mais rápida, a gramática de Celso Cunha e Lindley
Cintra.
Em
relação aos
falares das
regiões autónomas, Açores e Madeira, estas
apresentam um prolongamento dos
falares
continentais, o que não é
de admirar, se nos lembrarmos da história do povoamento destas ilhas. De uma
maneira geral, verifica-se aqui um prolongamento dos falares centro-meridionais.
Em
S. Miguel, encontramos
características peculiares:
1 - O u tónico é pronunciado ü (tal como o u em francês):
tü
[tiu] müla [miula]
2 - O a tónico tende para o
aberto:
bata > bota]
3 -
A vogal final
─
o cai ou reduz-se a:
copo
> [kop ] tudo > [tüd ]
Na
Madeira, encontramos
como principais particularidades:
1 - O u tónico ditonga-se em au:
[αw] lua > laua [lαwa]
2 - O i tónico ditonga-se em ai:
filha > failha
|
L.C.
|
P.B.
|
ALGUNS TRAÇOS GERAIS DOS FALARES
PORTUGUESES
|
S
E
T
E
N
T
R
I
O
N
A
I
S
|
M
I
N
H
O
T
O
|
· Abertura
da vogal tónica
nasal, conferindo-lhe uma
cambiante de semi- oralidade
─ (-ã- > ã):
branca sumana
· Ditongação da vogal tónica
nasal final (-ã > -ão): manhã [manhãu], irmã [irmãu]
· Conservação da pronúncia
antiga -om em vez de -ão: pão
[põ], irmão [irmõ]
· Ditongação crescente ou
decrescente em algumas regiões: [Puartu], [bualus]
· Em certas localidades,
passagem de a a e:
bureco, bacalheu, pestenas
· No minhoto central, passagem
de al a aur: alguidar > aurguidar
|
TRANS
MONTA
NO
|
· Passagem de a
a ê antes de nasal: pestana > pestêna, montanha > montênha
· Existência de s e z
reversos: [bazilha], [seis]
· Emprego de um e
paragógico em palavras terminadas em z: narize
· Abertura das vogais e
e o em casos em que são fechados em português normal: [cabèsa],
[istrèla]
|
C
E
N
T
R
O
M
E
R
I
D
I
O
N
A
I
S
|
BEI
RÃO
|
· Existência do s e z reversos: Viseu
· Existência do e paragógico: dez > deze
· Ditongação do e: treuze
|
BAIXO
VOUGA
E MON
DEGO
|
· Não
apresenta, de uma maneira real, particularidades fonéticas vincadas. No
entanto, entre Coimbra e Figueira da Foz, aparecem pequenas diferenças na
pronúncia
|
CASTE
LO
BRAN
CO
E
PORTA
LEGRE
|
· A principal característica é a passagem de a a e:
geada
[zieda] alguidar > algueder
Embora existam
outras características, apenas destacamos estas duas:
· Passagem do ditongo ei a ê: Janêro
azête azêtona
· Passagem do i pretónico a
e: rebêra feguêra
|
M
E
R
I
D
I
O
N
A
L
|
· O ditongo ei reduz-se a e ou ê: rebêra
amêxa quêjêra pêxe
· O e final passa frequentemente a i:
seti noiti
· Passagem do i em sílaba inicial ou pretónica a e:
feguêra
· Síncope do i na terminação
─ia:
família > famila matéria
> matera
· No Algarve, ê é pronunciado è: [Èzébiu]
· Uso dos sufixos -um
e -ito: gosto > gostum gato > gatum canito
· O u tónico, no Algarve ocidental, é pronunciado
como o u em francês
ü:
[miula]
|
|
|
|
Figura 47:
Alguns traços gerais
dos falares portugueses (L.C.=Lindley
Cintra/P.B.=Paiva Boléo). |
|
Relativamente
ao
português do
Brasil, tendo em
conta a extensão vastíssima do território e a insuficiência de estudos de
carácter linguístico, torna-se difícil apresentar uma panorâmica
rigorosa. Há, no entanto, alguns trabalhos realizados que permitem ter uma
ideia da situação do português neste país. Dentre eles, destaca-se o de Antenor Nascentes, que propõe uma classificação com base nas diferenças de
pronúncia, tal como foi feito para o português europeu.
|
FALARES
|
DO PORTUGUÊS
DO BRASIL
|
|
Designação
|
Áreas
abrangidas
|
N
|
Amazónico
|
Pará, Amazonas, Acre e Noroeste de Goiás
|
O
R
T
E
|
Nordestino
|
Maranhão, Piauí, Ceará, Rio
Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Nordeste de Goiás
|
|
Baiano
|
Sergipe, Baía, Norte de Minas,
Centro de Goiás
|
S
|
Fluminense
|
Espírito Santo, Rio de Janeiro, Leste de Minas
|
U
|
Mineiro
|
Centro, Oeste e Leste de Minas
|
L
|
Sulista
|
São Paulo, Paraná, Stª Catarina, Rio Grande do Sul, Sul de
Minas, Sul de Goiás, Mato Grosso
|
Figura 48: Distribuição dos falares brasileiros, segundo Antenor Nascentes.
|
|
|
|
Figura 49:
Áreas linguísticas do Brasil,
segundo Antenor Nascentes.
|
|
Antenor
Nascentes distingue
duas grandes áreas: Norte e Sul. Nos falares do Norte, verifica-se a
abertura das vogais pretónicas em palavras que não sejam nem diminutivos nem advérbios
de modo em -mente, e uma "cadência" cantada na fala,
enquanto no Sul o ritmo da fala é mais "descansado", isto é, mais
lento.
Na
região do Norte, Antenor Nascentes considera a existência de dois falares, a
que ele dá a designação de "subfalares": a) o
Amazónico; b) o
Nordestino.
Na
região do Sul, considera quatro falares: a) o Baiano; b) o Fluminense; c) o Mineiro; d) o Sulista (Vide quadro da figura 9 e o mapa da figura
10).
Como
é lógico, a passagem de uma área para a outra é por vezes imperceptível,
havendo frequentemente fenómenos comuns em áreas totalmente afastadas umas das
outras. Outro facto interessante é a grande semelhança de fenómenos do português do
Brasil com o
português europeu. Muitos dos traços característicos de certas regiões de
Portugal vão surgir em diferentes pontos do Brasil na fala da camada
populacional menos culta. Por exemplo, o
ch africado, que era
característico do português arcaico e que ainda se conserva em certas regiões
de Portugal, surge também em várias zonas do Brasil, como
em São Paulo e
em Mato Grosso.
Mas
com esta ou com aquela variedade fonética, um facto é indiscutível: em qualquer
região que nos encontremos e à semelhança do que ocorre com o português
europeu, verifica-se uma grande unidade da língua portuguesa, não
existindo praticamente qualquer dificuldade na compreensão da língua[7].
Dissemos
anteriormente que em Portugal apenas existem quatro dialectos
─
Guadramilês, Rionorês, Mirandês e Barranquenho
─, todos eles
situados em zonas fronteiriças. No entanto, na região fronteiriça entre
Portugal e Espanha, ora do lado português, ora do espanhol, há toda uma série
de linguagens, que passaremos a referir, seguindo um itinerário de Norte para
Sul.
O FALAR DE
ERMISENDE
Na província espanhola de Zamora, vizinha do
concelho de Bragança, existe a
pequena aldeia de
Ermisende, que
pertenceu outrora a Portugal, tendo passado a território espanhol a partir de
1640. Os seus habitantes falam uma variedade de português transmontano, cada
vez mais influenciado pelo espanhol que, como língua oficial, se lhe vai
sobrepondo.
O RIONORÊS (ou RIODONORÊS)
Na fronteira luso-espanhola, abrangendo as
províncias de
Zamora (Espanha) e Bragança (Portugal),
fica uma aldeia dividida em dois bairros: um do lado português (Rio de Onor, Riodonor ou Rionor de
Portugal); o outro, do
lado espanhol (Riohonor). A fronteira
é marcada em alguns pontos pelo rio que dá o nome à aldeia, mas, na maior parte
das vezes, não existe qualquer linha de separação, sendo a fronteira apenas uma
linha imaginária, que passará pelo centro de uma rua, tendo os habitantes as
suas terras de lavoura tanto de um lado como do outro. Como as melhores
comunicações rodoviárias são as do lado português, a aldeia (que é uma só e não
duas, como pensou
Leite de
Vasconcelos) está hoje
mais influenciada pelo português, conservando, no entanto, alguns traços
fonéticos que atestam a sua origem leonesa: a conservação do l
e n intervocálicos; o artigo definido
masculino al com o feminino a;
etc..
GUADRAMILÊS
O guadramilês é falado em
Guadramil, pequena
aldeia portuguesa do distrito de Bragança, a um
quilómetro da fronteira. De origem leonesa, apresenta características muito
semelhantes às do rionorês.
MIRANDÊS
O mirandês abrange uma
área portuguesa relativamente
extensa entre o
rio
Douro e as
proximidades de
Angueiras, nos
concelhos de Miranda do
Douro e de
Vimioso[8]. Na Alta
Idade Média, entre os séculos XII e XV, esta zona conheceu um intenso
repovoamento leonês por parte dos mosteiros cistercienses de S. Martín de
Castanheda e de Santa Maria de
Moureruela. Devido ao
seu difícil acesso, constitui como que um enclave leonês em território
português. Apresenta características próprias da sua origem leonesa:
·
ditongação do e e o tónicos latinos;
· conservação do l e n intervocálico;
· palatalização das consoantes duplas latinas -ll- e -
nn -;
· artigos definidos mirandeses el, la, los, las;
etc...
SENDINÊS
Variedade do mirandês falada em Sendim, aldeia ao sul de Miranda do
Douro.
FALAR DE
VALVERDE DEL FRESNO,
ELJAS, S. MARTIN DE
TREVEJO
Embora situadas todas estas
povoações
em Espanha, numa região fronteiriça próxima da região portuguesa de
Riba-Côa, apresentam
uma variedade de
galaico-português com alguns
traços leoneses.
FALAR DE OLIVENÇA
Antiga povoação portuguesa hoje pertencente à Espanha, a sudoeste de Badajoz, conserva,
especialmente por parte das pessoas mais velhas, um português com
características alentejanas. As camadas mais jovens são normalmente bilingues.
BARRANQUENHO
Em Barrancos, vila
alentejana junto à
fronteira espanhola, fala-se um português com características alentejanas
mesclado de elementos fonéticos, lexicais e morfológicos próprios do espanhol.
OS CRIOULOS
Nos actuais
países africanos de língua portuguesa, além da língua oficial,
com algumas diferenças relativamente ao Português europeu pela introdução de
vocabulário proveniente das línguas nativas, existem as chamadas línguas crioulas, resultantes
de uma assimilação rudimentar, desprovida de formas gramaticais, da língua
dominante. Estas línguas crioulas existem não só em África, mas em vários
continentes por onde os portugueses andaram.
Acerca
do conceito de
crioulo, tem-se
escrito bastante e nem sempre da maneira mais acertada, variando as definições
com os autores. Uma panorâmica clara sobre os crioulos e sua formação é-nos
fornecida por
Serafim da
Silva Neto na obra já várias vezes por nós citada[9] e cuja
leitura recomendamos. No entanto, vejamos alguma coisa sobre o assunto.
Com
os descobrimentos, a partir de 1415 e nas décadas seguintes, os Portugueses
começaram a frequentar as costas africanas e a tomar contacto com as populações
nativas. A pouco e pouco, foram-se fundando praças portuguesas em vários
pontos da costa e, à sua volta, constituindo pequenas povoações.
Segundo Oliveira
Martins, são
constituídos diversos tipos de estabelecimentos ultramarinos
─
feitorias, fazendas e colónias
─ com
características específicas e com resultados linguísticos diferentes.
Enquanto
numa feitoria o contacto
com as populações nativas é esporádico e vacilante, proporcionando a formação
de uma língua franca, nas
fazendas o contacto
entre europeus e nativos é mais profundo e decisivo, proporcionando uma língua
de comunicação com uma vida própria, a que se dá o nome de crioulo. Nas colónias
o resultado linguístico é diferente. Nestas, como se procura constituir uma
segunda pátria, todo o património cultural e linguístico tem tendência a ser
transplantado e transmitido à semelhança do país de origem. Foi o que sucedeu,
por exemplo, com a romanização da Península Ibérica e com o resto da România,
onde o Latim se impôs como língua oficial, dando origem às diferentes línguas
latinas e levando ao desaparecimento das línguas anteriormente faladas nos
territórios ocupados.
No
caso intermédio
─ que é o das
fazendas
─ não se
procura transplantar o património cultural e linguístico do país de origem. Apenas
surge a necessidade de comunicação imediata e de forma bastante rudimentar
entre ocupantes e nativos, criando-se uma língua de comunicação
improvisada, que acaba por se transmitir entre os nativos de geração em
geração, como aconteceu com os
crioulos. São estes,
portanto, uma língua resultante da necessidade de comunicação imediata, que se
caracteriza pela sua simplicidade e rudeza, comparativamente à língua que lhe
deu origem.
O
carácter de rudeza e simplicidade não é obra exclusiva do indígena. Deve-se
em grande parte àqueles que vêm ocupar uma área anteriormente habitada por
povos por eles considerados como inferiores. Assim sendo, o povo
"superior" procura transmitir ao "inferior" a sua língua de
uma maneira simplificada, reduzida ao mínimo indispensável e liberta de todas
as possíveis dificuldades de natureza gramatical. Em vez de, por exemplo,
transmitir, relativamente aos verbos, seis pessoas gramaticais e um elevado
número de modos e de tempos, estes são pura e simplesmente reduzidos à forma do
infinitivo.
Como
refere o linguista
Hugo
Schuchardt, tanto o
senhor como os escravos tinham como principal objectivo o fazerem-se
compreender. O primeiro eliminou da língua europeia tudo quanto fosse difícil e
extraordinário; o segundo reteve dela tudo quanto considerou como
extraordinário e importante. E obteve-se uma língua intermédia.
Os
crioulos são,
portanto, e aproveitando a definição de Serafim da Silva
Neto[10], «falares
de emergência, com caracteres definidos e vida própria, que consistem na
deturpação e simplificação extrema de uma língua, quando imperfeitamente
transmitida e aprendida por gente de civilização inferior.»[11]
Os
crioulos de
origem portuguesa não se
limitam ao continente africano; encontram-se em várias regiões do Globo
por onde passaram os Portugueses, sendo, no entanto, os africanos os de maior
vitalidade. Segundo Celso Cunha e Lindley Cintra, os crioulos
podem-se repartir por três continentes: África, Ásia e Oceânia[12].
Na
África, temos a considerar os crioulos de
Cabo Verde (com duas
variedades), os do
Golfo da Guiné (S. Tomé,
Príncipe e Ano Bom) e os
continentais (Guiné-Bissau e Casamance, no Senegal).
Na
Ásia, subsistem apenas os crioulos de
Malaca (conhecidos
por várias designações como
papiá-cristão, malaqueiro,
malaquês, malaquenho, malaquense, etc.), de
Macau, do Sri-Lanka e ainda os de
Chaul, Korlai, Tellicherry, Cananor e Cochim, estes
últimos no território da União Indiana.
Na
Oceânia, sobrevive
ainda o crioulo de
Tuhu, localidade
próxima de Jacarta, na ilha de Java[13].
Os
textos complementares, presentes na Sugestão de trabalho, a seguir
apresentada, e extraídos de obras literárias bastante conhecidas, permitem-nos
ficar com uma ideia dos diferentes aspectos assumidos pela língua portuguesa em
diferentes regiões do mundo.
Sugestão de trabalho
13
Nas páginas
anteriores, teve a oportunidade
de ver que o Português é uma língua cuja área linguística é extremamente vasta,
ocupando praticamente os cinco continentes, mas sobretudo o europeu, o africano
e o americano, onde vive como língua oficial.
Na presente sugestão de trabalho, vai
ter oportunidade de contactar com quatro textos, que mostram a situação da
língua portuguesa em igual número de diferentes países: Brasil, Angola,
Moçambique e Cabo Verde.
Leia-os e procure realizar as
actividades sugeridas.
Texto 1:
A
LÍNGUA DO «P»
Maria
Aparecida
─
Cidinha, como a
chamavam em casa
─ era professora
de inglês. Nem rica nem pobre: remediada. Mas vestia-se com apuro. Parecia
rica. Até suas malas eram de boa qualidade.
Morava
em
Minas Gerais e iria de trem
para o Rio, onde passaria três dias, e em seguida tomaria o avião para Nova
Iorque.
Era
muito procurada como professora. Gostava da perfeição e era afetuosa, embora
severa. Queria aperfeiçoar-se nos Estados Unidos.
Tomou
o trem das sete horas para o Rio. Frio que fazia. Ela com casaco de camurça e
três maletas. O vagão estava vazio, só uma velhinha dormindo num canto sob o
seu xale.
Na
próxima estação subiram dois homens que se sentaram no banco em frente ao banco
de Cidinha. O trem em
marcha. Um homem era alto, magro, de bigodinho e olhar frio,
o outro era baixo, barrigudo e careca. Eles olharam para Cidinha. Esta desviou
o olhar, olhou pela janela do trem.
Havia
um mal-estar no vagão. Como se fizesse calor demais. A moça inquieta. Os
homens em alerta. Meu
Deus, pensou a moça, o que é que eles querem de mim? Não
tinha resposta. E ainda por cima era virgem. Por que, mas por que pensara na
própria virgindade?
Então
os dois homens começaram a falar um com o outro. No começo Cidinha não tendeu
palavra. Parecia brincadeira. Falavam depressa demais. E a linguagem pareceu-lhe
vagamente familiar. Que língua era aquela?
De
repente percebeu: eles falavam com perfeição a língua do «p». Assim:
─ Vopocêpê
reperaparopoupu napa mopoçapa boponipitapa?
─ Jápá vipi
tupudopo. Épé linpindapa. Espestapa nopo papapopo.
Queriam
dizer: você reparou na moça bonita? Já vi tudo. É linda. Está no papo.
Cidinha
fingiu não entender: entender seria perigoso para ela. A linguagem era aquela
que usava, quando criança, para se defender dos adultos. Os dois continuaram:
─ Queperopo
cupurrapar apa mopoçapa. Epe vopocepê?
─ Tampambempem. Vapaipi
serper nopo tupunepel.
Queriam
dizer que iam currá-la no túnel... O que fazer? Cidinha não sabia e
tremia de medo. Ela mal se conhecia. Aliás nunca se conhecera por dentro. Quanto
a conhecer os outros, aí então é que piorava. Me socorre, Virgem Maria! me
socorre! me socorre!
─ Sepe
repesispistirpir popodepemospo mapatarpar epelapa.
Se
resistisse podiam matá-la. Era assim então.
─ Compom umpum
pupunhalpal. Epe roupoubarpar epelapa.
Matá-la
com um punhal. E podiam roubá-la.
Como
lhes dizer que não era rica? que era frágil, qualquer gesto a mataria. Tirou um
cigarro da bolsa para fumar e acalmar-se. Não adiantou. Quando seria o
próximo túnel? Tinha que pensar depressa, depressa, depressa.
Então
pensou: se eu me fingir de prostituta, eles desistem, não gostam de vagabunda.
Então
levantou a saia, fez trejeitos sensuais
─ nem sabia que
sabia fazê-los, tão desconhecida ela era de si mesma
─ abriu os
botões do decote, deixou os seios à mostra. Os homens de súbito espantados:
─ Tápá
doipoidapa.
Está
doida, queriam dizer.
E
ela a se requebrar que nem sambista de morro. Tirou da bolsa o batom e pintou-se
exageradamente. E começou a cantarolar.
Então
os homens começaram a rir dela. Acharam graça na doideira de Cidinha. Esta desesperada.
E o túnel?
Apareceu
o bilheteiro. Viu tudo. Não disse nada. Mas foi ao maquinista e contou. Este
disse:
─ Vamos dar um
jeito, vou entregar ela pra polícia na primeira estação.
E
a próxima estação veio.
O
maquinista desceu, falou com um soldado por nome de José Lindalvo. José
Lindalvo não era de brincadeira. Subiu no vagão, viu Cidinha, agarrou-a
com brutalidade pelo braço, segurou como pôde as três maletas, e ambos
desceram.
Os
dois homens às gargalhadas.
Na
pequena estação pintada de azul e rosa estava uma jovem com uma maleta. Olhou
para Cidinha com desprezo. Subiu no trem e este partiu.
Cidinha
não sabia como se explicar ao polícia. A língua do «p» não tinha
explicação. Foi levada ao xadrez e lá fichada. Chamaram-lhe dos piores
nomes. E ficou na cela por três dias. Deixavam-na fumar. Fumava como uma
louca, tragando, pisando o cigarro no chão de cimento. Tinha uma barata gorda
se arrastando no chão.
Afinal
deixaram-na partir. Tomou o próximo trem para o Rio. Tinha lavado a cara,
não era mais prostituta. O que a preocupava era o seguinte: quando os dois
haviam falado em currá-la, tinha tido vontade de ser currada. Era uma
descarada. Epe sopoupu upumapa puputapa. Era o que descobrira. Cabisbaixa.
Chegou
ao Rio exausta. Foi para um hotel barato. Viu logo que havia perdido o avião. No
aeroporto comprou a passagem.
E
andava pelas ruas de Copacabana, desgraçada ela, desgraçada Copacabana.
Pois
foi na esquina da rua Figueiredo Magalhães que viu a banca de jornal. E
pendurado ali o jornal O DIA. Não saberia dizer por que comprou.
Em
manchete negra estava escrito: "Moça currada e assassinada no trem."
Tremeu
toda. Acontecera, então. E com a moça que a desprezara.
Pôs-se
a chorar na rua. Jogou fora o maldito jornal. Não queria saber dos detalhes. Pensou:
─ Épé. Opo
despestipinopo épé impimplaplacápávelpel.
O
destino é implacável.
CLARICE
LISPECTOR, A
Via Crucis do
Corpo.
1
- Após a leitura
do texto 1, procure responder (mentalmente ou por escrito) às questões:
1.1 - O texto, embora curto, apresenta
uma história completa, caracterizando-se
pela sua grande economia a nível das personagens e do tempo de acção. Classifique-o
quanto ao género literário.
1.2 - Divida o texto em partes, tendo
em conta a estrutura: introdução, desenvolvimento
e conclusão.
1.2.1
-
Na divisão anterior, a parte central
─ o desenvolvimento
─ ocupa praticamente
todo o texto, desde o quarto parágrafo até à conclusão, constituída pelos dois
últimos parágrafos «Pôs-se a chorar na rua ... O destino é implacável». É pois uma parte
bastante extensa, que pode ser subdividida
em momentos. Elabore
um esquema que permita pôr em destaque o desenrolar dos acontecimentos segundo
uma sequência cronológica.
1.3 - É também possível efectuar uma
desmontagem do texto tendo em conta
os locais de acção. Com base nestes, verifique como dividiria o texto em
partes.
2 - Efectue
o resumo do conto em cerca de dez linhas, no máximo.
3 - Efectue o levantamento dos
traços linguísticos característicos do português
do Brasil, atendendo aos seguintes ítens:
3.1 - a nível lexical;
3.2 - a nível da construção
frásica.
Texto 2:
O
calor começava já a fugir com medo da noite que vinha e um vento, guardando o
fresco da chuva da manhã, batia o vestido de Delfina de encontro às pernas
fortes, ao corpo rijo dela. O capim verde convidava de todos os lados e,
molhado como estava, punha cócegas nos pés de Zeca Santos, metendo-se nos
sapatos rotos. Ia muito calado, não sabia mais o que dizer a Delfina, tudo
quanto estava inventar debaixo do sape-sape, essas palavras doces que
nasciam à toa no calor das farras, agora ali não aceitavam sair. Pelo carreiro
acima, devagar, sentia as cigarras a cantar nos troncos das acácias, o vento a
dançar os ramos cheios de flores, as folhas murmurando uma conversa parecia de
namorados, todo o barulho das picas, dos pardais, dos plim-plaus
aproveitando os bichos das chuvas. Delfina vinha com um pequeno sorriso
escondido, de fazer-pouco, e foi ela quem adiantou interromper esse
silêncio:
─ Ená! Então
você me dá encontro e não dizes nada?
─ Oh!... O que eu quero falar você já sabe, Fina!
─ Ih!? Já sei?
Quando é que falaste? E trabalho, já arranjaste?
Sério,
com esse assunto Zeca ficou calado. Delfina sempre lhe falava esses casos do
trabalho e mesmo quando ele queria fazer-pouco o João Rosa, cafofo e mais
não sei quê, a rapariga refilava, assanhada:
─ Você tens é
raiva! O rapaz trabalha, tem seu carro dele, e fala-me mesmo para casar
comigo...
Gostava
muito de Delfina, queria mesmo ela sabia todas as coisas da vida dele, mas como
ia-lhe contar então o que tinha sucedido nesses dias de procura de
trabalho? Ou mesmo falar esse trabalho de carregar cimento no porto, serviço
assim só de monangamba? Ela não ia aceitar, ia-lhe deixar naquela hora,
naquele sítio, no meio do caminho das barrocas. Também dizer não tinha
trabalho, não encontrava serviço, era pior. Delfina continuava falar, sentia-se
mesmo na voz dela era só para fazer raiva, dizia João Rosa já tinha-lhe
prometido falar no patrão para lhe mudarem no escritório; que ela devia mas é
ir mesmo na escola da noite; que, depois, queria se casar com ela, se ia
aceitar namoro dele e mais outras conversas, só para irritar Zeca Santos. Essas
palavras magoavam-lhe lá dentro, sentia tristeza, vergonha dele mesmo, mas
também sorte não tinha, gostava a pequena, o pior é que trabalho de todos os
dias custa encontrar. Pensou a tarde já estava a ser boa com esse encontro, pena
Delfina estar lhe xingar assim. Medroso, agarrou-lhe no braço e
baixando a voz falou como ele sabia:
─ Ouve então,
Fininha. Você esqueceste o sábado? Aquilo que disseste, enh? Para quê você está
se zangar? E depois, falar assim à toa nesse sungadibengo de Rosa, para quê? Eu
não fico raivado, qu' é que você pensa? Agora tenho o meu emprego aí com
Maneco, na estação de serviço... E depois, você sabe, você viu no baile,
Marcelina anda-me chatear...
─ Ih! Essa
sonsa?! Sakuama! Já viram? Tem nada de cheirar?...
Calou-se
logo, Delfina. O sorriso de Zeca Santos estava na frente dela, um sorriso ela
gostava e tinha raiva ao mesmo tempo, ficava parecia era cara de gato quando
anda brincar com o rato...
Devagar,
com toda a técnica ele tinha estudado, desviou-lhe do caminho onde iam,
atravessaram um bocado de capim, borboletas e quijongos saltaram para todos os
lados. Sentados debaixo de uma grande acácia, vermelha de flores, Zeca puxou
Delfina na cintura, ...
LUANDINO VIEIRA,
Luuanda, 1972.
1 - Após a leitura do texto 2,
responda (mentalmente ou por escrito) às
questões:
1.1 - Quais os intervenientes na acção
do texto?
1.2 - Qual o local de acção?
1.3 - Qual o assunto do texto?
2 - Preste atenção às frases ou
vocábulos a seguir transcritos e destacados
e comente-os tendo em conta as normas linguísticas correntes da língua
portuguesa:
2.1 - «tudo quanto estava inventar
debaixo do sape-sape...»
2.2 - «O vento a dançar os ramos
cheios de flores.»
2.3 - «Então você me dá encontro
e não dizes nada?»
2.4 - «Você tens é raiva!»
2.5 - «...tem seu carro dele...»
2.6 - «...mas como ia-lhe
contar...»
2.7 - «Ela não ia aceitar, ia-lhe
deixar naquela hora...»
2.8 - «Também dizer não tinha
trabalho, não encontrava serviço ...»
2.9 - «...dizia João Rosa já tinha-lhe
prometido falar no patrão para
lhe
mudarem no escritório.»
2.10
- «Queria se casar com ela.»
2.11
- «Pensava a tarde já estava a ser boa com esse encontro...»
2.12 - «Você esqueceste
o Sábado?
2.13
- «Eu não fico raivado...»
2.14
- «...Marcelina anda-me chatear...»
Texto 3:
O RIO,
ALÉM DA CURVA
Cito o jornal
"Notícias", de Maputo, do dia 19 de Fevereiro. Rezava assim: "Um
hipopótamo invadiu e destruiu o mobiliário do Centro de Alfabetização e de
Corte e Costura do bairro da Munhava, deixando perturbados os residentes do
mais populoso bairro da capital de Sofala. (...) O guarda-nocturno daquele
centro disse que o animal não era um vulgar hipopótamo, mas um exemplar muito
estranho que arrombou a porta da escola, introduziu-se na sala de aulas e
começou a destruir a mobília. (...) Circula entre a população o rumor de que o
hipopótamo é, afinal, um velho cidadão que perdeu a vida na zona de onde veio o
animal e que o referido velho vinha anunciar que a cidade ficará privada de
chuvas e que graves doenças matarão muita gente. O facto coincide com o surto
de epidemias que grassa naquela região urbana."
O
jornal não versou o restante sucedido, após o desfecho. Acrescento aqui as
versões dos que testemunharam em imperfeito juízo, gente versada em nocturnas
aparições. Felizmente, no actual mundo, não há fontes indignas de crédito.
Jordão
Qualquer acordou sobressaltado: que barulhos lhe chegavam lá da escola? Ficou
inesperado, abstenso. E se decidiu ficar, a ver as consequências de nada fazer.
Mas a barulheira aumentava de volume. Na escola alguém desbotava a manta, em
assanhos de zaragatunagem. Ladrões, seriam. Mas assim, naquele descaramento?
Estariam a tirar medidas da sua coragem? Jordão puxou a arma e se aproximou do
edifício da escola.
Calcanhava-se, os pés a
contradizer a marcha.
O tamanho dos
ruídos era coisa de afugentar atrevido e acobardar herói. Mas o medo é um rio
que se atravessa molhado. Enquanto se aproximava Jordão apelava para reforços
dos céus: "Que os xicuembos me segurem!" A lua iluminava o caminho. O
luar é bom mas não chega para tirar o espinho do pé. É assim que Jordão não
pode autenticar o tudo que viu, as coisas que se seguiram e que lhe couberam
mais nos olhos que no pensamento. Pois quando ele espreitou na janela viu o
enorme bicho mastigando a máquina de costura. A enormeza de tal mamífero nunca
lhe tinha sido vista. Não era um simples, desses. Se diria ser um hiperpótamo. O
bichorão descobriu o milícia na moldura da janela. Fixou o homem com os seus
olhos ensonados, postos no sótão da testa. Depois, voltou a trincar a mobília.
Prosseguia assim o piquenique do pícnico.
Pela
cabeça de Jordão Qualquer passaram ideias, repentinas como pássaros. Como
chegara ali aquele mpfuvo? Será que viera buscar sabedoria, aprender as
escritas na ânsia de transitar de artiodáctilo para artiodactilógrafo? Ou vinha
se inscrever no corte e costura? Não, não podia. Os dedos dele eram mais
desengenhosos que asas de panela. Naqueles segundos de hesitação, o miliciano
lembrou o antigamente. Os caçadores de mpfuvo, no cumprimento da tradição, não
partiam para o rio sem a bênção dos vapores mágicos.
Marido
e mulher se enfumavam daquele remédio para ganharem as boas sortes. Quando o
caçador espetava a primeira azagaia na presa um mensageiro ia à aldeia avisar a
esposa. A partir de então a mulher estava proibida de sair de casa. Acendia um
lume e ficava a guardar a fogueirinha, sem comer e sem beber. Se ela
desobedecesse, o seu marido sofreria as raivas do hipopótamo: a vítima virava
caçador.
Estar
assim em clausura era coisa que também prendia a alma do bicho, impedindo o
paquiderme de fugir do seu espaço fatal. O encerramento da mulher só terminava
quando, vindas lá do rio, se escutavam as alegrias da consumação da caça. Na
povoação todos se alegravam menos ele, Jordão Qualquer. As azagaias pareciam
sempre ter ferido sua alma, lá na extensão do rio. Mas agora, na janela da
escolinha, não são as canções de júbilo mas a zanga do bicho que desperta o
miliciano.
De
facto, no real presente, o hipopótamo se zanga com o cenário. Esquinas, portas,
paredes: essa geografia ele desconhecia. E todo se arreganha, descortina os
dentes. O miliciano definha de medo, só a arma lhe dá tamanho. Súbito, sem
pensar, Jordão dispara. Os tiros saltam de rajada, certeiros. O nariz estando
em frente da visão nunca estorva os olhos. O bicho estremurchou, em pleno
tamanho, todo derrubado. O cor-de-rosa da barriga lhe dava uma aparência
recém-nascida. No último instante, o moribundo dedicou ao caçador um olhar
cheio de ternura. Como se houvesse não ressentimento mas gratidão. Seria amor à
última vista?
Jordão
se lembrou como, em criança, ele se enternecia dos mpfuvos, seus desajeitosos
modos: tanta nuca para nenhum pescoço! Tão gordos que pareciam aptos para toda
a dança. Porque aqueles desastrados bichos, tão pouco terrestres, lhe eram
afinal irmãos: ambos não tinham lugar entre a gente. Jordão sonhava com os
animais, pareciam canoas viradas do avesso na lenta superfície do rio. E ele,
no sonho, montava-lhes o dorso e subia o rio, além da curva. Esse era o
devaneio maior: descobrir o adiante da humana paisagem, encontrar o lugar para
além de todos os lugares.
Mas
agora, de arma na mão, já lhe apetecia ser patrão de outras vidas, espezinhar
as restantes criaturas, subitamente inferiores. Lhe subiu uma repentina raiva
de, no passado, se ter sentido irmão daquelas animálias. A prepotência lhe
vinha da espingarda ou a idade lhe matara a fantasia? Ou será que todo o adulto
se adultera?
Alertados
pelos tiros chegaram os muitos curiosos. Começaram os ditos e não-ditos,
choveram propérios e impropérios:
─ Mataste o
mpfuvo? Não sabes quem era esse animal?
─ Vais ver o
castigo que vamos ser dados por culpa sua...
─ Nem espere por
amanhã. Você se vai arrepender desse seu dedo ter gatilhado.
E
foram-se. Sentado no último degrau da escola, Jordão ficou calado com os seus
botões. O pensamento lhe tinha emagrecido. Que poderia fazer? Acusavam-no de
ter morto um velho transfigurado. Como podia adivinhar sobre a verdade do
hipopótamo, suas mensageiras funções? Mergulhou a cabeça entre os braços e
assim ficou, mais circunflexo que o acento. Foi quando um safaninho o
despertou. Alguém lhe tocava as costas em jeito de lhe querer despertar.
Olhou
para trás: um arrepio lhe sacudiu o todo corpo. Era um pequenino mpfuvo,
filhote da hipopótama. A cria: o que ela queria? Procurava o amparo, o abrigo
de um maior ser. Chafurdou o sovaco do miliciano como se lhe quisesse despertar
um imaginário seio. Depois, se juntou ao corpanzil da mãe e grunhiu para
convocar sua atenção. Jordão olhou o bicharoquinho, aquela boca de não caber no
focinho.
Então, se levantou e laçou o
órfão nos braços.
O pequeno se
agitava, aumentando-se no peso. Jordão tropeçava, quase deixando cair a carga,
voltava a gaguejar os passos pela lama das margens. Quando chegou ao rio, o
hipopotaminho se empinou em enorme festa e se juntou à familiar manada. Enquanto
contemplava a cena, Jordão começou a insuportar o peso da arma. O ombro lhe
adoecia da tal carga. Em gesto brusco, como se despedisse de uma parte de si,
lançou a espingarda no rio. Foi nesse momento que escutou a humana voz vinda do
pequenote filhote que salvara:
─ Sobe naquela
canoa virada.
Canoa?
Aquele espesso volume acima da superfície? A voz repetia o convite: "Vá,
sobe que eu te mostro o rio além da curva." Então, já tornado encantável,
o desarmado Jordão subiu o dorso húmido do sonho e extravagou-se pelo avesso da
corrente.
MIA COUTO (escritor
moçambicano), O
rio, além da
curva. In: jornal
"PÚBLICO", Ano IV, nº 1104, 14 de Março de 1993, pág. 40.
1
- Durante a leitura do texto, terá
certamente notado algumas divergências
relativamente à normas vigentes
em Portugal. Além de algum vocabulário pitoresco e
novo, criado pelo Autor, terá encontrado várias diferenças, quer a nível
morfológico e sintáctico, quer das formas de tratamento:
1.1 - Efectue o
levantamento de todas as expressões que revelam uma construção sintáctica
diferente;
1.2 - Reescreva-as de acordo com as normas
correntes em Portugal.
Texto 4:
HORA DI BAI[14]
O veleiro
balanceava ao sabor das ondas. Quem o visse à distância julgá-lo-ia
um belo barco de recreio, garbosamente galgando a planura azul e mansa. Para os
sobreviventes da estiagem não passava de uma dor que se prolongava na violência
do mar encrespado. E quando uma vaga maior, uma vaga de respeito fez gingar o
veleiro de bombordo a estibordo, Chico Afonso, o moço do barco, teve um gracejo
sem eco em almas tão desconfortadas.
"Eh,
gente, mar está a conversar com vocês. Isto é fala do mar. Mar é assim modo
gente. Mar conversa, mar chora, mar dança. Mar está dançando samba, hem! Samba
da vida o amor é uma ilusão, lá, lá, rá, lá, lá. Vocês não gostam de sambas?
Gostam de mornas? Sim senhor.
Chico vai cantar uma morninha para vocês. Morninha sabe."
O moço pegou no
violão e lançando a vista sobre o mar começou a trautear mornas e um popular
troveiro. Havia porém um desencontro entre as canções que ele entoava e o
sofrimento que a seus pés se estendia. Só nhô Eugénio sabia pegar na tragédia do povo. Ninguém como ele fora
tão fundo no coração da gente. Nem Bèléza, nem Mochinho do Monte. Só agora,
larga experiência da vida alcançada
─ e mais; só
neste momento, único da sua vida de homem do mar, ele o sentia deveras.
Semicerrando
os olhos, a canção desprendia-se-lhe dos lábios sazonada.
Ó
mar eterno sem fundo
sem
fim
Ó mar das túrbidas vagas
Ó
mar
Suspende
a zanga um momento
escuta
A voz do meu sofrimento
na luta
Aquela
moça do canto ergueu-se e veio sentar-se junto dele a acompanhá-lo
em surdina.
"Morna
de nhô Eugénio é mesmo sabe, moço."
"Sabe
de-mundo morna de Eugénio cantada cá pelo Chico."
A
voz de Chico era a voz do navio mártir. A moça ouvia-o e nele tudo lhe
fazia adivinhar São Vicente. A vida lá, uma tentação. Mornas, bailes, rapazes,
farras e comida. E sentiu reviver a alegria dos tempos idos. Apeteceu-lhe
beber água fresca de coco amadurecido, nem sabia porquê.
Inesperadamente,
Chico, interrompendo a morna, disse-lhe, ainda de violão cruzado ao
peito:
"Melhor
cantador de morna em Cabo
Verde é Mochinho do Monte."
"Uáh,
nem nada."
"Bèléza?"
"Uah,
nem nada."
Menina
atrevida
─ pensou Chico
Afonso, olhando-a com os olhos malandros.
"Teu nome
como
é?"
"Nita.
Nita Mendonça."
"Em São Vicente vou-te
procurar."
"Ouve
uma coisa. Melhor tocador de morna
em Cabo Verde, fica sabendo, é Salibânia. Nunca
ouviste cantar Salibânia?"
"Não.
Já não é do meu tempo."
"Pois
Salibânia, moço, fazia chorar a gente. Morreu cega, coitada. Salibânia parecia
mesmo homem, ouviste? Corpo de homem, mãos de homem, fazendo briga como homem. Mulher-macho,
de verdade. Mas a cantar morna, moço, (Chico reparou-lhe nos dentes muito
brancos e nos olhos azuis), nem Bèléza, nem Mochinho do Monte, ninguém, fica
sabendo. Depois fizeram morna de Salibânia, tu sabes."
E
de súbito pediu-lhe:
"Moço,
canta Hora di bai."
Chico
deitou um olhar busado à moça e, de seu modo trocista, deu-lhe vontade de
a engonear:
"Milho
alheado é sabe e doce / quanto mais com chicharrim."
"Deixa
de disparate. Canta Hora di bai."
"Hora
di bai? Bô crê ba comigo?"
"Não
sejas disparatente."
"Bô
é tracolança, menina."
Tracolança
podia ser, mas não gostava que lho dissessem. Ia retirar-se.
"Ouve
uma coisa. Fica. Eu canto Hora di bai."
Despreocupadamente
começou a dedilhar o violão.
MANUEL FERREIRA, Hora di
Bai, 1962.
1 - Após a leitura do texto 4,
responda às questões:
1.1 - Identifique os intervenientes na
acção do texto.
1.2
- Destaque as
partes correspondentes ao narrador das correspondentes à intervenção das
personagens.
1.2.1
- Determine em que se distinguem do ponto de vista linguístico.
1.3
-Destaque, na
fala das personagens, as expressões ou palavras que são características da
língua de Cabo Verde.
[1]
– A título exemplificativo, transcrevemos algumas
passagens do artigo de MANUEL DE PAIVA BOLÉO, Unidade e variedade da língua
portuguesa:
«– O português é uma das grandes
línguas de civilização, entendendo eu por esta expressão a língua falada por um
povo que levou a outras regiões do globo ou a outros povos o seu tipo humano e
cultural. "Língua de civilização" é, para mim, coisa diferente de
"Kultursprache" na terminologia alemã pois que este vocábulo terá de
ser traduzido em português por "língua literária"....)
Se pusermos de lado os crioulos
propriamente ditos (por exemplo, o de Cabo Verde) e que têm características
próprias, o que surpreende e causa admiração nesta área tão extensa do
português [aproximadamente 14 600 000 Km2, incluindo o Brasil], é a sua grande
unidade. Ao passo que na Espanha, França, Itália, Inglaterra e Alemanha há
vários dialectos bem diferenciados, em Portugal só há um que mereça esse nome
─ o mirandês, que foi estudado, principalmente, por Leite
de Vasconcelos, antigo mestre da Faculdade de Letras de Lisboa. (Pela área
restrita em que se falam, não se torna necessário mencionar expressamente os
dialectos guadramilês, rionorês e sendinês, de que se ocupou igualmente o
citado filólogo). (...)
Essa unidade do português torna-se
ainda mais flagrante se compararmos as diferenças, relativamente pequenas, que
existem entre o português europeu e o português do Brasil (...)
São várias as causas desta
homogeneidade excepcional da língua portuguesa, homogeneidade que, com meu
conhecimento, não tem paralelo em qualquer outra língua da Europa e que tanto
contribui para a sua vitalidade. Apontarei somente as causas que me parecem
mais importantes. Em primeiro lugar, o ser Portugal um dos mais velhos países
da Europa. As suas fronteiras actuais, com ligeiras diferenças, são as mesmas
que já existiam no fim do século XIII. Em segundo lugar, os elementos
estrangeiros que, desde então e ainda hoje, se integraram na sua população,
constituem uma ínfima minoria.
Segundo o censo da população de
1950, 99,75 % eram portugueses e só 0,25 % eram estrangeiros.
Além das causas apontadas, há ainda
uma terceira, que contribui para essa homogeneidade e para o carácter bastante
conservador do português: o ser uma língua da periferia, menos sujeita,
portanto, a influências estranhas. (...)
Mas não obstante esta unidade e
homogeneidade excepcionais, a língua portuguesa apresenta uma riqueza e
variedade surpreendentes, tanto no que toca ao léxico como no que respeita às
linguagens que se podem notar dentro da língua comum... (...)»
in:
BOLÉO, M. de Paiva
─ , Unidade e variedade da língua portuguesa, in: Estudos
de Linguística Portuguesa e Românica, Coimbra, Vol. I, tomo I, 1974,
pp. 253-287.
[2] – «É, pois, recente a concepção de língua como
instrumento de comunicação social, maleável e diversificado em todos os seus
aspectos, meio de expressão de indivíduos que vivem em sociedades também
diversificadas social, cultural e geograficamente. Nesse sentido, uma língua
histórica não é um sistema linguístico unitário, mas um conjunto de sistemas
linguísticos, isto é, um DIASSISTEMA, no qual se interrelacionam
diversos sistemas e subsistemas. Daí o estudo de uma língua revestir-se
de extrema complexidade, não podendo prescindir de uma delimitação precisa dos
factos analisados para controle das variáveis que actuam, em todos os níveis,
nos diversos eixos de diferenciação. A variação sistemática está, hoje,
incorporada à teoria e à descrição da língua.
Em princípio, uma língua apresenta,
pelo menos, três tipos de diferenças internas, que podem ser mais ou menos
profundas:
· 1º) -
diferenças no espaço geográfico, ou VARIAÇÕES DIATÓPICAS (falares
locais, variantes regionais e, até, intercontinentais);
· 2º) -
diferenças entre as camadas socioculturais, ou VARIAÇÕES DIASTRÁTICAS
(nível culto, língua padrão, nível popular, etc.);
· 3º) -
diferenças entre os tipos de modalidade expressiva, ou VARIAÇÕES DIAFÁSICAS
(língua falada, língua escrita, língua literária, linguagens especiais,
linguagem dos homens, linguagem das mulheres, etc.).
A partir da nova concepção da língua
como diassistema, tornou-se possível o esclarecimento de numerosos casos
de polimorfismo, de pluralidade de normas e de toda a inter-relação dos
factores geográficos, históricos, sociais, psicológicos que actuam no complexo
operar de uma língua e orientam a sua deriva.
Condicionada de forma consistente
dentro de cada grupo social e parte integrante da competência linguística dos
seus membros, a variação é, pois, inerente ao sistema da língua e ocorre em
todos os níveis: fonético, fonológico, morfológico, sintáctico, etc.. E essa
multiplicidade de realizações do sistema em nada prejudica as suas condições
funcionais.
Todas as variedades linguísticas são
estruturadas, e correspondem a sistemas e sub-sistemas adequados às
necessidades dos seus usuários. Mas o facto de estar a língua fortemente ligada
à estrutura social e aos sistemas de valores da sociedade conduz a uma
avaliação distinta das características das suas diversas modalidades
diatópicas, diastráticas e diafásicas. A língua padrão, por exemplo, embora
seja uma entre as muitas variedades de um idioma, é sempre a mais prestigiosa,
porque actua como modelo, como norma, como ideal linguístico de uma comunidade.
Do valor normativo decorre a sua função coercitiva sobre as outras variedades,
com o que se torna uma ponderável força contrária à variação.
Numa língua existe, pois, ao lado da
força centrífuga da inovação, a força centrípeta da conservação, que, contra-regrando
a primeira, garante a superior unidade de um idioma como o português, falado
por povos que se distribuem pelos cinco continentes.»
In: CELSO CUNHA e LINDLEY CINTRA, Nova
Gramática do Português Contemporâneo, 2ª edição, Edições Sá da Costa,
Lisboa, 1984, pp. 3-4
[3]
– MAROUZEAU, J.
─ , Lexique de la terminologie linguistique, 2ª
ed., Paris, 1943.
[4] – O vocábulo dialecto é proveniente do grego dialektos
(διάλεκτoς), que designava os diferentes sistemas utilizados em toda a Grécia,
cada um para um género literário determinado e considerados como a língua duma
região da Grécia.
[5] – Embora na gramática anteriormente citada de Celso
Cunha e Lindley Cintra se fale de dialectos, será necessário notar que a
designação é imprópria, o que aliás se deduz da indicação dos próprios, quando
afirmam que empregam «o termo DIALECTO no sentido de variedade regional da
língua, não importando o seu maior ou menor distanciamento com referência à
língua padrão» (pp. 4-5 da op.
cit.). Assim sendo, dialecto é inadequadamente utilizado na acepção de falar.
[6] – De entre as três propostas de classificação relativas
aos falares de Portugal Continental, optámos pela de MANUEL DE PAIVA BOLÉO e
MARIA HELENA SANTOS SILVA, em O mapa dos dialectos e falares de Portugal
Continental, publicado na obra Estudos de Linguística Portuguesa e
Românica, vol. I, tomo I, Coimbra, 1974, pp. 310-351.
As outras duas propostas de
classificação foram feitas respectivamente por Leite de Vasconcelos, baseada na
divisão de Portugal em províncias (VASCONCELOS, J. Leite de - Esquisse d'une dialectologie portugaise, Paris-Lisboa, Aillaud, 1901) e
LUÍS FILIPE LINDLEY CINTRA (Boletim de Filologia, Lisboa,
1971). No trabalho de Paiva Boléo e M. H. Santos Silva, além do mapa dos
falares de Portugal Continental, por eles elaborado, encontra-se uma
reprodução do mapa de Leite de Vasconcelos. Embora em tamanho reduzido,
apresentamos uma adaptação do mapa elaborado em 1958 por Maria Helena Santos
Silva, sob a orientação e com a colaboração de Manuel de Paiva Boléo. Para uma
leitura pormenorizada dos dois mapas referidos, aconselhamos a consulta da obra
indicada.
[7] – Embora existam algumas diferenças entre o português do
Brasil e o de Portugal, transcrevemos apenas as principais divergências a nível
fonético, morfológico e sintáctico, lexical e das formas de tratamento:
I - A nível fonético:
· Palatalização de
t
e d antes de
i ou e
postónico:
tchio; dchirector;
pedchi
· Semivocalização do -l em final de sílaba e de palavra:
Brasiu, animau, sautar.
· Acrescentamento
de i (epêntese) entre duas consoantes:
pineu; abisurdo
(absurdo); capitura (captura)
II - A nível morfológico e sintáctico:
· Utilização e
colocação das formas casuais dos pronomes pessoais (formas de sujeito e de
complemento directo ou indirecto) em posições diferentes do usual em Portugal:
Exs. Eu vi ele bater no minino.
Me
diga as horas.
Ela
se levantou cedchinho.
· Construção
perifrástica com gerúndio:
Está fazendo um calor
danado
· Uso de
preposições: Ele foi no cineminha. Vamos num?
· Emprego de ter
e haver de maneira diferente do português europeu:
Não tem
gentchi naquela casa.
III - A nível das formas de tratamento:
· Uso de você,
familiar (à excepção do Maranhão e Rio Grande do Sul, onde se usa tu)
e o senhor, a senhora como forma de deferência.
IV - A nível lexical:
· Existência de
numerosos vocábulos de origem tupi (guri
- rapaz; capim - capim; pipoca - milho; mingau - papa) e africana (caçula - filho mais novo; moleque - miúdo; senzala -
habitação de escravos.
Para outras informações mais
pormenorizadas, aconselha-se a consulta de MARIA HELENA MIRA MATEUS e
outros, Gramática da Língua Portuguesa, 2ª edição, Lisboa, Editorial
Caminho, pp. 32-33.
Para
ficarmos com uma ideia do Português do Brasil, aliás ouvido constantemente em
Portugal através do elevado número de telenovelas brasileiras, que entram quase
a todas as horas do dia nas nossas casas, através do pequeno ecrã televisivo, e
também do português falado em países africanos de língua oficial portuguesa,
leiam-se os textos complementares presentes neste mesmo capítulo, na Sugestão
de trabalho, extraídos de obras conhecidas da literatura brasileira e
africana.
[8] – O mirandês foi estudado pela primeira vez por Leite de
Vasconcelos. A esta região parece ter-se deslocado por cinco dias em Agosto de
1883, para efectuar, sob o sol escaldante desse mês, o estudo do dialecto
mirandês.
Leite de Vasconcelos
─ e aproveitando as informações de Amândio dos Anjos
Gomes, nas Actas das 1ªs Jornadas de Língua e Cultura Mirandesa
─ constatou que o dialecto se transmitiu por via oral, de
geração em geração, tendo resistido até aos nossos dias. É hoje nas escolas do
concelho de Miranda do Douro uma disciplina de opção, facto que permitirá,
certamente, fazer com que este dialecto se conserve para as gerações vindouras.
Leiamos um excerto do texto de
Domingos Abílio Gomes Raposo, Vitalidade, Valor e Estudo da Língua Mirandesa:
«Confinada entre o Português e o
Espanhol, não se deixou imiscuir por estas embora, como é normal, tenha
recebido de ambas, por exemplo, elementos lexicais, em especial do Português. Exemplos:
assobiar, belo, amêixoa, baleia, do Português; cerilha, triteiro,
duana, do Espanhol.
A influência do Português é mais
forte do que a do Espanhol, pelo facto de o Mirandês se falar em território de
Portugal.
Fruto de factores atrás descritos,
algumas pessoas, sobretudo jovens, deixam de falar a língua de seus pais e
avós, embora utilizem o sotaque e alguns vocábulos mirandeses.
Não obstante, a maioria dos
mirandeses falam-na entre si desinibidamente e usam-na diariamente, mas,
perante pessoas estranhas, evitam falá-la e já desde tempos antigos.
(...) Além de ser uma língua
perfeita, com todos os elementos que uma língua pode ter, quer quanto à
fonética, quer quanto à morfologia e à sintaxe (...), é um legado riquíssimo
dos nossos ascendentes com oito séculos de existência (...)»
Das mesmas actas, extraímos um
pequeno texto em prosa como exemplo do dialecto mirandês.
DEL GALHO Y DE
LA RAPOSA
Era üa beç ü galho que quijo passar la nuite nü galho dü
sobreiro, a la borda de ü camino, alhá pa Funte Lhadröñ.
Quando chigou la purmanhana, passou
alhi üa raposa, pul camino.
La raposa tine fame e andaba a saber
del q'habie de cumer.
Öubiu l galho a cantar no sobreiro e fui-s'alhá. I
ãmpeçórü antöü a tocar a missa üas campanas, após q'ã Funte Lhadröñ, ã Mora, o
ã Palaçolo.
Stando a tocar a missa, diç la
raposa pal galho:
─ A cumpadre galho, antöün que stais ende a fazer?
─ Oh! pus stöu eiqui a ber quië passa.
─ Bós nü oubis; diç la raposa, stã a tocar a missa, home,
andai daí!... Abeixai dende i bamos a ëilha!...
I arresponde el galho:
─ Pus si, comadre raposa, asp'rai ü pouquito, i an quanto
yöu abaixo, estã a chigar els perricos del cura, que bénen yá eili, e apuis
bamos todos!...
─ Ah cumpadre galho!
─ arresponde la raposa, mui assustada i ampeçando a currer
─ deixai-me que tengo muita priessa, böu-me yöu sola de
lantre, que yá stá l cura a spera, de balde, até lhougo!...
I la raposa scapou-se a fugir, que
nië siete galgos l'agarrában.
(Recolhido por António
Maria Mourinho em 1947).
Vide: Actas das 1ªs Jornadas de Língua e Cultura
Mirandesa, Miranda do Douro, 1987.
[9] – SERAFIM DA SILVA NETO, História da Língua
Portuguesa, Col. Linguagem, nº 11, 3ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Presença,
1979, págs. 430-442.
[10] – SERAFIM DA SILVA NETO, op. cit., pág. 436.
[11] – Elementos essenciais do crioulo, segundo
Serafim da Silva Neto:
«Esclarecidos assim os factos,
vejamos como se pode estabelecer uma definição para esse tipo de falares.
Proporemos a seguinte definição:
Os crioulos são falares de emergência, com caracteres definidos e
vida própria, que consistem na deturpação e simplificação extrema de uma
língua, quando imperfeitamente transmitida e aprendida por gente de civilização
inferior.
Aí estão os elementos essenciais:
a) o crioulo é um falar transitório;
b) o crioulo apresenta caracteres
definidos, que se deixam prender a um fio condutor;
c) o crioulo tem vida própria: ele é
o meio de expressão de que dispõe o grupo;
d) o crioulo é a deturpação e
simplificação de uma língua (português, francês, espanhol, inglês, holandês);
e) essa língua básica foi
transmitida deficientemente, pois, como reconhece Vendryès, "os
superiores nunca se deram ao trabalho nem tiveram vontade de ensinar uma fala
correcta";
f) o crioulo serve de instrumento de
comunicação entre seres inferiores e subalternos.
O item c) ministra-nos,
claramente, a diferença entre o crioulo e o português de negros. Este não
constitui um conjunto de caracteres definidos. É meramente individual:
exemplifica-nos a fase inicial, e o primeiro contacto, que pode preparar
o advento do crioulo.
O português de negros consiste na
algaravia ocasional das tribos que, resistindo à assimilação, mantêm intactos
os seus padrões culturais, inclusive, é claro, a própria língua.
Nisso repousa, precisamente, a
diferença entre os crioulos e o sabir, o pidgin-english, o chinook,
isto é, um grupo de falares a que podemos chamar crioulizantes.
O sabir, que tem importância
histórica, pois ascende à Idade Média, é uma fala intermediária, de material
românico, que servia de comunicação entre os Cristãos e os Turcos e Árabes. Hoje,
o seu emprego está muito restrito.
O pidgin-english é a
língua franca, usada nos portos do Extremo Oriente, para as necessidades do
intercâmbio comercial.
O chinook, de base indígena,
serve de meio de comunicação para Ingleses e Franceses na costa norte-ocidental
da América do Norte, do Alasca ao rio Oregão.
Nos crioulos há vários graus
de aprendizagem, pois, segundo as circunstâncias, o primitivo falar xacoco
mantém-se ou é aos poucos renovado pelo sangue novo da língua europeia. De
geração em geração, graças sobretudo à escola, vai-se aperfeiçoando e
enriquecendo a primitiva fala de emergência. É o que está sucedendo em relação
ao crioulo francês na ilha Maurícia e ao macaísta. (...)
Daí o admitir-se a existência
do semi-crioulo, ou seja, um estágio mais aperfeiçoado da primitiva
aprendizagem. Ele exemplifica-nos o choque entre o falar europeu e o
crioulo. Este vai sendo, pouco a pouco, invadido por palavras e giros do falar
das pessoas socialmente mais bem dotadas. O semi-crioulo encerra, pois,
formas e torneios semicultos.»
SERAFIM
DA SILVA NETO, História da Língua Portuguesa, 3ª edição, Rio de Janeiro,
Presença, 1979, pp. 436-437.
[12] – Vd. CELSO CUNHA e LINDLEY CINTRA, Nova Gramática do
Português Contemporâneo, 2ª ed., Lisboa, Edições Sá da Costa, 1984, pp. 23-24.
[13] – Para uma breve panorâmica das características dos
crioulos nesta regiões, consulte-se a gramática anteriormente citada de
PILAR VÁZQUEZ CUESTA e MARIA ALBERTINA M. DA LUZ, Gramática da Língua
Portuguesa, Edições 70, 1988, pp. 145-152.
[14] – Significado de expressões ou vocábulos que poderão
dificultar a compreensão do texto: sabe - saboroso, agradável (a
forma do pres. do indic. do verbo saber
'ter sabor' passou a ser usada como adjectivo, em vez da correspondente
'saboroso'); sabe de-mundo -
muito agradável; Hora di bai - hora de despedida; busado - atrevido; engonear - aborrecer; chicharrim - chicharro
pequeno; Bô crê ba? - Tu
queres ir?; Bô é tracolança -
Tu és menina da vida.
|