O INFERNO OU POÇOS DE DECANTAÇÃO
Em
todos os lagares, mesmo em alguns dos mais antigos, existem os chamados
poços de decantação,
recipientes de grandes dimensões ligados entre si por meio de sifões,
situados numa zona próxima do lagar, para onde escorrem as águas
residuais, entre as quais as decorrentes da operação de sangrar as
tarefas. De acordo com os livros técnicos – e vamo-nos socorrer das
informações dadas por António Cardoso de Menezes(32)
–, «o inferno (o mesmo
que poços de decantação) consta ordinariamente de um grande tanque de
pedra, revestido ou não de pozzolana, onde se reúnem e conservam
durante certo tempo as águas de vegetação da azeitona e as de lavagem
das máquinas e utensílios», soltando-se ao fim de algum tempo o
azeite emulsionado que, vindo à superfície, é posteriormente recolhido e
aproveitado. Em lagares mais modernos, de acordo com as indicações
técnicas fornecidas por Alberto Correia Pinto de Almeida(33),
que nos apresenta elementos sobre a maneira como os poços de decantação
deverão ser construídos, o
inferno, no qual são recolhidas as águas de vegetação e as de
lavagem, bem como as do sangramento das tarefas, deverá ser construído «à
distância de 200-300 metros do lagar», podendo ser feito de «tijolo
com revestimento de cimento e será construído segundo o princípio dos
vasos comunicantes». E acrescenta que «o depósito ou tanque de
recepção imediato das águas-ruças», ou seja, das águas provenientes
do escaldamento ou escaldão das seiras e do sangramento das tarefas,
deverá ter «a forma de vaso florentino, ficando enterrado no chão,
com o colo elevando-se a cerca de 2 metros do nível do solo, onde por
uma abertura de suficiente largura se fará a recolha do azeite»,
devendo a sua capacidade ser calculada de modo a poder «conter as
águas de escorrência do fabrico» por um período de 15 a 20 dias.
O elemento de que estamos a falar é bem
conhecido de toda a gente, não só dos que trabalham no lagar, mas também
daqueles que a ele recorrem para extraírem o azeite das suas
azeitonas.
Em
Espanha, de acordo com Alberto Klemm(34),
os poços de decantação ou infernos são designados pelo vocábulo
cacería, «grande depósito ligado
por um curto conjunto de canos que se estende por baixo do
moinho».
Tomás
Buesa Oliver(35),
diz-nos que «o azeite que
sai da prensa cai em um grande depósito subterrâneo que tem um sifão
para que saia a água», a que é dado o nome de pila, pila
das escorreduras, pozal e pocillo. Mas pela brevidade da informação
parece antes reportar-se aos depósitos onde se processa a decantação do
líquido saído das prensagens, devendo corresponder, portanto, às tarefas
e não aos poços de decantação ou infernos. Assim, o único vocábulo que
nos parece seguramente relacionado com o inferno é o fornecido por A.
Klemm.
Em
Itália, os poços de decantação das águas residuais são designados, à
semelhança de Portugal, pelo vocábulo
inferno, segundo se infere da
consulta da já citada enciclopédia italiana(36),
que nos diz que «outro dos
resíduos importantes, à excepção dos lagares onde existem máquina
centrifugadoras, é o óleo d’inferno», que chega a constituir
1 a 2% do azeite total extraído. Verificamos, uma vez mais, que o número
de vocábulos comuns a Portugal e Itália é significativo.
O
vocábulo inferno foi
por nós várias vezes registado relativamente a Portugal para designar os
poços de decantação. No entanto, há que ressalvar a excepção, já
anteriormente apresentada quando falámos dos diferentes sistemas de
moinhos. Se recordarmos o que foi dito no capítulo III relativamente aos
moinhos de rodízio, verificamos que há um segundo sentido para o
vocábulo inferno. Em relação aos moinhos de rodízio,
o inferno
é uma zona subterrânea do lagar, onde funciona o sistema hidráulico
gerador de energia(37).
Mas o sentido mais generalizado é aplicado aos poços de decantação,
sendo comum, mas não o único, a todo o território português. Encontrámos
este vocábulo nos distritos de Braga, Bragança, Castelo Branco, Coimbra,
Guarda, Santarém e Vila Real(38).
Acerca do inferno
merecem registo as informações que nos foram dadas em dois lagares do
distrito de Coimbra. No lagar de Ervedal, P. 236, conc. de Oliveira do
Hospital, o nosso informador disse-nos que «os infernos são
divididos em três poços e têm uma manilhas que vai ao fundo pra desòguar
para o outro. O azeite fica òdecima e práli corre só a água…». No
lagar de Eiras, P. 257, no concelho de Coimbra, a informação foi mais
completa, revelando um conhecimento relativamente aprofundado, cujo
registo magnético passamos a transcrever:
«O
inferno são depósitos do lagar onde são recolhidas as águas dos
expurgos, porque esses expurgos levam uma certa quantidade de azeite.
Esse azeite será depois novamente decantado no fim da safra, se ela não
tiver sido muito grande. O lagar fecha e, então, efectua-se essa
operação, que é estritamente confidencial do proprietário do lagar e dos
homens que lá trabalham. O azeite impuro, extraído dos infernos, é
misturado com a baganha seca e volta tudo novamente às seiras para nova
prensagem. O azeite assim extraído, devido à sua elevada acidez, é
vendido aos armazéns, a fim de ser refinado, ou às fábricas de sabão.»
(Eiras, P. 257, conc. e dist. Coimbra).
Além
do vocábulo inferno
encontrámos outras designações em diferentes zonas do país, tais como
ladrão, poço ou poços de decantação e poço(s) d’inferno.
De
todas as designações, a mais significativa é a de
ladrão(39),
designação popular pouco do agrado dos donos dos lagares, cuja
explicação se encontra, por exemplo, no breve excerto da entrevista que
passamos a transcrever:
«–
Vinha, o chamado poço de inferno.
– O poço do inferno?
– Ou ladrão, como é que
dão outros nomes. São muitos nomes, não é?
– Mas porque chamam…
–Ladrão, porque diziam
que muitas vezes faziam propositadamente vir pràqui o azeite.
– Ficava aqui retido?
– Outras vezes podia ser
um escapamento. Como sabe que o azeite separa-se com facilidade da
aziagra. Mas às bezes quando não está a água bem quente, também vai
misturado. E atão, por vezes tirava-se aqui (…)» (Quinta da Romeira,
P. 206, freg. Lageosa do Mondego, conc. Celorico da Beira, dist.
Guarda).
O
termo ladrão é também
registado no trabalho de M. Margarida Furtado Martins(40)
com o sentido de «rebento
que sai da base do tronco» e ainda como «espécie de depósito
falso para onde escorrem os resíduos do azeite (Alentejo)».
As
restantes designações referidas são pouco significativas, tendo sido por
nós registadas apenas uma vez em três localidades, juntamente com os
outros vocábulos, mostrando-nos que os próprios informadores tinham uma
noção precisa da pluralidade de designações(41).
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(32) – A. CARDOSO DE MENEZES, Noções de oleicultura prática, 2ª
ed., Coimbra, 1901, cap. II, págs. 63-65. |
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(33) – ALBERTO CORREIA PINTO DE ALMEIDA, Planos e modelos de lagares
de azeite, in: “Congresso de Leitaria, Olivicultura e Indústria
do azeite em 1905”, Lisboa, (Real Associação Central da Agricultura
Portuguesa), 1906, vol. II, pág. 155. |
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(34) – 34 – ALBERTO KLEMM, op. cit., págs. 140-141. |
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(35) – TOMÁS BUESA OLIVER, op. cit., pág. 94. |
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(36) – Enciclopédia Italiana di Scienze, Lettere ed Arti, Roma,
1935, vol. XXV, pág. 303, 1ª col. |
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(37) – Recorde-se o que foi dito nas páginas 79 a 86. |
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(38) – Registo das
localidades onde encontrámos o vocábulo inferno aplicado aos poços
de decantação: dist. Braga, P. 32, 34; Bragança, P. 86, e Vilarinho
do Monte (conc. de Macedo de Cavaleiros-ILB); Castelo Branco, em
Casal da Serra, conc. Covilhã (ILB); Coimbra, P. 236, 257; Guarda,
em Ranhados do Douro (ILB); Vila Real, em Capeludos, conc. Vila
Pouca de Aguiar (ILB); Santarém, em Lapqas, conc. Torres Novas (ILB). |
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(39) – Registámos o vocábulo ladrão para os poços de decantação nos
distritos de Coimbra, P. 238, 284 e Vila do Mato, freg. Midões, conc.
Tábua; Guarda, P. 206. |
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(40) – MARIA MARGARIDA FURTADO MARTINS, op. cit., pág. 107. |
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(41) – Indicação das
localidades onde registámos os vocábulos ou expressões: poços -
Bandoira (freg. Moimenta da Beira, conc. Gouveia, dist. Guarda);
poço d’inferno, P. 206; poços do inferno, P. 236; poços de
decantação, P. 236. |
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