Ao longo deste trabalho, procurámos analisar os aspectos mais
importantes do fabrico tradicional do azeite em Portugal, tais como:
nomes e situação do lagar; meios de transporte e de conservação da
azeitona; o moinho, sua situação e seus diversos tipos; operação de
moagem; fabrico artesanal de seiras e capachos; prensas de azeite e seus
tipos; enseiramento e prensagem; sistemas de decantação; outros
elementos do lagar.
Estamos longe
de ter esgotado os conteúdos de todo o material recolhido ao longo de
dois anos de investigação na metade norte do nosso País, tendo ficado
por analisar muitos outros aspectos.
Dentro da
oficina oleícola, deixámos por abordar os pequenos mas indispensáveis
objectos, sem os quais o trabalho não poderia fazer-se completamente,
tais como os diferentes recipientes para o azeite, os sistemas de
iluminação a azeite, encontrados nos lagares mais primitivos, as medidas
utilizadas, e muitos outros pequenos objectos, para além de outros
imateriais, tais como tradições, crenças e superstições ligadas ao
azeite e outros costumes, entre os quais se contam as célebres
tibornadas, em que ainda tive o prazer de participar quando, ainda
miúdo, ia com o meu avô materno aos lagares de azeite existentes em
Celorico da Beira.
Fora da
oficina, ficou por abordar a etapa anterior e indispensável, para que se
possa extrair o azeite. Como este não pode existir sem as azeitonas,
pusemos completamente de parte toda a experiência vivida durante o
período em que acompanhámos alguns ranchos da azeitona, na parte norte
de Portugal, e que nos permitiram registar magneticamente os despiques
entre os diferentes ranchos, por exemplo, na região de Celorico da
Beira.
Se fôssemos
agora abordar tudo quanto diz respeito à produção do azeite em Portugal,
andaríamos eternamente a realizar este trabalho e esta parte importante
nunca chegaria a ser dada a conhecer.
Como o
trabalho que inicialmente nos propusemos fazer é essencialmente de
carácter linguístico e etnográfico, será sobre estes dois aspectos que
iremos focar a nossa atenção, deixando agora de lado o aspecto técnico,
que poderá ser detectado durante a leitura dos capítulos. Tanto quanto
nos for possível, vamos agora apresentar as nossas conclusões de maneira
breve e sucinta.
O facto
linguístico que se nos afigura mais importante, dentro do campo
olivícola, reside fundamentalmente no elevado número de vocábulos de
origem árabe que permaneceram na nossa língua: em número de 44, podem,
no entanto, reduzir-se a cerca de 10, uma vez que muitas das formas
encontradas não são mais do que simples variantes fonéticas de uma mesma
palavra.
Por ordem
decrescente de frequência, são os seguintes os vocábulos de origem árabe
por nós registados: almofeira e albufeira;
zambujo e suas variantes fonéticas; azenha;
alguergue e suas variantes; adufa; almanjarra
e manjarra; azinagre e suas variantes;
azeabra; e, finalmente, atafona e alfarja.
O mapa que
elaborámos com a distribuição geográfica destes vocábulos permitiu-nos
não apenas verificar que eles apresentam áreas bem delimitadas, mas
também que muitos deles aparecem em regiões das mais setentrionais do
país, como são os distritos de Braga, Vila Real e Bragança.
Quanto ao
primeiro aspecto, verificamos, efectivamente, que certos vocábulos
ocupam áreas bem demarcadas; assim, albufeira e
almofeira surgem-nos praticamente apenas nos distritos de
Aveiro, Coimbra e Leiria, à excepção do ponto 29, que poderemos
considerar como caso esporádico; azenha, com uma vasta área,
circunscreve-se a quase toda a bacia do Douro, se exceptuarmos o ponto
73, onde também nos surgiu como caso isolado; aziagra,
azinagre e restantes formas da mesma família ocupam uma área que
abrange o distrito da Guarda e a parte norte do distrito de Castelo
Branco; das restantes palavras, podemos afirmar que não possuem áreas
bem definidas, à excepção de jambujo e sua numerosa
família. Relativamente a esta última palavra, cujo étimo é o árabe
zanbuz, como já oportunamente dissemos, constatamos que ocupa uma
vasta área, que se estende desde o distrito de Leiria até ao de Vila
Real, passando por Coimbra, Aveiro e Viseu.
Analisando a
distribuição geográfica de todas as palavras apontadas, depara-se-nos um
problema para o qual se tornará difícil encontrar uma solução:
sabendo-se que a dominação árabe se fez sentir essencialmente na metade
sul do País, como explicar o aparecimento de palavras como algarbe,
algrabe, algrebe, almofeira, almanjarra
e tantas outras em regiões tão setentrionais como são os distritos de
Braga, Vila Real e Bragança?
O problema é
de difícil solução, sendo muitas as hipóteses que afloram ao nosso
espírito. Uma das causas desse facto deverá residir nas migrações
periódicas que se verificam quase todos anos. De facto, não nos foi
difícil encontrar, em terras nortenhas, grupos numerosos de
trabalhadores, que se deslocam do sul para o norte, em busca de trabalho
e, não raras vezes, para lá contratados para a colheita da azeitona, uma
vez que a mão-de-obra local se vai tornando cada vez mais rara de ano
para ano, em virtude da grande migração que se verificou em escala
sempre crescente, especialmente nas terras pobres do norte, deixando
muitas povoações do interior quase desertas e apenas habitadas pelos
mais idosos. Só assim se justifica o termos encontrado, por exemplo, em
terras de Mirandela, ranchos provenientes de outras regiões,
nomeadamente do Alentejo.
A segunda
grande causa, e não menos importante que a anterior, do aparecimento de
vocábulos de origem árabe em terras de Trás-os-Montes deve residir nas
periódicas deslocações para essas zonas de mestres de lagar e lagareiros
provenientes do sul.
Como explicar
estas deslocações?
É sabido que a
safra da azeitona tem em Portugal o seu início nas terras mais quentes
do sul, de tal modo que, quando no centro do país a apanha começa a
efectuar-se, já ela no sul está há muito terminada; e também quando ela
no centro está praticamente a chegar ao fim, só então nas terras mais
frias do norte tem início, podendo ser dada por concluída só lá para os
últimos dias de Janeiro, quando não se prolonga até meados ou fins do
mês seguinte. Consequentemente, também a abertura dos lagares se vai
processando de maneira assincrónica, já que sem azeitona não pode haver
azeite. Logo, uma boa percentagem de lagareiros ou mestres de lagar,
quase sempre naturais do sul, aqui iniciam o trabalho, percorrendo
sucessivamente mais do que um lagar, até atingirem as terras do norte,
onde vão concluir a safra; fazem, assim, (ou faziam, porque, muito
provavelmente, isto deverá já estar completamente mudado em princípios
do actual século XXI) uma época que se prolonga por cerca de quatro a
cinco meses, levando consigo não apenas o seu saber técnico, mas também
toda uma vasta gama de vocábulos, que vão semeando aqui e além.
Uma terceira
causa, talvez até a mais generalizada, reside nas vulgares deslocações
das palavras de umas para outras regiões. Basta a simples mudança de
residência de uma família do sul para terra do norte para, com ela,
imediatamente seguirem viagem vocábulos próprios da região anteriormente
habitada. Daqui a grande possibilidade de erro na localização de uma
palavra, facto que procurámos evitar, tanto quanto possível, recorrendo
sempre a informadores naturais das terras onde foram feitos os
inquéritos.
Tal como
noutros domínios da língua, também no campo olivícola a tendência
conservadora do povo faz sentir a sua influência, relativamente a várias
palavras. Com os seus sentidos próprios, tendem estas a manter-se vivas,
apesar de a técnica moderna haver já introduzido novos processos e nova
maquinaria no fabrico do azeite. Daqui resulta, como é evidente, um
alargamento do campo semântico da maioria desses vocábulos. Foi o que
sucedeu com palavras como engenho, moinho,
seira, enseiramento e outras, a que anteriormente fizemos
referência. De todas elas, o caso mais significativo será sem dúvida o
que respeita aos vocábulos seira e enseiramento.
O significado primitivo de um e outro era, respectivamente, o de
‘recipiente achatado e circular em forma de bolsa, feito de corda de
esparto e de outras fibras’ e o de ‘distribuição da massa pelas seiras’.
O segundo, já por um alargamento do seu campo semântico, passou também a
aplicar-se ao ‘conjunto de seiras em pilha para prensagem’. A técnica
moderna trouxe um novo utensílio de uso mais prático – o capacho. E, em
vez de o primeiro ter cedido o lugar ao recém-chegado, ei-lo que resolve
permanecer, alargando o seu campo semântico e passando a ser
inadequadamente e frequentemente usado em relação ao capacho. E «encapachamento»
ficou de lado, permanecendo, ainda que inadequadamente, enseiramento.
Terceiro facto
linguístico observado ao longo do trabalho e que mais sobressai do
conjunto é o da enorme riqueza lexical da nossa língua dentro de um
campo tão restrito, mas simultaneamente tão vasto e inesgotável, como é
o campo olivícola.
Constatamos,
não sem sentir uma certa admiração, que para um mesmo objecto existe, em
regra, um número considerável de significantes para o definir,
desconhecidos de uma boa maioria dos dicionários de português(1).
Disto são prova elucidativa os diversos vocábulos que encontrámos para
designar, quer a água que escorre da azeitona, quando entulhada, ou
aquela azeitona que, pelo seu diminuto tamanho, fica a maior parte das
vezes, perdida nos olivais, quer ainda as diferentes partes que
constituem as múltiplas alfaias oleícolas, como é o caso, por exemplo,
do grande vaso circular do moinho, onde é deitada a azeitona, a fim de
ser moída pelas galgas.
Podemos
afirmar, sem qualquer exagero, que existem, em média, para um mesmo
objecto, cerca de três a cinco vocábulos diferentes, quando esse número
não atinge cifras elevadas, como sucede, por exemplo, com os nomes dados
à azeitona miúda, em número de 34, ou com água-ruça, em número de 20.
Do ponto de
vista etnográfico são múltiplos os factos observados.
Em primeiro
lugar, notámos que, não obstante o processo tradicional do fabrico do
azeite se ter mantido imutável em meados do século XX em várias regiões,
especialmente nas de fracos recursos económicos e de mais difícil
acesso, os tempos modernos, com todas as suas inovações e progressos,
tendem a fazer desaparecer o que de antigo e tradicional existe no nosso
País – o velho e pitoresco lagar de vara, donde, segundo a opinião
popular, o azeite saía melhor e mais saboroso. Recordemos o caso de
lagares como o das Três Aldeias, P. 303, ou o de Remungão, P. 261, ambos
no distrito de Coimbra, e de tantos outros há muito parados e meio
arruinados, quer nos distritos de Braga e Bragança, quer no distrito da
Guarda, hoje substituídos por modernas e mais rendosas fábrica de
azeite. E actualmente, na segunda década do século XXI, ressalvando
algumas raríssimas e louváveis excepções, da grande maioria dos lagares
que visitámos já nem existem vestígios. Contam-se entre estas excepções
um dos lagares mais interessantes por nós visitado no concelho de Góis,
o lagar de vara da Mata, P. 297, que teve a sorte de encontrar uma
associação de defesa do património natural e cultural que soube
preservá-lo e transformar num museu, aberto à curiosidade de todos nós.
Cremos que
este mesmo fenómeno do desaparecimento dos sistemas tradicionais é comum
a outros países produtores de azeite. Do facto nos deu também
testemunho, em 1955, Tomás Buesa Oliver(2),
no passo que transcrevemos:
«Cuando
estuve allí(3)
– abril de 1946 y navidades de 1949 y 1951 – se encontraban clausurados
desde hacía vários años, por la intervención estatal del aceite, todos
los molinos aceiteros. Gracias a la amabilidad de los alcaldes y
secretários de los Ayuntamientos, pude visitar y fotografar las
almazaras. Durante mi último viaje – enero de 1952 – vi cómo la arcaica
maquinaria de la mayoría de los molinos había sido sustituída por outra
más moderna. De esta forma, el modesto y antíguo molino aceitero se
había transformado em Fábrica de Aceite.»
Numa proporção
quase idêntica àquela em que se verifica o desaparecimento do lagar
tradicional português, também a mão-de-obra, sobretudo a masculina, vai
rareando de dia para dia. Daqui resulta não apenas a necessidade de uma
maior automatização de todas as operações de fabrico do azeite, o que
efectivamente tem vindo a verificar-se, mas ainda o aparecimento de
engenhosas e rudimentares invenções, que frequentemente podem ser
encontradas em certos lagares. Lembremo-nos do já referido carrocel
do amor, vagoneta tosca de madeira delineada pelo feitor do lagar, a
fim de facilitar o transporte da azeitona para o moinho. Graças à
acentuada mecanização e automatização de quase todas as operações de
extracção do azeite, o trabalho começa a ser executado em larga escala
pela mulher e, em alguns casos mais modernos, apenas o dono e um
ajudante são indispensáveis para todo o trabalho de produção do azeite.
Ao lado da
indústria olivícola e desta dependente, subsistem (ou subsistiam) ainda
numerosas indústrias de tipo artesanal. Está neste caso a pequena
indústria de fabrico de seiras e capachos, de que encontrámos um exemplo
típico em Valbom, P. 204, no concelho de Pinhel, distrito da Guarda.
Facto de
relativa importância é o da unidade linguística e etnográfica, e
sobretudo desta última, que se verifica entre Portugal e Espanha.
Constituem estes dois países como que um bloco único e independente dos
restantes, sob múltiplos aspectos. Recordem-se, a este propósito, as
grandes afinidades entre a prensa de vara portuguesa e a espanhola,
cujas características marcadamente individualizadoras nos permitem
distingui-la da vara italiana.
Para finalizar
estas conclusões, nada melhor do que uma síntese do fabrico tradicional
do azeite em Portugal.
Os tormentos
da azeitona resumem-se a três fases principais, que analisámos neste
trabalho:
- moagem;
- enseiramento e prensagem;
- decantação e centrifugação do óleo.
Todas elas
foram metodicamente analisadas por nós.
As duas
primeiras, foram-no na década de 1960, quando tivemos de apresentar a
tese para obtenção da nossa licenciatura em Filologia Românica, na
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a orientação do
nosso orientador, o Professor Doutor Manuel de Paiva Boléo.
A terceira e última fase, à semelhança do azeite, esteve em
decantação durante vários anos. Só em 1996, depois de termos elaborado e
defendido a nossa tese de mestrado na Universidade do Minho, relacionada
com as Novas Tecnologias no Ensino, sob a orientação do Professor Doutor
José Henrique dos Santos Chave, voltámos às tecnologias tradicionais
relacionadas com o óleo de Minerva. |