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        OVAR E A TERRA DE SANTA 
        MARIA 
        
        
        ESBOÇADA a largos traços a história religiosa de Ovar, vamos agora coligir mais alguns elementos para a sua
        história administrativa. 
        
        Grande parte do território da Beira-Mar, entre
        Douro e Vouga, foi outrora conhecido pelo nome de Terra de
        Santa Maria. Muitas freguesias ficaram depois agrupadas no
        concelho da Vila da Feira, mas este nunca abrangeu a totalidade
        do território de Santa Maria, mesmo quando recebeu a herança
        de outros concelhos que se extinguiram e que com ele podiam
        disputar antiguidade. 
        
        No concelho de Ovar estão actualmente 
        incorporadas freguesias que pertenceram à Feira e os lugares que constituíam o
        extinto concelho de Pereira-Jusã. Quanto à própria vila, é duvidoso que alguma vez estivesse subordinada á Vila da Feira, antes
        parece anterior a esta como núcleo urbano e ter formado unidade administrativa à parte. Pelo menos, assim foi tratada desde 
        as Inquirições de D. Dinis. 
        
        As designações de Civitas Sanctae Mariae e Terra de Santa
        Maria envolvem dificuldades, que não ficaram resolvidas no livro
        que o benemérito investigador feirense Dr. AGUIAR CARDOSO consagrou a 
        este assunto. Em primeiro lugar, não se sabe por que
        motivo se deu a este território o nome de Santa Maria. O que
        escreveram os nossos cronistas sobre a armada dos Gascões e
        a sua intervenção na reconquista destas terras, é pura fantasia
        arquitectada sobre um passo, já de si pouco seguro, do Livro
        de Linhagens atribuído ao Conde D. PEDRO. Não é certo que o
        mosteiro de Cucujães fosse fundado por D. Egas Moniz o Gasco
        e que lá esteja sepultado o bispo D. Nonego, e também se lhe
        não pode dar como fundador ou reedificador D. Paio Guterres
        da Silva. Para encontrar documento de confiança, temos de
        descontar mais de um século à idade atribuída ao mosteiro,
        renunciando à sua ligação com os pretendidos feitos dos Gascões 
        
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        67 /
        na Terra de Santa Maria. Aliás, o Dr. AGUIAR CARDOSO fez justiça à 
        famosa armada, embora não considerasse o caso de Cucujães, ao qual 
        também só por mero incidente aludimos aqui. O que parece demonstrado é 
        que o nome de Santa Maria não foi dado a este território pelos tais 
        Gascões, a não ser que eles tenham vindo no tempo de Ramiro I (842-850), 
        em circunstâncias históricas totalmente desconhecidas. 
        
        Quanto à Civitas mencionada nos documentos dos 
        P. M. H., o Dr. AGUIAR 
        CARDOSO dá-lhe duplo significado: − circunscrição, quando tal vila ou 
        herdade se diz situada no território da Civitas Sanctae Mariae;
        cidade, 
        quando se fala em propriedade localizada prope civitas ou in suburbio 
        civitatis. Não nos repugna admitir neste território uma das civitates 
        lusitano-romanas, hipótese que não aflorou ao espírito do ilustre 
        investigador. A verdade, porém, é que raríssimos documentos obrigarão a 
        alargar o significado restrito de civitas. E este não será o de 
        cidade (urbs), 
        identificável com a Vila da Feira, e que tanto lhe sorria. 
        
        Escreveu o Dr. A. CARDOSO: 
        
        − «Aqui se vê a sucessão: Lancobriga ou 
        Langobriga de fundação céltica, 
        engrandecida pelos romanos que lhe chamaram Lancobriga, e depois 
        arrasada pelos bárbaros do norte; Civitas Sanctae Mariae de fundação 
        gótica, depois assolada pelos mouros, e mais tarde reconstituída pelos 
        neo-godos; por fim, Vila da Feira». 
        
        Fidalga genealogia, tentação demasiado sedutora para um
        espírito bairrista! O pior é demonstrar tal sucessão, por mais «insofismável» que ela se afigure, e documentar essas alternativas de 
        desgraça e grandeza de um só e mesmo povoado. 
        
        A cidade dos documentos medievais quer-nos parecer que não passou de 
        simples castro, ou ópido, ou cividade, ou castelo na base do actual. E 
        o núcleo de povoação, muito pequenino para uma cidade, só começaria a 
        crescer em princípios do
        século XII, quando perto do castelo se  estabelecera uma feira à qual 
        concorriam os povos da Terra de Santa Maria e da qual se originou o nome 
        e a relativa importância da vila. 
        
        Para se ver a sinonímia de 
        civitas, castrum, oppidum e castellum Sanctae Mariae, basta comparar os textos seriados por AGUIAR CARDOSO com os 
        seguintes passos de documentos que ele não conheceu: 
        
        Ano de 1132: − «in uilla dicta Ansemir... prope littus maris sub opido 
        Sancte Marie»; «in uilla Ansemir... sub opido Sancte Marie ciuitatis» 
        (Baio Ferrado, fls. 91 e 91 v.). 
        
        Ano de 1139: − «in uilla dicta Dentazes... discurrente
        riuulo Ur prope castellum Sancte Marie» (B. F., fi. 82 v.). 
        
        Ano de 1141: − «in uilla Mazaneira prope castellum Sancte
        Marie» (B. F., fi. 80 v.). 
        
        /
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        Ano de 1151: − «in uilla Ansemir... sub castello Sancte
        Marie ciuitatis» (B. F., fl. 92); «in uilla Ramir... prope littus
        marinus sub castello Sancte Marie » (B. F., fi. 68 v.). 
        
        Ano de 1157: − «in uilla que uocatur Cerzedo... sub opido
        Sancte Marie ciuitatis» (B. F., fl. 69). 
        
        Ano de 1158: − «in uilla dicta Moazelus... territorio portugalensi sub castello Sancte Marie» (B. F., 
        fl. 87). 
        
        Meados do séc. XII: − «Castrum quod dicitur Sanctae Mariae»
        (Carta do Cruzado Osberno sobre a conquista de Lisboa). 
        
        Em princípios do século XII, não começa «a aparecer a
        designação de Feira dada à civitas Sanctae Mariae», como pretendia o Dr. AGUlAR CARDOSO. Não. O que aparece é o nome
        de Feira, dado a um sítio da Terra de Santa Maria: «Facta
        carta in terra Sancte Marie ubi uocant Feira» (doc. de 1117).
        Note-se ainda que, em 1137, «Didacus Arias» doa ao mosteiro 
        de Grijó «unam casam in ipsa feira ciuitatis Sancte Marie cum
        sua uinea et cum suo formale» (Baio Ferrado, fl. 20 v.). A Feira não 
        é, pois, a civitas. É apenas a feira da civitas − «ipsa feira
        ciuitatis». 
        
        Chegados a este ponto, ocorre mais 
        uma vez perguntar: − Mas de onde veio o nome de Santa Maria ao território e à
        cividade? Seria da invocação de um templo? Seria da devoção de um conquistador? Seria da doação de terras a algum
        instituto dedicado à Virgem? Estaria esse nome ligado especialmente a algum povoado? 
        
        Os documentos até agora conhecidos não permitem responder. Deverá, no 
        entanto, ser considerado o seguinte: 
        
        Em 1117, quando se nos depara pela primeira vez o nome de feira, Ramiro 
        Álvares e seus filhos doam ao mosteiro de
        Paço de Sousa umas propriedades em S. Miguel do Mato, «in uilla Belleci
        in prouintia de Sancta Maria de Ouar » (Arq. Dist.
        do Porto, códice n.º 79 de Paço de Sousa, fls. 40 e 41). 
        
        Em 1119, Pedro Pais e sua mulher Elvira Nunes vendem
        a Gonçalo Mendes e mulher Gontina Guterres propriedades «in territorio 
        quod uocitant Sancta Maria de Ouar ex illa parte
        Durio uillas nominatas Sancto Ioane qui dicent de Madeira et
        media uilla Saalamir» (Arq. Nac., Col. Esp., 2.ª p., c. 52, maço 3). 
        
        O brasão de Ovar representa uma fortaleza ou povoação
        cercada de muralhas, ao lado da qual se distingue um templo
        de duas torres e, acima destas, a imagem da Virgem com o
        Menino Jesus no regaço sobre uma nuvem. Sensivelmente
        diverso do brasão da Feira, é também de homenagem a Santa
        Maria e não consta que se inspirasse em motivos alheios. 
        
        Não bastam decerto estes elementos para se atribuírem a
        Ovar as honras históricas que se têm concedido à Vila da Feira. 
        
        Parece, todavia, que carece de ser demonstrada a vulgar afirmação de que foi a Feira a «cabeça originária» da Terra de
        Santa Maria. 
        
        /
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        Escritas estas linhas, lembrámo-nos de um documento publicado no volume de 
        Documentos Medievais Portugueses, recentemente editado pela Academia Portuguesa da História. 
        É o único
        desse volume referente a Ovar e de que não tínhamos nota.
        Pertenceu ao cartório de Pedroso e é datado de 23 de Fevereiro de 1103. Diz, em resumo, que Patrina Eriz dá metade de Vila-Cova 
        ao abade D. Godinho em troca de bens situados
        «in uilla Cabanones sub loco ciuitas Sancta Maria prope litore
        maris et discurrente riuulo Ouare». 
        
         
        
        PRIVILÉGIOS E ISENÇÕES 
        
        Os moradores de Ovar e Cabanões gozavam de vários privilégios, estabelecidos por antigo costume e depois expressos
        em diplomas da chancelaria real. 
        
        Um dos mais importantes era o de não pagarem 
        lutuosa.
        Desconhecemos o texto da primitiva carta que, em documentos
        posteriores, se diz ter sido dada por el-rei D. Afonso IV, depois
        das averiguações a que procedeu «per imqujriçam». Datam-na de Tentúgal, 
        a 29 de Setembro de 1319, mas esta data cai no reinado de D. Dinis. 
        
        Com fé nessa primeira concessão, confirmaram o privilégio:
        D. João I, por carta dada em Óbidos, a 23 de Agosto de 1386;
        D. Afonso V, em Lisboa, a 8 de Agosto de 1450; D. Manuel, 
        em Évora, a 22 de Junho de 1497; D. João III, em Lisboa, a 3
        de Outubro de 1528 (Livro I da Estremadura) fl. 107; L. II da 
        Estremadura, fl. 161 v.; L. 29 de D. Manuel, fl. 4 v.; L. 52 de
        D. João 3.º, fl. 53). Consignou-se o mesmo privilégio no foral. 
        
        Percorrendo as chancelarias, encontram-se ainda cartas de confirmação 
        geral de todos os privilégios. Há uma datada de
        Lisboa, a 23 de Julho de 1439 (L. 7 da Estremadura) fl. 67),
        e outra, de 26 de Julho de 1449 (L. 8 da Estremadura) fl. 251),
        que pouco interessaria reproduzir aqui. 
        
        Posterior ao foral, temos o privilégio das lanças, concedido
        nos seguintes termos: 
        
        «Dom Joham, etc. A quamtos esta minha carta virem faço saber que a mym 
        praz dar lugar e liçença aos moradores do concelho do Var freguesya de 
        Cabanões pera não levarem lamças quamdo forem fora de suas casas como 
        pela hordenaçam sam obriguados temdo-as elles em suas casas
        sem embarguo da dita ordenaçam e isto será enquamto eu o ouuer por bem e 
        não mandar o comtrario Notifico-o asy a todas minhas Justiças a quem 
        esta carta for mostrada e o conhecimento della pertemcer que nam 
        costramguam nem
        mandem costramger os ditos moradores do dito concelho 
        
        / 70 /
        dovar a levarem as ditas lamças como dito he E mando
        que asy o cumpram e guardem como se nela comtem
        Fr.co beleaguoa a fez em lixboa a XX de novembro anno
        do naçimento de nosso Senhor Jhuu Xpto de mil e lxxxblj // Eu amdre pĩz o 
        sobscrevy //. (Chancelaria de D. João 3.º,
        liv. 23, fl. 86 v.).» 
        
         
        
        ESCRIVÃES DAS SISAS E DIZIMAS DO PESCADO 
        
        Deixamos a quem pretender estudar exaustivamente a
        história de Ovar, o cuidado de percorrer todos os livros das
        Chancelarias. Tal canseira tem muito de fastidioso e pouco de
        compensador, porque os diplomas, como se vê pela amostra,
        redizem o dito a propósito de qualquer maravalha. 
        
        Para castigo dos escrivães, só duas palavras a respeito
        dos ditos. 
        
        O primeiro que nos aparece, é um tal João Gonçalves,
        «escrivão das sisas e redízimas do pescado» nos julgados de
        Cabanões e Pereira-Jusã, o qual renunciou a esse cargo em
        tempos de el-rei D. Duarte. Sucedeu-lhe Afonso Rodrigues,
        nomeado em 14 de Janeiro de 1436 e confirmado por D. Afonso V
        a 12 de Junho de 1439 (Chanc. de D. Afonso 5.º, liv. 19, fl. 33). 
        
        Nomeado outra vez a 16 de Setembro de 1440 (Idem, liv. II, 
        fl. 97), Afonso Rodrigues deixou de merecer confiança «por
        quanto he odioso aas nosas rendas», e D. Afonso V deu o ofício
        de escrivão das «sisas e dizimas douar e cabanoees e pereira
        de Jusaa» a Fernando Afonso, escudeiro do infante D. Pedro,
        por carta passada em Santarém a 3 de Janeiro de 1446 (lbidem,
        liv. 5, fl. 33 v.). 
        
        Não sabemos por que bulas, Afonso Rodrigues foi reintegrado no cargo e... voltou a prevaricar. Em carta datada de 3 de Junho 
        de 1459, D. Afonso V diz que ele «nom escrepueo
        nem aseentou em o liuro das ditas sisas e dizima do pescado
        doze mill reis que algumas pessoas eram theudas de paguar a
        aluro vicente recebedor que foy da dizima e sisas de certos
        annos pasados»; além disso, cometera vários «erros por os quaes ou cada 
        huũ delIos deue perder os ditos ofiçios»; era, pois, nomeado para o 
        substituir João de Paiva, escudeiro de
        Fernão Pereira (Chanc. de D. Afonso 5.º, liv. 36, fl. 123). 
        
        Volvidos, porém, alguns anos, a 29 de Janeiro de 1466, diz
        o mesmo rei «que huũ Johã bertolIameeu abade que foi danta
        já finado comprara hũas casas em Ouar sem para elIo teer nosa
        licença polIo que se he assy como nos disserom as ditas pertencem a nos por bem de nosas hordepnações e defesas sobre
        ello feitas e as podemos por ello dereitamente dar a quem nosa 
        
        /
        71 /
        vontade for e hora querendo nos fazer graça e mercê a afonso rodrigues... 
        escrivão das nosas sisas douar e cabanoões... faze-mos-lhe realmente 
        mercê das ditas casas» (Chanc. de D. Afonso 5.º, liv. 14, fl. 18 v.). 
        
        Como por estes documentos se entrevê, o Afonso Rodrigues era funcionário 
        esperto, quase indispensável, talvez perito em denúncias. Oxalá lhe 
        tenham perdoado os herdeiros do abade de Anta... 
        
         
        
        OVAR E OS CONDES DA FEIRA 
        
        Desde o reinado de D. Fernando, Ovar entra com a Feira e Cambra e outras 
        terras numa série de doações que têm por último termo a sua integração 
        no Condado da Feira. As datas dos diplomas régios de doação ou 
        confirmação da posse aparecem com alguma diversidade nos traslados e nos 
        autores. Não curamos aqui de endireitar essa cronologia, nem de 
        verificar se todos os documentos serão autênticos. 
        
        A primeira em data parece ter sido a doação a Mem Rodrigues de Seabra «da 
        uilla da feira terra de sancta maria e daldea de cabanõees e do julgado 
        de caanbra», feita em Cantanhede a 9 de Nov. de 1371 (Chanc. de D. 
        Fernando, liv. I, fl. 83); mas já a vimos atribuída ao ano de 1367. Seguiu-se a doação a 
        João Afonso Telo, em Coimbra, a 10 de Fev. de 1372, abrangendo: «as 
        nossas terras de sancta maria e a terra da feira com seu julgado e ho 
        julgado de cabanõos de ouar e a
        terra de caambra com seu julgado» (Id., liv. I, fl. 94 v.); um pouco 
        mais lata, como se está vendo. Vem depois a doação ao mesmo Telo, já 
        conde de Barcelos, mais ampliada ainda, pois fala «das nossas terras de 
        sancta maria da feira com seus julgados e termos de cabanoyos doouar e 
        da terra de cambra com seus julgados e termos» e da de Refóios; «dante 
        nos paaços que forom de Rui garcia do casal em Rio mayor », a 27 de Jan. 
        de 1383 (Id., liv. 2, fl. 99 v.). Encontra-se repetida no liv. 3, fl. 59 
        v., da mesma Chancelaria, com a data de 1382 que BRAAMCAMP FREIRE diz 
        ser a exacta. 
        
        Como D. João Afonso Telo se bandeia com Castela, el-rei D. João I doa 
        todas essas terras a Álvaro Pereira, por carta de 8 de Abril de 1385 (Chanc. 
        de D. João 1.º, liv. I, fl. 128), e na posse dos Pereiras elas se 
        conservam até à extinção da Casa da Feira e sua incorporação na Casa do 
        Infantado. 
        
        Em 1453, suscitam-se dúvidas, precisamente por causa de Cabanões e Ovar, 
        pois se verificou ter sido viciado o diploma da segunda doação a João 
        Afonso Telo, com a emenda de terras para termos; D. Afonso V concede a 
        sanação (Chanc. de D. Afonso 5.º, liv. 4, fl. 61, e Liv. 8 da 
        Estremadura, fl. 143 v.; 
        
        /
        72 /
        ver os documentos publicados no Arquivo do Distrito de Aveiro,
        vol. I, pág. 135). 
        
        Terras ou termos, Ovar fica na posse dos Condes, mas esta
        nem sempre decorre tranquila e pacífica. Chegaram até nós os
        ecos de algumas questões, resultantes da imprecisão do direito,
        no período anterior ao foral. 
        
        Em 1500, os moradores da vila de Ovar queixam-se de que
        D. Diogo Pereira «fazia pagar de cada càrrega de marisquo,
        ou de sal, que se levava da dita Villa, tres reis bramcos, e mais huũ ceitil de cada alqueire; e que bem assy lhe fazia pagar de
        cada huũ cambo de pêxe, que se levava, e comprava á dita
        Villa e Ribeira della, huũ ceitil; e de cada cárrega de pescado
        quinze, e vinte reis; os quaes direitos, e tributos lhe levava ora
        novamente sem titolo alguũ, e com maà fee». Contestou o
        Conde, dizendo «que elle tinha seus Foraees autemticos, e
        amtigos, per que recadava, e levava suas rendas, e direitos, o qual 
        Foral era de cemto, e duzentos annos a esta parte usado,
        e praticado amtre todos, sem contradição algũa, e que pelo dito
        Foral avia de levar de cada carrega, no dito Lugar d'Ovar,
        quatro dinheiros, que valia cada dinheiro cinquo reis ao menos,
        segundo se mostrava per Foraees antigos, pela multepricação
        das Livras que saya em mais de trinta e sete reis, e que elle
        Réo, e seus antecessores usarão, e praticaram de dés, e vinte,
        e sessenta annos a esta parte por menos custa, e opressão dos
        caminhantes, levar de cada carrega tres reis, e de cada cambo
        de pescado, e alqueire de sal huũ seitil, o que todo ao mais
        chegava a quinze reis, ou ataá dezasseis». 
        
        Convidado a apresentar os forais em que falava, o «Dom
        Réo» apenas ofereceu certas verbas das Inquirições, pois já
        nesse tempo não havia notícia de qualquer verdadeiro foral
        antigo. Em vista disso, o Desembargo do Paço, por sentença
        de 21 de Julho de 1500, determinou o seguinte: − «Mandamos
        que o dito Réo leve a dita Portagem em o dito Lugar d'Ovaar,
        e de seu Termo, segundo o Foral, e Hordenança que se ao
        depois dér, e emquanto se não der o dito Réo levará a dita
        Portagem, segundo se ora leva em Villa da Aveiro das couzas,
        que se tirão da dita Villa, e se levão por terra pera fora, e assy
        do que se por terra traz de fora, pera a dita Villa, e não levará
        o dito Réo a dita Portagem, segundo a costumou, e costuma de
        levar » (T. T., Gaveta 10, maço 12, n.º 13). 
        
        No ano seguinte, surgiu nova questão em que foram autores: «a Villa 
        d'Aveiro, e o Concelho de Pereira de Jusãa, e o
        Concelho de Cabeçaes, e todolos Moradores da Terra de Santa Maria, e da 
        Cambra, e Castanheira per Braz de Ferreira
        Escudeiro, morador em a dita Villa d'Aveiro, e seu certo, e
        avondozo Procurador no dito feito». 
        
        Era extenso o rol das acusações contra D. Diogo Pereira:
        excedia-se na cobrança de portagens; «levava ancoragem de 
        
        /
        73 /
        todolos Navios, barcas, e caravéllas, que ancoravam em os Portos de 
        Ovaar, levando trinta e seis reis de cada Navio, ou barca, ou batél»; «levava matagem de todalas madeiras, que se cortavam nas matas de suas 
        terras»; proïbia o corte de lenha; «levava a metade de toda a Sardinha, 
        que os Moradores, e quaesquer outras pessoas de suas Terras matavom ou 
        achavam morta pela costa do mar»; cobrava penas de sangue; fazia 
        coutadas; obrigava os moradores a levar-lhe os foros ao castelo da 
        Feira, e «muitas vezes a Requeixo, e a Ovaár, e ao Porto», sem lhes 
        pagar nada; exigia-lhes roupas e lã para as camas; levava-lhes o têrço 
        da erva dos gados; levava lutuosa «do marido quando morria, e outra da molher quando morria, e outra de cada filho quando morria, levando o 
        melhor boi, ou a melhor taça, ou a melhor joya que lhes achava ao tempo 
        da morte»; «levava de cada huũa pessoa, que apanhava o estrume pera 
        cobrir suas casas, o qual estrume era hũa erva, que nacia na Cósta do 
        Maar, huũ alqueire de trigo»; obrigava-os a trabalhar nas constantes 
        obras que trazia no Castelo e nos Paços, etc., etc. 
        
        D. Diogo Pereira alegou outra vez como foral certas verbas das 
        Inquirições. A sentença, favorável aos autores, foi dada em Lisboa a 1 
        de Setembro de 1501 e notificada ao Conde em 25 de Outubro de 1502, no 
        castelo da Feira, «estando El Rey Nosso Senhor em ho dito Castello» (T. 
        T, Gav. 10, m. 12, n.º 16; d. Brasões da Sala de Sintra, de BRAAMCAMP FREIRE,
        voI. T, pág. 313, nota 4, 2.ª edição). 
        
          
        
        FR. LOURENÇO LAMPREIA 
        
        Com a publicação do foral, que supomos ainda inédito, ficará concluída 
        esta colecção de subsídios para o primeiro período da história ovarense. 
        Não fica, porém, esgotada a possibilidade dos arquivos. Mais depressa se 
        esgota a paciência, sobretudo quando estes trabalhos de investigação são 
        recebidos com indiferença. 
        
        Quem sabe, por exemplo, que era natural de Ovar um dos primeiros 
        priores, se não o primeiro, do mosteiro da Batalha? Está escrito que, 
        por carta dada no Porto, a 4 de Abril do ano de 1388, D. João I doou à 
        Ordem de S. Domingos o mosteiro da Batalha, a pedido do Doutor João das 
        Regras, do seu conselho, e de Fr. Lourenço Lampreia (SOUSA, História de 
        S. Domingos, p. I, liv. 6, cap. 12). 
        
        Em documentos de 1401, 1402 e 
        1409, aparece este Fr. Lourenço como prior 
        do convento. E em «documento de 5 de Julho da era de 1447 (anno de 
        Christo 1409) se faz ainda menção de Fr. Lourenço Lamprea, de Ovar, 
        Priol 
        
        /
        74 / do 
        nosso moesteiro da Batalha; por onde se vê o erro de
        Fr. PEDRO MONTEIRO, que o supõe falecido em 1388 (Claustro
        Dominicano, pág. 104)» (CARDIAL SARAIVA, Obras Completas, 1,
        pág. 277, nota). 
        
        Despedimo-nos das antiguidades ovarenses com esta «boa notícia» e com o voto sincero de que apareça alguém disposto
        a fazer a monografia completa da vila. Quando houver oportunidade, estudaremos as freguesias do concelho, que também
        são filhas de Deus e herdeiras da história. 
        
        Padre MIGUEL 
        A. DE OLIVEIRA 
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