OPERAÇÃO DE MOAGEM
Sabemos já o que se entende por
moagem,
quais os diversos nomes para esta operação e os termos para designar a
quantidade de azeitona moída de cada vez. Importa agora descrever como e
em que ambiente decorre a moenda.
a) - Nos lagares tocados a bois
Deslocámo-nos ao distrito do Porto, a fim de visitarmos alguns lagares
antigos, cujos moinhos são ainda accionados por bois.
O primeiro engenho visitado foi o de Pedregal, P. 51, no concelho de
Baião. O lagar é separado do portão de entrada por um amplo pátio, que
tivemos de atravessar com cuidado, apalpando o terreno, pé aqui, pé
acolá, acompanhados pelo sonoro e desagradável chapinhar dos sapatos,
que se enterravam na lama e a custo queriam despegar-se. Empurrámos uma
ampla e pesada porta e entrámos. Durante os primeiros segundos,
achámo-nos mergulhados em profunda escuridão. A atmosfera era
irrespirável. Sufocava-se. Para cúmulo, as lentes dos óculos ficaram
carregadas de vapor, tapando-nos as já de si confusas
imagens. Gravador e máquina fotográfica encheram-se de pequenas
gotículas de água.
Aos poucos, a primeira impressão foi-se apagando. Os olhos habituaram-se
ao ambiente, e conseguimos perceber a agitação reinante no interior da
movimentada oficina.
Logo à nossa frente, dois pacientes bois moviam-se lentamente à roda do
baso, espicaçados pelo boieiro, que os acompanhava agarrado à
manjarra e de vara na mão. Ao fundo, dois, três, quatro homens,
moviam-se de um para o outro lado, a regar as seiras com água a ferver e
a mexer o azeite com uma vareta, que em breve ficámos a saber que
era de marmeleiro.
– Auuu! – disse bruscamente o homem que conduzia os animais, com um som
fechado e prolongado, semelhando lamentoso uivo de lobo.
Os bois pararam; todos os olhos se voltaram para nós, intrigados e
curiosos.
«Aí vem mais um fiscal!»
– pensaram todos, como depois, conhecido o intruso e ganha a confiança,
acabaram por nos confidenciar.
Passada a surpresa e esquecidos da nossa presença, ouviu-se um «eiii!»
prolongado do boieiro, dando uma vez mais início à lenta e penosa
peregrinação dos pachorrentos animais, numa viagem sem destino à volta
do moinho, acompanhados pelo surdo rolar das pedras sobre a azeitona,
até esta ficar reduzida a uma pasta informe e uniforme. Se acaso algum
boi afrouxava a marcha, vencido pelo cansaço ou entorpecido pela
monotonia da passeata sem destino, lá estava o homem da vara para os
espicaçar e fazer andar. E lenta, lentamente, no meio de uma atmosfera
espessa e abafada, lá continuaram os dois animais o seu lento peregrinar
à volta do pio, perseguidos pelo homem que os não deixava parar.
Aqui e além, junto ao
pastor,
vislumbrava-se uma mancha líquida e brilhante. Era o azeite virgem,
primeiro prenúncio de que a azeitona iria fundir bem.
Deixámos o Pedregal e fomos ao lagar do Cadeado, P. 54a, não muito longe
da povoação onde há pouco havíamos estado.
O ambiente deste novo lagar, carregado já de muitos anos e de vara
enegrecida pelo tempo e pelos fumos da caldeira, é um pouco mais
respirável.
A moagem faz-se numa sala quadrada, ao lado da outra onde espremem a
massa. A luz entra por uma pequena janela, juntando-se à produzida por
uma lâmpada baça, colocada por cima do moinho. O chão está sempre
coalhado de canas de milho, que o único boi, então conduzido por um
rapazito de boina preta e vara ao ombro, vai pisando no seu lento
caminhar. A um canto, um animal restabelece as forças, preso por uma
correia à argola cravada na parede, imediatamente acima da manjedoura,
que a fotografia que nós tirámos registou para sempre ou,
pelo menos, enquanto a fotografia existir (veja-se
▲ a figura 17).
Ao contrário do normal, o boi é preso directamente à
manjarra,
que lhe assenta sobre a almofada da molhelha(10),
tornando desnecessário o jugo. Por isso o rapaz ia andando não atrás do
animal, mas a seu lado, sempre em amena conversa com ele, para o
estimular ou estimularem-se na penosa e entontecedora caminhada em
círculos à volta do recipiente do moinho.
Visitado o distrito do Porto, passámos ao concelho de Carrazeda de
Ansiães, no distrito de Bragança.
Felizmente que o tempo melhorara. Há já alguns dias que as neves tinham
derretido aquela extensa toalha branca e fria, que nos atrasara a viagem
por terras do norte e nos fez alterar todos os planos.
Sob um sol amareliço, sol de inverno e de pouca dura, deslocámo-nos
ao lagar da Fonte Longa, P. 86.
O caminho para este lagar, em dias de chuva, transforma-se num grande
lamaçal. A custo se consegue dar com o lagar. Construção igual ao
restante casario, confunde-se com ele, tornando-se difícil ao
visitante
encontrá-lo.
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Figura
59:
Aspecto
da moenda no lagar de Fonte Longa, P. 86, conc. Carrazeda de
Ansiães, dist. Bragança. |
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Quem entra no seu interior, depara imediatamente com o farneiro,
de paredes muito baixas e meio enterrado num chão coberto de palha (ver
figura 59), à roda do qual andam duas vacas a puxar as pesadas galgas do
moinho.
Atrás dos animais, costuma andar um homem com uma vara comprida, a que
na região dão o nome de rodo, conforme nos disse um informador. É
com essa vara que o empregado vai empurrando para baixo a massa que se
agarra às paredes do farneiro, a fim de ser apanhada pelo
rasto das galgas e ficar bem moída.
As mós deste moinho caracterizam-se por apresentar um pequeno diâmetro e
uma ter aproximadamente o dobro da largura da outra.
Feita a descrição do ambiente em que decorre a moagem, surgem na nossa
mente duas perguntas, que têm razão de ser:
– Quanto tempo demora um moinho a fazer? Como sabem que a massa está
pronta para espremer?
O tempo necessário para a massa ficar em condições é muito variável.
Depende da quantidade e da qualidade da azeitona, podendo demorar uma,
duas ou mais horas.
Segundo Dalla Bella(11),
em 1784, nos lagares movidos por bois, «com o trabalho de três ou
quatro homens apenas se chegava a moer em 24 horas quatro moinhos de
azeitonas, havendo duas varas para espremê-las». Actualmente, os
factos pouca mudança sofreram. Vejamos então a conversa que tivemos com
um informador no lugar do Dianteiro, P. 256, durante uma visita ao lagar
da terra.
O lugar do Dianteiro é uma pequena povoação dos arredores de Coimbra,
outrora pertencente, segundo Américo Costa(12),
à freguesia de Santo António dos Olivais e, actualmente, à freguesia de
Torres do Mondego.
Do lagar desta povoação já nós dissemos alguma coisa, a propósito do
moinho(13).
Ouçamos a conversa com o informador, um dos donos do lagar:
«–
Ouça lá, Senhor José, isto é puxado por meio de bois?
– Pois! Isto agora ingàt'àqui um cambão, e os bois seguem em
todà bolta, à roda, à bolta. Nunca tem paragem. Só param q'ando querem
descansar e. O mais de resto, and'àqui duas horas a
moere, qu'inquanto não moerem um moinho,
àzeitona que não esteja bem preparada a ir lá p'ra cima, os bois só se
tiram... já qui tibémos uma bez, p'ra moerem um moinho d'azeite, andaram
aqui os bois sèt'horas.
– Sem parar?
– Não! Tiberam que parar e tiberam que se tirar pa irem comer,
porqu'àzeitona deu im ser rija de moer e num se conseguiu uns bois a
moerem um moinho grande d'azeitona...
– Um moinho?
– Pois. Chama-se isso um moinho. Cada tabela disto, a gente cá
é que tabela àzeitona que pode ser.
– Portanto, a quantidade que se mói de cada vez é um moinho?
– Pois, porque não pode ser muito, que há-de caber... cada moinho
que se mói aqui há-d'ir acolá p'ra cima p'r'àquela coisa. E depois
d'acolá bai p'r'àquelas seiras que o senhor vê».
A massa é considerada em condições de ir para a prensa quando,
apalpando-a, verificam que já não apresenta nenhumas
carabunhas
(Vila Real, P. 78) ou carbunhas (Bragança, P. 85), isto é,
nenhuns caroços. Segundo o nosso amável interlocutor, no lagar do
Dianteiro, a massa está em condições quando, ao fim de duas, três e
quatro horas, está completamente reduzida a pasta. Ouçamos as suas
palavras e o resto da conversa, que apresenta interesse. Além de nos
fornecer elementos novos, é um espelho fiel da linguagem tipicamente
popular.
«–
E como é que sabem quando a azeitona está boa?
– Apalpa-se. E depois a gente bai, essas galgas passam por cima
d'àzeitona, inté continuam, àzeitona bai inteira, não é?, e em sendo
istrussegada, qu'isto dê aqui uma data de boltas por cima disto, pegà
ficar amassada, amassada, amassada, q'anto mais amassada é, q'anto mais
boltas dá, mais o caroço pega-s'a partir, pega-s'a misturar a pele com
aquela coisa, inté que fica tudo, tud'esmagado. Depois, há-de lebar aqui
duas, três horas e quatr'a moer, e inquanto a gente for e apalpar a
massa e qu i a massa, a gente não encontre caroço
ninhum na mão... inquanto incontrarmos caroço num'stá moída».
Enfim, para
fundir
bem, é preciso que a azeitona fique bem esmagada; e, para isso, há que a
esmagar com o caroço, pois que as duas partes são importantes para a
produção do azeite. Disto tem consciência o próprio povo:
«Fundir
─ diz-nos o Senhor José ─ é o azeite que cai, pois, o óleo, o tal
óleo que cai p'ra baixo. Quer dizer, se formos separar,
não se pode
fazer isso... [Mas há já pessoas que fizeram experiências](14),
que fizeram desbulhar um'àzeitona e fazer um moinho de caroços
só, à parte, e de massa. Nem uma coisa deu resultado, nem outra. Tem de
ser tudo misturado, inté que para a massa ficari uma mistura bem feita
(...) a gente daqui depois bai, apalpá massa e a massa depois de muito
bem amassadinha, muito bem preparada, sai por antre os dedos (...). Se
tem caroço, tem que dar mais umas boltinhas; se por acaso a gente não
encontra caroço, está pronto. Bois fora, parou o ingenho, parou
esta construção. E depois então os bois bão descansar e a gente limp'à
massa e depois bai acartar à gamela lá p'ra cima».
Antes de terminarmos a descrição de como é feita a moenda nos lagares
tocados a bois, vejamos rapidamente como é transportada a azeitona para
o pio.
Em Bragança, P. 92, é o cagarracho quem tira a azeitona da tulha
com uma pá, lançando-a num cesto de vime com duas asas. Este é levado
pela aguadeira ou pelo boieiro, que a despeja na
alfarja.
No distrito do Porto, no lagar de Cadeado, P. 54a, onde assistimos a uma
fase do trabalho, a azeitona é despejada dos sacos em que veio
directamente no pio, à medida que vai sendo moída.
Em Vila Real, P. 76, quando chega a altura da moagem, vai o rapaz buscar
as sacas a um coberto e despeja-as três a três no pio.
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