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Fabrico Tradicional do Azeite em Portugal (Estudo Linguístico-Etnográfico), Aveiro, 2014, XIV+504 pp. ©

 

I

O lagar

 

SITUAÇÃO DOS LAGARES 

A localização do lagar obedece geralmente a um certo número de factores, quer de ordem económica, quer de ordem geográfica. Tornar-se-á, no entanto, bastante difícil dizer qual deles é o mais importante, pois não é raro encontrarem-se intimamente ligados.

Há um factor que é de considerar: o da existência de água. Sem dúvida que é este um dos elementos importantes para o fabrico do azeite, sem o qual a extracção do óleo tornar-se-ia difícil, se não impossível.

Poder-se-á então afirmar que o condicionamento geográfico é um pouco mais importante?

Não o cremos, uma vez que a ele anda muitas vezes ligado o aspecto económico. Recorde-se o caso dos lagares tocados a água. Nestes, o condicionamento geográfico e o económico ligam-se perfeitamente entre si.

 

Figura 1: Planta de um lagar de prensa de parafuso accionado por tracção animal. A-moinho; B-prensa; C-caldeira; D-bagaço; E-depósito; F-cincho.

 

Figura 2: Planta de um lagar de vara: A-moinho; B-prensa de vara; C-caldeira; D-bagaço; E-tarefas; F-conduta; G-roda hidráulica; H-lenha. 

Dos  muitos  lagares visitados, grande número situa-se fora da povoação, em plenos olivais, junto a uma estrada principal de acesso, ou, para servir mais do que uma povoação, no cruzamento de vários caminhos. Poderão ser citados como exemplo dois lagares, respectivamente nos distritos de Bragança, P. 100, e Coimbra, P. 303, e dos quais se apresenta uma planta, figs. 2 e 3.

O primeiro, no concelho de Vinhais, é relativamente moderno, possuindo uma prensa hidráulica. A dois ou três quilómetros da sede de concelho, fica em plenos olivais, junto a um rio, donde tira a força que o faz trabalhar. Neste caso, o factor económico está intimamente relacionado com o geográfico.

 

 
 

Figura 3: Lagar hidráulico moderno: A-moinho; B-prensa; C-caldeira; D-bagaço; E-tarefas; F-conduta ou canal da água; G-roda hidráulica; H-casa das tulhas; I-tulhas; J-caixa da massa; L-carris; M-bateria; N-rampa.

 

O segundo, no concelho da Pampilhosa da Serra, é o extinto lagar de vara das Três Aldeias, de que, felizmente, pudemos ainda recolher elementos. Situado na encruzilhada de três caminhos, podia deste modo servir as três aldeias a que pertencia. Temos então o factor geográfico a desempenhar certa importância.

Que dizer da maioria, situados dentro ou junto das povoações?

A resposta torna-se difícil de dar. Estamos certos de que as opiniões divergirão; e, no entanto, todas terão uma certa razão, sem que sejam rigorosamente exactas e completas.

O condicionamento geográfico faz sentir a sua importância sobretudo no campo linguístico. Vejamos alguns casos, a partir de exemplos concretos.

Em Celorico da Beira, distrito da Guarda, P. 213, um antigo lagar de vara, em ruínas, é conhecido por «Lagar das Olas». Situado junto de um ribeiro e enquadrado por uma paisagem romântica, a que não faltam as ruínas de uma ponte romana e umas pequenas cascatas, o lagar tomou o nome de umas olas largas e profundas cavadas nas rochas, certamente por águas que, em eras muitíssimo remotas, deveriam cair de elevada altura.

No mesmo concelho, P. 207, um lagar de varas, como o anterior em ruínas e accionado por água, retira o nome por que é conhecido do santo a que pertence a capela, próximo da qual se situa. Neste caso, Santo António.

Em Chacim, P. 29, no distrito de Braga, o lagar é conhecido pela expressão «Lagar de Cima». Embora motivado também pela sua situação geográfica, o povo distingue-o do outro existente na mesma povoação, um pouco mais abaixo e do lado oposto.

A terminar esta série de exemplos, que se poderia estender por muitas páginas, apresentamos o caso do já citado lagar da Ponte da Arranca. Aqui, o nome provém-lhe do facto de estar junto de uma ponte com o mesmo nome.

Independentemente de qualquer factor geográfico, o lagar é conhecido, em alguns casos, pelo nome dado à sociedade que o fundou. Em Deveza, freguesia de Sobrado, concelho de Castelo de Paiva, distrito de Aveiro, o povo refere-se ao lagar designando-o pura e simplesmente por «Lagareira Paivense». Assim: «vou fazer o azeite à Lagareira...»

Relacionado com o aspecto geológico está a construção do lagar, sobretudo no que respeita aos materiais de construção.

De plano normalmente quadrangular ou rectangular, os materiais empregues são os mais diversos. Dos muitos lagares observados, a maioria, em zonas onde o granito é abundante, utiliza este material de construção. A cobertura é normalmente feita de telha portuguesa, não existindo interiormente qualquer espécie de forro que tape o telhado.

 

 
 

Figura 4: Aspecto exterior de um antigo lagar de vara, situado em Canelas de Cima, P. 118a, freg. de Canelas, conc. de Arouca, dist. de Aveiro.

 

Em Canelas, P. 118, numa zona onde a ardósia existe em grande quantidade, as telhas são substituídas por enormes placas deste material, dando a todo o conjunto um aspecto rústico e insólito, tal como pode ser verificado pela observação da figura 4. A saída para o fumo e vapor de água resume-se a uma estreita abertura, junto à aresta superior do telhado, também coberta por placas de ardósia.

No interior, a escuridão é notória. A pouca luz que entra é como que coada por uma janela, já de si pequena e coberta de trepadeiras, e pelas frinchas das paredes, uma vez que as pedras que as formam se encontram unicamente sobrepostas, não existindo qualquer espécie de argamassa ou cimento a ligá-las.

Tipos de construção como a acabada de descrever encontramo-los com frequência no concelho de Arouca, distrito de Aveiro.

Nos distritos de Porto e Braga, os lagares visitados apresentam uma grande melhoria na construção, em nada parecida com o que acabámos de descrever, relativamente ao distrito de Aveiro. Construídos mediante a sobreposição de blocos de pedra ligados com argamassa ou cimento, apresentam as paredes revestidas e caiadas. Os telhados, cobertos com telha portuguesa, apresentam forro numa grande maioria, tornando o ambiente menos agreste.

 

 
 

Figura 5: Lagar de vara da Mata, P. 297, Vila Nova do Ceira, conc. Góis, dist. Coimbra. Repare-se no péssimo acesso, cobertura em telha portuguesa e diminuto número de janelas.

 

No distrito de Coimbra, as paredes são formadas de pedras sobrepostas de tamanhos variadíssimos, raramente existindo qualquer forro a tapar o telhado. Como as telhas, muitas vezes partidas, são apenas assentes umas sobre as outras, a luz e o vento passam facilmente através das frinchas. O ambiente é frio e desagradável e, como tal, pouco propício à laboração do azeite, que exige calor para uma maior fluidez.

No distrito da Guarda, especialmente no concelho de Celorico da Beira, notamos um maior apuramento na construção dos lagares. As paredes são bastante largas e compostas de maciços blocos de granito, abundante na região, muitas vezes ligados com argamassa, o que lhes confere maior resistência. A impressão que se tem ao entrarmos neles é de fria imponência e austeridade. Pode o interior ser desagregado pela acção destruidora do tempo, que as paredes continuarão firmes na sua posição inabalável, dizendo aos vindouros que, outrora, ali se fabricou o dourado óleo de Minerva, o azeite tão apetecido no tradicional bacalhau da ceia de Natal.

Características idênticas parecem ser extensivas a todo o distrito. Em 1945, Maria Margarida Furtado Martins(8), diz-nos que a parte do lagar destinada ao fabrico do azeite, em Pinhel, era «uma divisão formada por quatro paredes de alvenaria», compostas também de maciços blocos de granito, segundo deixam ver duas fotografias do exterior apresentadas pela Autora, sem «qualquer espécie de revestimento, enegrecidas pelo fumo e azeitadas pelas mãos dos lagareiros». De maneira semelhante ao que verificámos no distrito de Coimbra, o lagar não era forrado, pois o tecto era «apenas formado pelo caibreamento sobreposto pelas telhas mouriscas» que deixavam «passar todas as poeiras e o ar frio, tão prejudicial à separação do azeite».

Relativamente à Covilhã, diz-nos Alice Pereira Branco, no seu já citado trabalho, que o «lagar tradicional» neste concelho «é um edifício terrano e escuro, iluminado durante todo o dia e toda a noite, quando em laboração, por uma grande alinterna...». A propósito, devemos dizer que na maioria dos lagares visitados, evidentemente apenas os de construção muito antiga, o chão é unicamente de terra batida, conferindo-lhes um aspecto desagradável.

 

 
 

Figura 6: Lagar moderno com moinho de martelos e termo-batedeira de tipo horizontal da Quinta da Costa, P. 238, do conc. de Oliveira do Hospital.

 

Os lagares de construção recente são já edificados segundo os processos do nosso tempo. O plano obedece a determinado número de critérios, aumentando a capacidade e rendimento do trabalho.

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(8) MARIA MARGARIDA FURTADO MARTINS, A oliveira (Estudo linguístico), Coimbra, 1945, pp. 68-69.

 

 

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