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Fabrico Tradicional do Azeite em Portugal (Estudo Linguístico-Etnográfico), Aveiro, 2014, XIV+504 pp. ©

 

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CONCLUSÕES

 

Ao longo deste trabalho, procurámos analisar os aspectos mais importantes do fabrico tradicional do azeite em Portugal, tais como: nomes e situação do lagar; meios de transporte e de conservação da azeitona; o moinho, sua situação e seus diversos tipos; operação de moagem; fabrico artesanal de seiras e capachos; prensas de azeite e seus tipos; enseiramento e prensagem; sistemas de decantação; outros elementos do lagar.

Estamos longe de ter esgotado os conteúdos de todo o material recolhido ao longo de dois anos de investigação na metade norte do nosso País, tendo ficado por analisar muitos outros aspectos.

Dentro da oficina oleícola, deixámos por abordar os pequenos mas indispensáveis objectos, sem os quais o trabalho não poderia fazer-se completamente, tais como os diferentes recipientes para o azeite, os sistemas de iluminação a azeite, encontrados nos lagares mais primitivos, as medidas utilizadas, e muitos outros pequenos objectos, para além de outros imateriais, tais como tradições, crenças e superstições ligadas ao azeite e outros costumes, entre os quais se contam as célebres tibornadas, em que ainda tive o prazer de participar quando, ainda miúdo, ia com o meu avô materno aos lagares de azeite existentes em Celorico da Beira.

Fora da oficina, ficou por abordar a etapa anterior e indispensável, para que se possa extrair o azeite. Como este não pode existir sem as azeitonas, pusemos completamente de parte toda a experiência vivida durante o período em que acompanhámos alguns ranchos da azeitona, na parte norte de Portugal, e que nos permitiram registar magneticamente os despiques entre os diferentes ranchos, por exemplo, na região de Celorico da Beira.

Se fôssemos agora abordar tudo quanto diz respeito à produção do azeite em Portugal, andaríamos eternamente a realizar este trabalho e esta parte importante nunca chegaria a ser dada a conhecer.

Como o trabalho que inicialmente nos propusemos fazer é essencialmente de carácter linguístico e etnográfico, será sobre estes dois aspectos que iremos focar a nossa atenção, deixando  agora de lado o aspecto técnico, que poderá ser detectado durante a leitura dos capítulos. Tanto quanto nos for possível, vamos agora apresentar as nossas conclusões de maneira breve e sucinta.

O facto linguístico que se nos afigura mais importante, dentro do campo olivícola, reside fundamentalmente no elevado número de vocábulos de origem árabe que permaneceram na nossa língua: em número de 44, podem, no entanto, reduzir-se a cerca de 10, uma vez que muitas das formas encontradas não são mais do que simples variantes fonéticas de uma mesma palavra.

Por ordem decrescente de frequência, são os seguintes os vocábulos de origem árabe por nós registados: almofeira e albufeira; zambujo e suas variantes fonéticas; azenha; alguergue e suas variantes; adufa; almanjarra e manjarra; azinagre e suas variantes; azeabra; e, finalmente, atafona e alfarja.

O mapa que elaborámos com a distribuição geográfica destes vocábulos permitiu-nos não apenas verificar que eles apresentam áreas bem delimitadas, mas também que muitos deles aparecem em regiões das mais setentrionais do país, como são os distritos de Braga, Vila Real e Bragança.

Quanto ao primeiro aspecto, verificamos, efectivamente, que certos vocábulos ocupam áreas bem demarcadas; assim, albufeira e almofeira surgem-nos praticamente apenas nos distritos de Aveiro, Coimbra e Leiria, à excepção do ponto 29, que poderemos considerar como caso esporádico; azenha, com uma vasta área, circunscreve-se a quase toda a bacia do Douro, se exceptuarmos o ponto 73, onde também nos surgiu como caso isolado; aziagra, azinagre e restantes formas da mesma família ocupam uma área que abrange o distrito da Guarda e a parte norte do distrito de Castelo Branco; das restantes palavras, podemos afirmar que não possuem áreas bem definidas, à excepção de jambujo e sua numerosa família. Relativamente a esta última palavra, cujo étimo é o árabe zanbuz, como já oportunamente dissemos, constatamos que ocupa uma vasta área, que se estende desde o distrito de Leiria até ao de Vila Real, passando por Coimbra, Aveiro e Viseu.

Analisando a distribuição geográfica de todas as palavras apontadas, depara-se-nos um problema para o qual se tornará difícil encontrar uma solução: sabendo-se que a dominação árabe se fez sentir essencialmente na metade sul do País, como explicar o aparecimento de palavras como algarbe, algrabe, algrebe, almofeira, almanjarra e tantas outras em regiões tão setentrionais como são os distritos de Braga, Vila Real e Bragança?

 

O problema é de difícil solução, sendo muitas as hipóteses que afloram ao nosso espírito. Uma das causas desse facto deverá residir nas migrações periódicas que se verificam quase todos anos. De facto, não nos foi difícil encontrar, em terras nortenhas, grupos numerosos de trabalhadores, que se deslocam do sul para o norte, em busca de trabalho e, não raras vezes, para lá contratados para a colheita da azeitona, uma vez que a mão-de-obra local se vai tornando cada vez mais rara de ano para ano, em virtude da grande migração que se verificou em escala sempre crescente, especialmente nas terras pobres do norte, deixando muitas povoações do interior quase desertas e apenas habitadas pelos mais idosos. Só assim se justifica o termos encontrado, por exemplo, em terras de Mirandela, ranchos provenientes de outras regiões, nomeadamente do Alentejo.

A segunda grande causa, e não menos importante que a anterior, do aparecimento de vocábulos de origem árabe em terras de Trás-os-Montes deve residir nas periódicas deslocações para essas zonas de mestres de lagar e lagareiros provenientes do sul.

Como explicar estas deslocações?

É sabido que a safra da azeitona tem em Portugal o seu início nas terras mais quentes do sul, de tal modo que, quando no centro do país a apanha começa a efectuar-se, já ela no sul está há muito terminada; e também quando ela no centro está praticamente a chegar ao fim, só então nas terras mais frias do norte tem início, podendo ser dada por concluída só lá para os últimos dias de Janeiro, quando não se prolonga até meados ou fins do mês seguinte. Consequentemente, também a abertura dos lagares se vai processando de maneira assincrónica, já que sem azeitona não pode haver azeite. Logo, uma boa percentagem de lagareiros ou mestres de lagar, quase sempre naturais do sul, aqui iniciam o trabalho, percorrendo sucessivamente mais do que um lagar, até atingirem as terras do norte, onde vão concluir a safra; fazem, assim, (ou faziam, porque, muito provavelmente, isto deverá já estar completamente mudado em princípios do actual século XXI) uma época que se prolonga por cerca de quatro a cinco meses, levando consigo não apenas o seu saber técnico, mas também toda uma vasta gama de vocábulos, que vão semeando aqui e além.

Uma terceira causa, talvez até a mais generalizada, reside nas vulgares deslocações das palavras de umas para outras regiões. Basta a simples mudança de residência de uma família do sul para terra do norte para, com ela, imediatamente seguirem viagem vocábulos próprios da região anteriormente habitada. Daqui a grande possibilidade de erro na localização de uma palavra, facto que procurámos evitar, tanto quanto possível, recorrendo sempre a informadores naturais das terras onde foram feitos os inquéritos.

 

Tal como noutros domínios da língua, também no campo olivícola a tendência conservadora do povo faz sentir a sua influência, relativamente a várias palavras. Com os seus sentidos próprios, tendem estas a manter-se vivas, apesar de a técnica moderna haver já introduzido novos processos e nova maquinaria no fabrico do azeite. Daqui resulta, como é evidente, um alargamento do campo semântico da maioria desses vocábulos. Foi o que sucedeu com palavras como engenho, moinho, seira, enseiramento e outras, a que anteriormente fizemos referência. De todas elas, o caso mais significativo será sem dúvida o que respeita aos vocábulos seira e enseiramento. O significado primitivo de um e outro era, respectivamente, o de ‘recipiente achatado e circular em forma de bolsa, feito de corda de esparto e de outras fibras’ e o de ‘distribuição da massa pelas seiras’. O segundo, já por um alargamento do seu campo semântico, passou também a aplicar-se ao ‘conjunto de seiras em pilha para prensagem’. A técnica moderna trouxe um novo utensílio de uso mais prático – o capacho. E, em vez de o primeiro ter cedido o lugar ao recém-chegado, ei-lo que resolve permanecer, alargando o seu campo semântico e passando a ser inadequadamente e frequentemente usado em relação ao capacho. E «encapachamento» ficou de lado, permanecendo, ainda que inadequadamente, enseiramento.

 

Terceiro facto linguístico observado ao longo do trabalho e que mais sobressai do conjunto é o da enorme riqueza lexical da nossa língua dentro de um campo tão restrito, mas simultaneamente tão vasto e inesgotável, como é o campo olivícola.

Constatamos, não sem sentir uma certa admiração, que para um mesmo objecto existe, em regra, um número considerável de significantes para o definir, desconhecidos de uma boa maioria dos dicionários de português(1). Disto são prova elucidativa os diversos vocábulos que encontrámos para designar, quer a água que escorre da azeitona, quando entulhada, ou aquela azeitona que, pelo seu diminuto tamanho, fica a maior parte das vezes, perdida nos olivais, quer ainda as diferentes partes que constituem as múltiplas alfaias oleícolas, como é o caso, por exemplo, do grande vaso circular do moinho, onde é deitada a azeitona, a fim de ser moída pelas galgas.

Podemos afirmar, sem qualquer exagero, que existem, em média, para um mesmo objecto, cerca de três a cinco vocábulos diferentes, quando esse número não atinge cifras elevadas, como sucede, por exemplo, com os nomes dados à azeitona miúda, em número de 34, ou com água-ruça, em número de 20.

 

Do ponto de vista etnográfico são múltiplos os factos observados.

Em primeiro lugar, notámos que, não obstante o processo tradicional do fabrico do azeite se ter mantido imutável em meados do século XX em várias regiões, especialmente nas de fracos recursos económicos e de mais difícil acesso, os tempos modernos, com todas as suas inovações e progressos, tendem a fazer desaparecer o que de antigo e tradicional existe no nosso País – o velho e pitoresco lagar de vara, donde, segundo a opinião popular, o azeite saía melhor e mais saboroso. Recordemos o caso de lagares como o das Três Aldeias, P. 303, ou o de Remungão, P. 261, ambos no distrito de Coimbra, e de tantos outros há muito parados e meio arruinados, quer nos distritos de Braga e Bragança, quer no distrito da Guarda, hoje substituídos por modernas e mais rendosas fábrica de azeite. E actualmente, na segunda década do século XXI, ressalvando algumas raríssimas e louváveis excepções, da grande maioria dos lagares que visitámos já nem existem vestígios. Contam-se entre estas excepções um dos lagares mais interessantes por nós visitado no concelho de Góis, o lagar de vara da Mata, P. 297, que teve a sorte de encontrar uma associação de defesa do património natural e cultural que soube preservá-lo e transformar num museu, aberto à curiosidade de todos nós.

Cremos que este mesmo fenómeno do desaparecimento dos sistemas tradicionais é comum a outros países produtores de azeite. Do facto nos deu também testemunho, em 1955, Tomás Buesa Oliver(2), no passo que transcrevemos:

«Cuando estuve allí(3) – abril de 1946 y navidades de 1949 y 1951 – se encontraban clausurados desde hacía vários años, por la intervención estatal del aceite, todos los molinos aceiteros. Gracias a la amabilidad de los alcaldes y secretários de los Ayuntamientos, pude visitar y fotografar las almazaras. Durante mi último viaje – enero de 1952 – vi cómo la arcaica maquinaria de la mayoría de los molinos había sido sustituída por outra más moderna. De esta forma, el modesto y antíguo molino aceitero se había transformado em Fábrica de Aceite.»

Numa proporção quase idêntica àquela em que se verifica o desaparecimento do lagar tradicional português, também a mão-de-obra, sobretudo a masculina, vai rareando de dia para dia. Daqui resulta não apenas a necessidade de uma maior automatização de todas as operações de fabrico do azeite, o que efectivamente tem vindo a verificar-se, mas ainda o aparecimento de engenhosas e rudimentares invenções, que frequentemente podem ser encontradas em certos lagares. Lembremo-nos do já referido carrocel do amor, vagoneta tosca de madeira delineada pelo feitor do lagar, a fim de facilitar o transporte da azeitona para o moinho. Graças à acentuada mecanização e automatização de quase todas as operações de extracção do azeite, o trabalho começa a ser executado em larga escala pela mulher e, em alguns casos mais modernos, apenas o dono e um ajudante são indispensáveis para todo o trabalho de produção do azeite.

Ao lado da indústria olivícola e desta dependente, subsistem (ou subsistiam) ainda numerosas indústrias de tipo artesanal. Está neste caso a pequena indústria de fabrico de seiras e capachos, de que encontrámos um exemplo típico em Valbom, P. 204, no concelho de Pinhel, distrito da Guarda.

Facto de relativa importância é o da unidade linguística e etnográfica, e sobretudo desta última, que se verifica entre Portugal e Espanha. Constituem estes dois países como que um bloco único e independente dos restantes, sob múltiplos aspectos. Recordem-se, a este propósito, as grandes afinidades entre a prensa de vara portuguesa e a espanhola, cujas características marcadamente individualizadoras nos permitem distingui-la da vara italiana.

 

Para finalizar estas conclusões, nada melhor do que uma síntese do fabrico tradicional do azeite em Portugal.

Os tormentos da azeitona resumem-se a três fases principais, que analisámos neste trabalho:

- moagem;

- enseiramento e prensagem;

- decantação e centrifugação do óleo.

 

Todas elas foram metodicamente analisadas por nós.

As duas primeiras, foram-no na década de 1960, quando tivemos de apresentar a tese para obtenção da nossa licenciatura em Filologia Românica, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a orientação do nosso orientador, o Professor Doutor Manuel de Paiva Boléo.

A terceira e última fase, à semelhança do azeite, esteve em decantação durante vários anos. Só em 1996, depois de termos elaborado e defendido a nossa tese de mestrado na Universidade do Minho, relacionada com as Novas Tecnologias no Ensino, sob a orientação do Professor Doutor José Henrique  dos Santos Chave, voltámos às tecnologias tradicionais relacionadas com o óleo de Minerva.

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(1) – Não podemos deixar de referir que a constatação que fizemos em 1969 já não é totalmente válida. Efectuámos uma breve pesquisa em dicionários mais recentes, inclusive no Grande dicionário da língua portuguesa, coordenado por José Pedro Machado, publicado em 1981, com um total de 12 volumes, e constatámos que já inclui muitos dos vocábulos que, na época, eram desconhecidos da maioria dos dicionários.

(2) – TOMÁS BUESA OLIVER, Terminologia del olivo y del aceite en el alto aragonês de Ayerbe, in “Miscelánea Filológica dedicada a Mons. A. Griera”, Barcelona, 1955, tomo I, páginas 53-109.

(3)O Autor refere-se à comarca de Ayerbe, região situada nos Pré-Pirinéus aragoneses.Aspecto geral do lagar de Pereiro, P. 262. À direita, o moinho; em segundo plano, os fusos das prensas; a seguir, a fornalha, tendo de cada lado uma tarefa; ao fundo, encostada ao canto da parede, a zona de descanso dos empregados.

 

 

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