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Fabrico Tradicional do Azeite em Portugal (Estudo Linguístico-Etnográfico), Aveiro, 2014, XIV+504 pp. ©

 

II

Transporte e conservação da azeitona

 

NOMES PARA ÁGUA-RUÇA

Dissemos algumas linhas atrás que as tulhas tinham o fundo ligeiramente inclinado e possuíam uma saída para a água-ruça, que as azeitonas libertam.

Por água-ruça, termo que é mais do domínio técnico do que da linguagem corrente, pretende-se indicar aquele líquido escuro e ácido que a azeitona liberta, quando conservada em tulhas, cestos, ou de outro modo qualquer. Esta mesma designação é usada para indicar o líquido que se separa do azeite, quando em decantação nas tarefas, e que é praticamente o mesmo, embora misturado com a água das caldas.

Figura 16: Monte de azeitona com uma tabuleta artesanal de cana para identificação do proprietário.

O termo foi registado em várias regiões, ao lado de outros que normalmente o substituem. O povo conhece-o, mas raramente o emprega. A prova desta afirmação podemos encontrá-la nas respostas por nós recolhidas em conversas com vários informadores e de que reproduzimos dois exemplos:

«A almofeira é a água-ruça (...). Assim nós aqui é almofeira sempre, mesmo aqui no lagar. O que separa do azeite pra fora é almofeira.» – Braga, P. 29.

«O líquido que escorre da azeitona durante o tempo em que está armazenada é almofeira ou água-ruça.» – Leiria, P. 363.

É interessante registar o facto de que o próprio povo tem a noção de que água-ruça não pertence à esfera do seu campo linguístico, sendo apenas dos livros. É o que o exemplo seguinte nos permite concluir:

«No princípio sai azeite simples. Òdepois já sai junto com água, que chamam-la almofeira. Outros chamam-l'água-ruça, assim como vem nos libros (...).» – Coimbra, P. 258.

 

 
Figura 17: O canto da sala do engenho serve frequentemente de manjedoura (Cadeado, Stª Marinha do Zêzere, Baião, dist. Porto).

Registámos o emprego de água-ruça nos distritos de Aveiro (P. 116), Braga (P. 28, 29, 31, 32), Bragança (P. 99), Coimbra (P. 236, 238, 245b, 262), Leiria (P. 363, 348) e Vila Real (P. 75, 80).

Antes de entrarmos no estudo pormenorizado de cada um dos termos com a significação de água-ruça, façamos a sua enumeração, indicando o número correspondente à frequência de casos em que surgiram:

 

água chilra – 2

água churra – 12

água zurra – 1

albufeira – 6

almofeira – 44

alpechim – 12

alpiche – 3

amufeira – 1

amurca – 1

azeabra – 1

azenagre – 1

azenegre – 1

azenhevre – 1

azeabre – 1

azebre – 1

aziabre – 1

aziaga – 1

aziagra – 1

aziagre – 1

azinagre – 3

azinhaga – 2

reima – 3

salmoeira – 1

sangra – 7

zorra – 3

 

No distrito de Vila Real, concelho de Valpaços (P. 80, 81), surge-nos água-chilra, ao lado de água-churra. Esta última palavra está mais difundida que a primeira. Assim, encontramo-la nos distritos de Aveiro (P. 116, 120, 164, 165, 166, 167), Bragança (P. 100), Porto (P. 52, 53, 57) e Vila Real (P. 73, 78). No distrito do Porto (P. 51), foi registado ainda o termo água zurra. Destes, apenas o primeiro se encontra no dicionário de António de Morais Silva, 10ª ed., vol. I, pág. 498.

 

Albufeira e almofeira (também grafado almufeira) são palavras que teremos de analisar em comum, pois que a segunda não é mais do que o resultado de um fenómeno fonético operado na primeira. É interessante notar o facto de que, sendo o primeiro o que está mais próximo do seu étimo árabe – al-buhajra –, nem por isso é o mais documentado no nosso país. Efectivamente, albufeira surge-nos muito raramente (foi registado apenas em seis povoações), ao passo que almofeira se encontra praticamente difundido por uma vasta área (44 povoações).

Arnald Steiger(6), que se ocupou do estudo dos arabismos no ibero-românico e no siciliano, aponta como resultado do árabe al-buhajra apenas o topónimo Albufeira, relativamente a Portugal, que ocupa a área de Lisboa, Estremadura e Algarve. A verdade é que do termo árabe subsistiu no nosso território não só o topónimo, como também um nome comum para designar a água que escorre das azeitonas antes de se fazer o azeite, enquanto entulhadas, e se separa também do óleo durante a decantação. O termo árabe deixou, portanto, um vestígio bem mais vasto no nosso território, especialmente na sua derivada almofeira, que ocupa uma área que se estende até ao distrito de Aveiro.

A região onde os vocábulos albufeira e almofeira estão mais representados é a de Coimbra, como se pode ver no mapa nº 3. Quer um, quer o outro termo, apresentam uma antiquíssima história relativamente a esta zona.

Albufeira surge-nos num Regimento de Lagar de Azeite, passado em Coimbra no ano de 1792, segundo se deduz dos apagados vestígios da data. Nele se diz, pág. 6, parágrafo 22:

«Aos ditos mestres pertence terem as águas da albofeira em canouces grandes, e bem vedados, em tal maneira, que não possam deles sair a bom recado, por ser coisa muito odiosa, e perigosa para o povo, e a não soltarão, senão uma hora dada da noite, sob pena de mil reis, metade para esta Cidade, e a outra para quem os acusar, e até à dita hora a soltarão, e não daí por diante, e daí a duas horas a taparão, sob a dita pena.»

Almofeira surge-nos em 1784, na já citada obra de Dalla Bella(7):

«... O azeite da segunda espremedura se une na caldeira com o da primeira, juntamente com a água quente, e com a almofeira; e se deixa ali escorrer por espaço de quase 12 horas (...)

Segundo o mesmo Autor, na obra citada, existia o costume de se embeber a lenha com almofeira para evitar o fumo.

No glossário apresentado por Augusto César Pires de Lima(8), a almofeira é apresentada como servindo «para destruir ervas e insectos nocivos e como remédio em algumas doenças dos ho­mens, das ovelhas e dos bois

Além dos sentidos apontados para almofeira, surge-nos em Famalicão, P. 143, e Paradela, P. 254, com acepções diferentes do normal: «restos da azeitona que ficam nas seiras depois de prensadas» (I.L.B., 1961, P. 254) e «massa resultante da moagem da azeitona» (I.L.B., 1942, P. 143).

Da análise dos dois vocábulos em questão – albufeira e almofeira –, tudo leva a crer que o primeiro apresenta acentuada tendência para desaparecer, pois o número de casos em que aparece, por vezes ao lado de almofeira, é bastante pequeno. Em contrapartida, o segundo mantém-se bastante vivo, ocupando uma área vastíssima. Se tal fenómeno está efectivamente a processar-se, a sua origem remonta ao século XVIII, como as duas transcrições atrás apresentadas, relativamente à zona de Coimbra, deixam supor. Note-se que Dalla Bella(9), que ao descrever a manufactura do azeite em Portugal toma como exemplo o que se passa nesta região, não hesita em empregar o termo almofeira, em detrimento de albufeira.

Tavares da Silva(10) apresenta a variante amufeira, como pertencente à província da Beira Baixa.

Os vocábulos que iremos agora analisar são alpechim, alperche, alperchim e alpiche. De todos, é sem dúvida o primeiro o mais representado em Portugal (distrito de Bragança, P. 90, 92, 98; Coimbra, P. 236, 237, 238, 245a, 245b, 245d; Guarda, P. 196, 197; Viseu, P. 188). Alperche e alperchim encontram-se registados na "Revista Lusitana"(11), vol. V, pág. 25, e o segundo ainda no glos­sário apresentado por Pires de Lima, pág. 208.

Alpiche encontra-se documentado em vários trabalhos. António Cardoso de Menezes(12) define-o como «água de vegetação da azeitona». Álvaro Veiga, num artigo publicado na revista "Douro-Litoral", IIIª série, 1948, pág. 67, dá-o como pertencente à região de Carrazeda de Ansiães. Tavares da Silva, pág. 44, indica-o como pertencente à Beira Alta, definindo-o do seguinte modo: «água de vegetação da azeitona, carregada de albumina e de matéria negra e amarga, resultante da acção da água das chuvas e mesmo do orvalho e dos princípios amoniacais que contêm, sobre  o óleo e que com ele saem na espremedura

No mapa número 3 apenas se indica o vocábulo alpechim, sem dúvida o que apresenta maior vitalidade, como os inquéritos o demonstraram.

Sobre o étimo de alpechim, o dicionário de Augusto Moreno(13) diz-nos ter sido formado do árabe al mais o latim FAECINU(M). A verdade é que o étimo é obscuro, tornando-se por isso impossível apontá-lo com segurança. Corominas(14) não o refuta, indicando-o como muito possível do ponto de vista semântico. Além disso, segundo o mesmo Autor, a passagem de c a ch não oferece dificuldades. O problema reside em explicar a passagem de f a p que, segundo ele, só ocorre em casos raros e incertos;  e,  nos poucos que são prováveis,  devido a ultra-correcção.

 

O vocábulo amurca, apresentado por Tavares da Silva, pág. 49, e registado já em alguns dicionários da língua portuguesa, tem o seu étimo na correspondente latina AMURCA(M). Encontra-se representado no catalão e aragonês sob a forma morca e em vários dialectos italianos.

 

Grupo de palavras que, à primeira vista, parecem ser da mesma família, é o seguinte: azeabra, azenagre, azenegre, azenhevre, azeabre, azebre, aziabre, aziaga, aziagra, azinagre e azinhaga.

Azenegre é apresentado por Jaime Lopes Dias(15), que o indica como sendo próprio da Beira Baixa. Azenhevre é apresentado por Alice Pereira Branco, na sua tese, já anteriormente citada, sobre o concelho da Covilhã. Azinagre foi registado por Jaime Lopes Dias e por Tavares da Silva. Os restantes vocábulos foram por nós encontrados em inquéritos directos, quer do I. L. B., quer dos efectuados para a realização do presente trabalho.

A dificuldade apresentada por estas formas reside essencialmente no estudo da sua etimologia. Por outro lado, os dicionários não apresentam a maioria delas. Os únicos vocábulos registados são azebre, com o sentido de «verdete de cobre; aloés; (ant.) amargura; mortificação; (pop.) malícia; finura; gaiatice» e azinhavre, com o sentido de 'água-ruça'.

À primeira vista parecem pertencer toda estas palavras à mesma família. Uma análise mais cuidada permite-nos dividi-las em dois grupos: o primeiro, formado por azeabra, azeabre, azebre e aziabre; o segundo, pelas restantes formas.

Dissemos há pouco que azebre tinha, entre outros, o sentido de 'amargura'. As águas libertas pela azeitona caracterizam-se pelo seu gosto bastante amargo e ácido. Há, portanto, uma certa relação semântica, pelo que tudo nos leva a fazer crer ser azebre ('amargura') a mesma palavra para 'água-ruça'. Assim, o primeiro grupo de palavras terá como étimo o árabe aç-cibar, de que ficaram várias formas na Península, como o espanhol acíbar, o catalão acèvar, o valenciano antigo açever, o português azebre, o espanhol zabila, etc. As evoluções sofridas por azebre terão sido:

aç-cibar > port. azebre > aziabre > aziabra > azeabre > azeabra

O segundo grupo assenta no étimo árabe azzinjar. As formas existentes fazem pressupor dois tipos de evolução na passagem da palavra árabe ao português.

Segundo Steiger (obra já citada, pág. 39), «sabido es que en las voces patrimoniales del portugués la -n- intervocálica evoluciona a mera resonancia nasal, que en algunos casos se mantiene, y en mucho mayor grado, sobre todo en sílaba átona, desaparece totalmente.»

Ora, da análise da evolução dos dois tipos, que veremos, nenhum dos fenómenos apontados por Steiger parece ocorrer. Se não, vejamos.

No primeiro tipo, em que se incluirão azinhavre, azinhevre e azinhaga, a sequência -ni- sofreu uma evolução que é, aliás, normal na passagem do latim ao português, palatalizando-se. Esquematicamente, podemos apresentar a seguinte evolução: 

azzinjar > *azinhare > azinha v re > azinhevre

No segundo tipo, em que incluiremos azinagre, azenegre, aziagra e aziaga, a nasal desaparece, mas só depois de ter surgido em português a forma azinagre. Portanto,  a sequência  -ni-  perdeu apenas o elemento semi-vocálico, donde a seguinte evolução:

azzinjar > *azinare > azinagre

A partir da forma azinagre foram-se formando as restantes:

azinagre ––> azenegre

    \ ––> aziagre > aziagra > aziaga

A análise do mapa nº 3, no que se refere às palavras que acabámos de ver, faz suscitar uma pergunta para a qual não encontramos resposta:

Se a influência árabe se fez sentir sobre uma grande parte do território, por que motivo essas formas só aparecem numa área tão restrita, como é esta, que abrange três distritos (Castelo Branco, Coimbra e Guarda)?

 

Os termos restantes – reima, salmoeira, sangra e zorra – pouco oferecem para dizer.

Reima, proveniente do grego rheuma, através do latim, está pouco documentado. Surge-nos apenas em duas povoações do distrito de Coimbra, P. 243, 244. Os dicionários apresentam-no, embora nem sempre com o sentido de 'almofeira'. Também no distrito de Coimbra, P. 300, surge-nos salmoeira, como caso único e esporádico.

Dos dois últimos, é sangra o mais documentado. Foi registado nos distritos de Aveiro (P. 145), Bragança (P. 85, 86), Coimbra (P. 257), Porto (P. 54a, 54b) e Vila Real (P. 69).

Zorra surge-nos apenas em três povoações do distrito da Guarda (P. 226, 229, 230). O seu emprego com o sentido de 'almofeira' deve ser pouco frequente.

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(6) – ARNALD STEIGER, Contribución a la fonética del hispano-árabe y de los arabismos en el ibero-románico y el siciliano, Madrid, 1932, págs. 262 e 371.

(7) – JOÃO ANTÓNIO DALLA BELLA, op. cit., pág. 51

(8)AUGUSTO CÉSAR PIRES DE LIMA, As oliveiras em Portugal, in: "Estudos etnográficos, filológicos e históricos", Porto, Edição da Junta de Província do Douro Litoral, 1951, vol. VI, pág. 207.

(9) – «Esta é, com pouca diferença, a manufactura do azeite, que se pratica nestes contornos de Coimbra, de que pouco difere a dos outros países do Reino, que eu deixo de descrever com a maior distinção por ser universalmente notória.», In: Dalla Bella, op. cit.

(10) – TAVARES DA SILVA, Esboço dum vocabulário agrícola regional, Lisboa, 1944, pág. 49.

(11) – Alperche e alperchim vêm grafados na "Revista Lusitana" com as formas alperxe e alperxim.

(12)ANTÓNIO CARDOSO DE MENEZES, Noções de oleicultura prática, 2ª ed., Coimbra, 1901, pág. 63.

(13)AUGUSTO MORENO, Dicionário complementar da língua portuguesa, 5ª ed., Porto, Editora Educação Nacional, 1948, pág. 75, 1ª col.

(14) J. COROMINAS, Diccionario crítico etimológico de la lengua castellana, vol. I, págs. 164-165.

(15) – JAIME LOPES DIAS, A linguagem popular da Beira Baixa. (Apontamentos), Separata de "Estudos de Castelo Branco", 1962, pág. 16.

 

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