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Fabrico Tradicional do Azeite em Portugal (Estudo Linguístico-Etnográfico), Aveiro, 2014, XIV+504 pp. ©

 

IX

OUTROS ELEMENTOS DO LAGAR

 

O INFERNO OU POÇOS DE DECANTAÇÃO

Em todos os lagares, mesmo em alguns dos mais antigos, existem os chamados poços de decantação, recipientes de grandes dimensões ligados entre si por meio de sifões, situados numa zona próxima do lagar, para onde escorrem as águas residuais, entre as quais as decorrentes da operação de sangrar as tarefas. De acordo com os livros técnicos – e vamo-nos socorrer das informações dadas por António Cardoso de Menezes(32) –, «o inferno (o mesmo que poços de decantação) consta ordinariamente de um grande tanque de pedra, revestido ou não de pozzolana, onde se reúnem e conservam durante certo tempo as águas de vegetação da azeitona e as de lavagem das máquinas e utensílios», soltando-se ao fim de algum tempo o azeite emulsionado que, vindo à superfície, é posteriormente recolhido e aproveitado. Em lagares mais modernos, de acordo com as indicações técnicas fornecidas por Alberto Correia Pinto de Almeida(33),  que nos apresenta elementos sobre a maneira como os poços de decantação deverão ser construídos, o inferno, no qual são recolhidas as águas de vegetação e as de lavagem, bem como as do sangramento das tarefas, deverá ser construído «à distância de 200-300 metros do lagar», podendo ser feito de «tijolo com revestimento de cimento e será construído segundo o princípio dos vasos comunicantes». E acrescenta que «o depósito ou tanque de recepção imediato das águas-ruças», ou seja, das águas provenientes do escaldamento ou escaldão das seiras e do sangramento das tarefas, deverá ter «a forma de vaso florentino, ficando enterrado no chão, com o colo elevando-se a cerca de 2 metros do nível do solo, onde por uma abertura de suficiente largura se fará a recolha do azeite», devendo a sua capacidade ser calculada de modo a poder «conter as águas de escorrência do fabrico» por um período de 15 a 20 dias.

O elemento de que estamos a falar é bem conhecido de toda a gente, não só dos que trabalham no lagar, mas também daqueles que a ele recorrem para extraírem o azeite das suas azeitonas.

Em Espanha, de acordo com Alberto Klemm(34), os poços de decantação ou infernos são designados pelo vocábulo cacería, «grande depósito ligado por um curto conjunto de canos que se estende por baixo do moinho».

Tomás Buesa Oliver(35), diz-nos que «o azeite que sai da prensa cai em um grande depósito subterrâneo que tem um sifão  para que saia a água», a que é dado o nome de pila, pila das escorreduras, pozal e pocillo. Mas pela brevidade da informação parece antes reportar-se aos depósitos onde se processa a decantação do líquido saído das prensagens, devendo corresponder, portanto, às tarefas e não aos poços de decantação ou infernos. Assim, o único vocábulo que nos parece seguramente relacionado com o inferno é o fornecido por A. Klemm.

Em Itália, os poços de decantação das águas residuais são designados, à semelhança de Portugal, pelo vocábulo inferno, segundo se infere da consulta da já citada enciclopédia italiana(36), que nos diz que «outro dos resíduos importantes, à excepção dos lagares onde existem máquina centrifugadoras, é o óleo d’inferno», que chega a constituir 1 a 2% do azeite total extraído. Verificamos, uma vez mais, que o número de vocábulos comuns a Portugal e Itália é significativo.

O vocábulo inferno foi por nós várias vezes registado relativamente a Portugal para designar os poços de decantação. No entanto, há que ressalvar a excepção, já anteriormente apresentada quando falámos dos diferentes sistemas de moinhos. Se recordarmos o que foi dito no capítulo III relativamente aos moinhos de rodízio, verificamos que há um segundo sentido para o vocábulo inferno. Em relação aos moinhos de rodízio, o inferno é uma zona subterrânea do lagar, onde funciona o sistema hidráulico gerador de energia(37). Mas o sentido mais generalizado é aplicado aos poços de decantação, sendo comum, mas não o único, a todo o território português. Encontrámos este vocábulo nos distritos de Braga, Bragança, Castelo Branco, Coimbra, Guarda, Santarém e Vila Real(38).

Acerca do inferno merecem registo as informações que nos foram dadas em dois lagares do distrito de Coimbra. No lagar de Ervedal, P. 236, conc. de Oliveira do Hospital, o nosso informador disse-nos que «os infernos são divididos em três poços e têm uma manilhas que vai ao fundo pra desòguar para o outro. O azeite fica òdecima e práli corre só a água…». No lagar de Eiras, P. 257, no concelho de Coimbra, a informação foi mais completa, revelando um conhecimento relativamente aprofundado, cujo registo magnético passamos a transcrever:

«O inferno são depósitos do lagar onde são recolhidas as águas dos expurgos, porque esses expurgos levam uma certa quantidade de azeite. Esse azeite será depois novamente decantado no fim da safra, se ela não tiver sido muito grande. O lagar fecha e, então, efectua-se essa operação, que é estritamente confidencial do proprietário do lagar e dos homens que lá trabalham. O azeite impuro, extraído dos infernos, é misturado com a baganha seca e volta tudo novamente às seiras para nova prensagem. O azeite assim extraído, devido à sua elevada acidez, é vendido aos armazéns, a fim de ser refinado, ou às fábricas de sabão.» (Eiras, P. 257, conc. e dist. Coimbra).

Além do vocábulo inferno encontrámos outras designações em diferentes zonas do país, tais como ladrão, poço ou poços de decantação e poço(s) d’inferno.

De todas as designações, a mais significativa é a de ladrão(39), designação popular pouco do agrado dos donos dos lagares, cuja explicação se encontra, por exemplo, no breve excerto da entrevista que passamos a transcrever:

«Vinha, o chamado poço de inferno.

O poço do inferno?

Ou ladrão, como é que dão outros nomes. São muitos nomes, não é?

Mas porque chamam…

Ladrão, porque diziam que muitas vezes faziam propositadamente vir pràqui o azeite.

Ficava aqui retido?

Outras vezes podia ser um escapamento. Como sabe que o azeite separa-se com facilidade da aziagra. Mas às bezes quando não está a água bem quente, também vai misturado. E atão, por vezes tirava-se aqui (…)» (Quinta da Romeira, P. 206, freg. Lageosa do Mondego, conc. Celorico da Beira, dist. Guarda).

O termo ladrão é também registado no trabalho de M. Margarida Furtado Martins(40) com o sentido de «rebento que sai da base do tronco» e ainda como «espécie de depósito falso para onde escorrem os resíduos do azeite (Alentejo)».

As restantes designações referidas são pouco significativas, tendo sido por nós registadas apenas uma vez em três localidades, juntamente com os outros vocábulos, mostrando-nos que os próprios informadores tinham uma noção precisa da pluralidade de designações(41).

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(32) – A. CARDOSO DE MENEZES, Noções de oleicultura prática, 2ª ed., Coimbra, 1901, cap. II, págs. 63-65.

(33) – ALBERTO CORREIA PINTO DE ALMEIDA, Planos e modelos de lagares de azeite, in: “Congresso de Leitaria, Olivicultura e Indústria do azeite em 1905”, Lisboa, (Real Associação Central da Agricultura Portuguesa), 1906, vol. II, pág. 155.

(34) 34 – ALBERTO KLEMM, op. cit., págs. 140-141.

(35) – TOMÁS BUESA OLIVER, op. cit., pág. 94.

(36) Enciclopédia Italiana di Scienze, Lettere ed Arti, Roma, 1935, vol. XXV, pág. 303, 1ª col.

(37)Recorde-se o que foi dito nas páginas 79 a 86.

(38) – Registo das localidades onde encontrámos o vocábulo inferno aplicado aos poços de decantação: dist. Braga, P. 32, 34; Bragança, P. 86, e Vilarinho do Monte (conc. de Macedo de Cavaleiros-ILB); Castelo Branco, em Casal da Serra, conc. Covilhã (ILB); Coimbra, P. 236, 257; Guarda, em Ranhados do Douro (ILB); Vila Real, em Capeludos, conc. Vila Pouca de Aguiar (ILB); Santarém, em Lapqas, conc. Torres Novas (ILB).

(39) – Registámos o vocábulo ladrão para os poços de decantação nos distritos de Coimbra, P. 238, 284 e Vila do Mato, freg. Midões, conc. Tábua; Guarda, P. 206.

(40)MARIA MARGARIDA FURTADO MARTINS, op. cit., pág. 107.

(41) – Indicação das localidades onde registámos os vocábulos ou expressões: poços - Bandoira (freg. Moimenta da Beira, conc. Gouveia, dist. Guarda); poço d’inferno, P. 206; poços do inferno, P. 236; poços de decantação, P. 236.

 

 

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