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Fabrico Tradicional do Azeite em Portugal (Estudo Linguístico-Etnográfico), Aveiro, 2014, XIV+504 pp. ©

 

IV

A MOAGEM

 

OPERAÇÃO DE MOAGEM

Sabemos já o que se entende por moagem, quais os diversos nomes para esta operação e os termos para designar a quantidade de azeitona moída de cada vez. Importa agora descrever como e em que ambiente decorre a moenda.

 

a) - Nos lagares tocados a bois

Deslocámo-nos ao distrito do Porto, a fim de visitarmos alguns lagares antigos, cujos moinhos são ainda accionados por bois.

O primeiro engenho visitado foi o de Pedregal, P. 51, no concelho de Baião. O lagar é separado do portão de entrada por um amplo pátio, que tivemos de atravessar com cuidado, apalpando o terreno, pé aqui, pé acolá, acompanhados pelo sonoro e desagradável chapinhar dos sapatos, que se enterravam na lama e a custo queriam despegar-se. Empurrámos uma ampla e pesada porta e entrámos. Durante os primeiros segundos, achámo-nos mergulhados em profunda escuridão. A atmosfera era irrespirável. Sufocava-se. Para cúmulo, as lentes dos óculos ficaram carregadas de vapor, tapando-nos as já de si confusas imagens. Gravador e máquina fotográfica encheram-se de pequenas gotículas de água.

Aos poucos, a primeira impressão foi-se apagando. Os olhos habituaram-se ao ambiente, e conseguimos perceber a agitação reinante no interior da movimentada oficina.

Logo à nossa frente, dois pacientes bois moviam-se lentamente à roda do baso, espicaçados pelo boieiro, que os acompanhava agarrado à manjarra e de vara na mão. Ao fundo, dois, três, quatro homens, moviam-se de um para o outro lado, a regar as seiras com água a ferver e a mexer o azeite com uma vareta, que em breve ficámos a saber que era de marmeleiro.

Auuu! – disse bruscamente o homem que conduzia os animais, com um som fechado e prolongado, semelhando lamentoso uivo de lobo.

Os bois pararam; todos os olhos se voltaram para nós, intrigados e curiosos.

«Aí vem mais um fiscal!» – pensaram todos, como depois, conhecido o intruso e ganha a confiança, acabaram por nos confidenciar.

Passada a surpresa e esquecidos da nossa presença, ouviu-se um «eiii!» prolongado do boieiro, dando uma vez mais início à lenta e penosa peregrinação dos pachorrentos animais, numa viagem sem destino à volta do moinho, acompanhados pelo surdo rolar das pedras sobre a azeitona, até esta ficar reduzida a uma pasta informe e uniforme. Se acaso algum boi afrouxava a marcha, vencido pelo cansaço ou entorpecido pela monotonia da passeata sem destino, lá estava o homem da vara para os espicaçar e fazer andar. E lenta, lentamente, no meio de uma atmosfera espessa e abafada, lá continuaram os dois animais o seu lento peregrinar à volta do pio, perseguidos pelo homem que os não deixava parar.

Aqui e além, junto ao pastor, vislumbrava-se uma mancha líquida e brilhante. Era o azeite virgem, primeiro prenúncio de que a azeitona iria fundir bem.

Deixámos o Pedregal e fomos ao lagar do Cadeado, P. 54a, não muito longe da povoação onde há pouco havíamos estado.

O ambiente deste novo lagar, carregado já de muitos anos e de vara enegrecida pelo tempo e pelos fumos da caldeira, é um pouco mais respirável.

A moagem faz-se numa sala quadrada, ao lado da outra onde espremem a massa. A luz entra por uma pequena janela, juntando-se à produzida por uma lâmpada baça, colocada por cima do moinho. O chão está sempre coalhado de canas de milho, que o único boi, então conduzido por um rapazito de boina preta e vara ao ombro, vai pisando no seu lento caminhar. A um canto, um animal restabelece as forças, preso por uma correia à argola cravada na parede, imediatamente acima da manjedoura, que a fotografia que nós tirámos registou para sempre ou, pelo menos, enquanto a fotografia existir (veja-se a figura 17).

Ao contrário do normal, o boi é preso directamente à manjarra, que lhe assenta sobre a almofada da molhelha(10), tornando desnecessário o jugo. Por isso o rapaz ia andando não atrás do animal, mas a seu lado, sempre em amena conversa com ele, para o estimular ou estimularem-se na penosa e entontecedora caminhada em círculos à volta do recipiente do moinho.

Visitado o distrito do Porto, passámos ao concelho de Carrazeda de Ansiães, no distrito de Bragança.

Felizmente que o tempo melhorara. Há já alguns dias que as neves tinham derretido aquela extensa toalha branca e fria, que nos atrasara a viagem por terras do norte e nos fez alterar todos os planos.

Sob um sol amareliço, sol de inverno e de pouca dura, deslocámo-nos ao lagar da Fonte Longa, P. 86.

O caminho para este lagar, em dias de chuva, transforma-se num grande lamaçal. A custo se consegue dar com o lagar. Construção igual ao restante casario, confunde-se com ele, tornando-se difícil ao visitante encontrá-lo.

 

 
  Figura 59: Aspecto da moenda no lagar de Fonte Longa, P. 86, conc. Carrazeda de Ansiães, dist. Bragança.  

Quem entra no seu interior, depara imediatamente com o farneiro, de paredes muito baixas e meio enterrado num chão coberto de palha (ver figura 59), à roda do qual andam duas vacas a puxar as pesadas galgas do moinho.

Atrás dos animais, costuma andar um homem com uma vara comprida, a que na região dão o nome de rodo, conforme nos disse um informador. É com essa vara que o empregado vai empurrando para baixo a massa que se agarra às paredes do farneiro, a fim de ser apanhada pelo rasto das galgas e ficar bem moída.

As mós deste moinho caracterizam-se por apresentar um pequeno diâmetro e uma ter aproximadamente o dobro da largura da outra.

Feita a descrição do ambiente em que decorre a moagem, surgem na nossa mente duas perguntas, que têm razão de ser: – Quanto tempo demora um moinho a fazer? Como sabem que a massa está pronta para espremer?

O tempo necessário para a massa ficar em condições é muito variável. Depende da quantidade e da qualidade da azeitona, podendo demorar uma, duas ou mais horas.

Segundo Dalla Bella(11), em 1784, nos lagares movidos por bois, «com o trabalho de três ou quatro homens apenas se chegava a moer em 24 horas quatro moinhos de azeitonas, havendo  duas varas para espremê-las». Actualmente, os factos pouca mudança sofreram. Vejamos então a conversa que tivemos com um informador no lugar do Dianteiro, P. 256, durante uma visita ao lagar da terra.

O lugar do Dianteiro é uma pequena povoação dos arredores de Coimbra, outrora pertencente, segundo Américo Costa(12), à freguesia de Santo António dos Olivais e, actualmente, à freguesia de Torres do Mondego.

Do lagar desta povoação já nós dissemos alguma coisa, a propósito do moinho(13). Ouçamos a conversa com o informador, um dos donos do lagar:

«– Ouça lá, Senhor José, isto é puxado por meio de bois?

Pois! Isto agora ingàt'àqui um cambão, e os bois seguem em todà bolta, à roda, à bolta. Nunca tem paragem. Só param q'ando querem descansar e. O mais de resto, and'àqui duas horas a moere, qu'inquanto não moerem um moinho, àzeitona que não esteja bem preparada a ir lá p'ra cima, os bois só se tiram... já qui tibémos uma bez, p'ra moerem um moinho d'azeite, andaram aqui os bois sèt'horas.

– Sem parar?

Não! Tiberam que parar e tiberam que se tirar pa irem comer, porqu'àzeitona deu im ser rija de moer e num se conseguiu uns bois a moerem um moinho grande d'azeitona...

– Um moinho?

Pois. Chama-se isso um moinho. Cada tabela disto, a gente cá é que tabela àzeitona que pode ser.

– Portanto, a quantidade que se mói de cada vez é um moinho?

Pois, porque não pode ser muito, que há-de caber... cada moinho que se mói aqui há-d'ir acolá p'ra cima p'r'àquela coisa. E depois d'acolá bai p'r'àquelas seiras que o senhor vê».

A massa é considerada em condições de ir para a prensa quando, apalpando-a, verificam que já não apresenta nenhumas carabunhas (Vila Real, P. 78) ou carbunhas (Bragança, P. 85), isto é, nenhuns caroços. Segundo o nosso amável interlocutor, no lagar do Dianteiro, a massa está em condições quando, ao fim de duas, três e quatro horas, está completamente reduzida a pasta. Ouçamos as suas palavras e o resto da conversa, que apresenta interesse. Além de nos fornecer elementos novos, é um espelho fiel da linguagem tipicamente popular.

«– E como é que sabem quando a azeitona está boa?

Apalpa-se. E depois a gente bai, essas galgas passam por cima d'àzeitona, inté continuam, àzeitona bai inteira, não é?, e em sendo istrussegada, qu'isto dê aqui uma data de boltas por cima disto, pegà ficar amassada, amassada, amassada, q'anto mais amassada é, q'anto mais boltas dá, mais o caroço pega-s'a partir, pega-s'a misturar a pele com aquela coisa, inté que fica tudo, tud'esmagado. Depois, há-de lebar aqui duas, três horas e quatr'a moer, e inquanto a gente for e apalpar a massa e qu i a massa, a gente não encontre caroço ninhum na mão... inquanto incontrarmos caroço num'stá moída».

Enfim, para fundir bem, é preciso que a azeitona fique bem esmagada; e, para isso, há que a esmagar com o caroço, pois que as duas partes são importantes para a produção do azeite. Disto tem consciência o próprio povo:

«Fundir ─ diz-nos o Senhor José ─ é o azeite que cai, pois, o óleo, o tal óleo que cai p'ra baixo. Quer dizer, se formos separar, não se pode fazer isso... [Mas há já pessoas que fizeram experiências](14), que fizeram desbulhar um'àzeitona e fazer um moinho de caroços só, à parte, e de massa. Nem uma coisa deu resultado, nem outra. Tem de ser tudo misturado, inté que para a massa ficari uma mistura bem feita (...) a gente daqui depois bai, apalpá massa e a massa depois de muito bem amassadinha, muito bem preparada, sai por antre os dedos (...). Se tem caroço, tem que dar mais umas boltinhas; se por acaso a gente não encontra caroço, está pronto. Bois fora, parou o ingenho, parou esta construção. E depois então os bois bão descansar e a gente limp'à massa e depois bai acartar à gamela lá p'ra cima».

Antes de terminarmos a descrição de como é feita a moenda nos lagares tocados a bois, vejamos rapidamente como é transportada a azeitona para o pio.

Em Bragança, P. 92, é o cagarracho quem tira a azeitona da tulha com uma pá, lançando-a num cesto de vime com duas asas. Este é levado pela aguadeira ou pelo boieiro, que a despeja na alfarja.

No distrito do Porto, no lagar de Cadeado, P. 54a, onde assistimos a uma fase do trabalho, a azeitona é despejada dos sacos em que veio directamente no pio, à medida que vai sendo moída.

Em Vila Real, P. 76, quando chega a altura da moagem, vai o rapaz buscar as sacas a um coberto e despeja-as três a três no pio.

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(10) – Como já foi referido no capítulo III, os bois são normalmente atrelados à almanjarra ou cambão por meio de um cadeado ou de uma vara chamada tamoncela, tamuão, tamucela ou temunzela. É esta vara que é presa ao jugo, assente sobre as molhelhas, que protegem o cachaço dos animais.

(11) – JOÃO ANTÓNIO DALLA BELLA, op. cit., pág. 53, parág. LXII.

(12) – AMÉRICO COSTA, Dicionário corográfico de Portugal continental e insular, 1938, vol. VI, pág. 41, 2ª col.

(13)Recorde-se o que acerca deste lagar foi dito no capítulo III e do qual se apresentou uma fotografia, na figura 55.

(14) – O que está entre parêntesis rectos não é do informador. Tivemos que o acrescentar, para tornar a transcrição do registo magnético compreensível, já que um ruído do exterior se sobrepôs à fala do informador, dificultando a audição.

 

 

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