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Fabrico Tradicional do Azeite em Portugal (Estudo Linguístico-Etnográfico), Aveiro, 2014, XIV+504 pp. ©

 

VII

ENSEIRAMENTO E PRENSAGEM

 

c) Nos lagares modernos

Embora do ponto de vista técnico os lagares modernos ofereçam elevado interesse relativamente ao enseiramento e prensagem, a verdade é que esse interesse fica consideravelmente reduzido do ponto de vista linguístico e, sobretudo, etnográfico. Tal facto não nos dispensa, todavia, de nos ocuparmos destes lagares, tanto mais que desprezá-los equivaleria a romper a linha de rumo que tem vindo a nortear este trabalho, isto é, o estudo linguístico-etnográfico do fabrico do azeite dentro dos três tipos fundamentais de lagar determinados no primeiro capítulo.

Como nos importa, sobretudo, focar a nossa atenção sobre o processo tradicional de fabrico do azeite, o nosso estudo incide essencialmente sobre os lagares mais antigos; dos mais modernos, limitamo-nos a uma ou outra consideração de carácter mais geral.

Uma vez triturada a azeitona pelas galgas do moinho, a massa é expulsa mecanicamente através da porta da vasa, caindo numa caixa de grande capacidade, tal como já vimos anteriormente neste mesmo capítulo. Esta caixa, normalmente feita de chapa de aço ou, mais raramente, de madeira ou granito, é conhecida pelos nomes de arca (Bragança, P. 100), caixa ou caixa da massa (Coimbra, P. 288; Guarda, P. 229), caixão (Bragança, P. 90), gamela (Coimbra, P. 257, 277, 285), gamelão (Coimbra, P. 284, 304; Guarda, P. 209, 211), masseira (Guarda, P. 209; Vila Real, P. 78), e tino(42), oscilando as suas dimensões entre 1 e 2 metros de comprimento, por 0,5 ou 1 metro de largura e 0,5 de altura.

 

 
  Figura 109: Nos lagares modernos, a mulher substitui já o homem em várias tarefas (Covelo, P. 54c, freg. Stª Marinha do Zêzere, conc. Baião, dist. Porto).  

Em lagares com maquinaria mais moderna, a massa cai num funil metálico com o formato de um tronco de pirâmide quadrangular com a base voltada para cima, também designado em algumas povoações pelo vocábulo gamela, passando em seguida a uma termo-batedeira. Esta máquina, conhecida vulgarmente apenas pela designação de batedeira e repartida por dois tipos fundamentais – batedeira de tipo horizontal e batedeira de tipo vertical –, compõe-se, para a descrevermos muito sumariamente, de um cilindro de chapa de paredes duplas, entre as quais circula água quente, que vai aquecer a massa, e um enorme parafuso sem-fim que, além de bater e permitir uma boa homogeneização da massa, a vai arrastando até expulsar pelo extremo oposto ao da boca de entrada. Normalmente independente, a batedeira pode apresentar-se acoplada ao moinho, formando como que um todo; é o caso dos chamados moinhos de martelos.

O enseiramento propriamente dito, que se inicia imediatamente a seguir à trituração da azeitona ou após a massa ter passado pela batedeira, quando existente, pode ser efectuado manual ou mecanicamente.

Em certos lagares modernos, podemos encontrar já máquinas que efectuam mecanicamente o enseiramento(43). Ligadas directa ou indirectamente à saída da batedeira, são constituídas, entre outras peças, por um tubo horizontal metálico, que distribui uniformemente a massa pelos capachos, previamente colocados sobre uma placa circular horizontal giratória, tal como pode ser observado nas figuras 109 e 110.

 

 
  Figura 110: Nos lagares mais modernos, a mulher substitui o homem em várias tarefas (Valpaços, P. 80, dist. Vila Real).  

É de notar que as regiões onde mais encontrámos «encapachadores automáticos» foram precisamente aquelas onde, hoje em dia, mais escasseia a mão-de-obra masculina, em virtude da elevada emigração que, nos últimos anos, se tem vindo a processar. Foi, pois, com grande admiração nossa que, nos distritos de Bragança, Guarda, Porto e Vila Real, encontrámos mulheres a desempenhar tarefas que, outrora, competiam exclusivamente ao homem(44). Disto são prova bastante elucidativa as figuras 109 e 110, obtidas respectivamente em Covelo, P. 54 (conc. de Baião), no distrito do Porto, e em Valpaços, P. 80, no distrito de Vila Real. Além de nos mostrarem dois tipos de máquinas de encapachar, permitem-nos verificar ainda que são as mulheres que efectuam quer o encapachamento, quer o chamado desencapachamento.

 Deixemos os lagares mais recentes, cujo interesse etnográfico é bastante reduzido, para nos debruçarmos sobre aqueles onde o fabrico do azeite se processa segundo moldes não muito afastados dos tradicionais.

Começaremos por analisar rapidamente o que se passa no lagar da Fonte do Soito, P. 298, no distrito de Coimbra, onde as seiras ainda não foram substituídas por capachos. Aqui, o enseiramento é feito segundo um processo muito semelhante ao que vimos em relação ao lagar de vara. Acamadas sobre o carro em número de quinze a vinte, as seiras são levadas pelo mestre e ajudante para a prensa. Colocado o carro na sua devida posição, é ligada a bateria, começando o pistão a subir lentamente. À medida que o aperto vai sendo dado, as seiras começam a sofrer grandes desvios, pelo que os dois homens que trabalham no lagar são obrigados a usar compridas varas de madeira; e, ora de um lado, ora do outro, lã vão procurando endireitar o enseiramento com estas improvisadas alavancas, com grave prejuízo para as colunas da prensa que, com o tempo, acabam por ficar torcidas e inutilizadas. Tais varas, conhecidas pelas designações panca (Bragança, P. 100; Coimbra, P. 285b; Vila Real, P. 75) e tranca (Coimbra, P. 280b, 284, 298), são também frequentes em lagares onde as seiras há muito foram substituídas por capachos.

Concluído o primeiro aperto, a pilha de seiras é desmontada, a fim de se proceder ao caldeamento, mediante processo idêntico ao já descrito em relação aos antigos lagares de vara.

 

 
 

Figura 111: A massa é retirada do gamelão para uma gamela circular, vertida sobre o capacho e espalhada à mão (Quinta da Portela, P. 285b, freg. Stº António dos Olivais, Coimbra).

 

No lagar da Quinta da Portela, P. 285, e no de Condeixa-a-Nova, P. 277, ambos no distrito de Coimbra, o enseiramento e prensagem processam-se de idêntica maneira. A massa, acumulada numa grande gamela de ferro à saída da batedeira de tipo vertical (veja-se a figura 111), é deitada com uma pá vulgar dentro de uma pequena bacia circular de folha de Flandres, cuja capacidade corresponde aproximadamente à da quantidade que deve ser distribuída pelos capachos. O trabalho de espalhar a massa é efectuado à mão, competindo exclusivamente aos ajudantes que, no presente caso, são os empregados mais novos do lagar.

 

 
 

Figura 112: O carrinho com a coluna de capachos é deslocado sobre o chamado charrion (Condeixa-a-Nova, P. 277, dist. Coimbra).

 

Formado o castelo, isto é, o conjunto de capachos em pilha (também conhecido por coluna, enseiramento ou encapachamento), o conjunto é levado para o interior da prensa.  No lagar de Condeixa-a-Nova,  o carrinho  desloca-se num tabuleiro metálico com rodas sobre duas calhas, tal como se pode observar na figura 112. Este tabuleiro é conhecido na região pelo vocábulo charrion, palavra de origem francesa cujo étimo é chariot.

Colocado o carro na posição correcta, são encaixadas nos seus bordos as chamadas latas, cujo objectivo é o de impedir que, durante a compressão, caiam gotas ou salpicos de azeite para o chão. Também aqui são usadas as chamadas pancas ou trancas, sempre que o enseiramento começa a sofrer desvio para algum lado.

No fim do aperto, a coluna de capachos é lavada com água quente, que brota em finos jactos de um cano circular existente junto à face inferior da cabeça ou prato forte da prensa.

 

 
  Figura 113: Aspecto do conjunto de prensas e tarefas do lagar de Condeixa-a-Nova, P. 277, no dist. de Coimbra.  

Falámos ao longo deste capítulo de todo um conjunto de actividades ligadas com o enseiramento e com a prensagem da massa da azeitona em diferentes sistemas de prensa, dos quais alguns estão já praticamente extintos no momento presente. Alguns lagares foram especialmente referidos por nós, porque tivemos ainda a oportunidade de assistir aos seus últimos dias de actividade, tendo desaparecido passado muito pouco tempo. Seria interessante efectuar uma nova viagem pelo País e verificar o que ainda resta de todas estas oficinas por nós visitadas nos finais da década de 1960.

Deslocámo-nos há já algum tempo à região de Arouca e tivemos a curiosidade de saber se os lagares visitados neste concelho ainda laboravam. Resta deles a memória nas pessoas mais velhas. Actualmente só é possível evocar a maneira como laboravam graças ao trabalho intitulado Por terras de Arouca. Quatro antigas oficinas oleícolas(45). Além da descrição minuciosa de todas as actividades nos quatro lagares que existiam na região, é possível obtermos uma visão do aspecto que apresentavam graças ao conjunto de fotografias e desenhos, que documentam as diversas fases do fabrico do azeite. Embora aqui tenhamos várias vezes feito referência a estes lagares e deles tenhamos apresentado também algumas imagens, este facto não invalida nem dispensa a leitura do citado artigo.

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(42) – Este vocábulo é apresentado por MARIA MARGARIDA FURTADO MARTINS, op. cit., pág. 122, que o define como «recipiente para onde cai a massa da azeitona depois de sair do moinho (Alentejo)».

(43) – O mais rigoroso seria dizer encapachamento; a verdade, porém, é que o povo conserva o antigo vocábulo enseiramento, empregando-o mesmo quando se trata não já de seiras, mas de capachos.

(44)O facto de encontrarmos mulheres a trabalhar em lagares de azeite torna-se para nós tanto mais surpreendente, se o compararmos com o que se passa relativamente a práticas por nós registadas nas mesmas regiões, segundo as quais a certas mulheres é vedado entrar na azenha ou engenho durante o fabrico do azeite. Segundo as crenças locais, a mulher, pelo seu estado de impureza e pelo seu odor natural, é prejudicial ao dourado óleo. Conforme nos foi explicado por alguns informadores − e com que convicção alguns o fizeram! – o azeite pode adquirir mau gosto e tornar-se impuro. Só assim se justifica o termos deparado, por mais de uma vez, com objectos vários pregados à cabeça das varas ou colocados por cima das tarefas, tais como cruzes rústicas feitas de ramos de oliveira e outras plantas, laranjas espetadas em palitos e formando uma cruz, estrelas de cinco pontas feitas de paus ou simplesmente desenhadas nas varas, amuletos vários, etc. A título exemplificativo, observe-se a figura apresentada no capítulo VI; verificamos que, no topo ou cabeça da vara, existe uma cruz formada pela intersecção, segundo nos pareceu, de restos de esparto de antiga seira.

(45) – HENRIQUE J. C. DE OLIVEIRA, Por terras de Arouca. Quatro antigas oficinas oleícolas, in: "Boletim da Associação para o Estudo e Defesa do Património Natural e Cultural da Região de Aveiro (ADERAV), nº 3, 1980, págs. 8-16, nº 4, 1981, págs. 5-11, nº 5, 1982, págs. 11-16. Este mesmo artigo foi posteriormente publicado na revista "Estudos Aveirenses. Revista do ISCIA", nº 2, Abril de 1994, págs. 83-128.

 

 

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