QUASE trinta e dois anos
são decorridos depois que a
República se estabeleceu em Portugal. Esse período
pode ser dividido em duas épocas distintas: a que vai desde 1910 até 1927, governada por alguns políticos
inteligentes, mas por vezes de um facciosismo tal que
provocou a desordem e lançou o desalento da confiança em
melhores dias, fazendo saudades dos tempos que eles chamavam ominosos, e
a que decorre de 1927 até hoje, em que uma pleíade de homens, escolhida
nas escolas superiores, sob o domínio
espiritual e moral de SALAZAR, apurada no cadinho do patriotismo, surgiu
na ânsia de salvar a nossa pátria, digna de todas as venturas, de uma
fatal catástrofe.
Mas, apesar de vivermos, a bem dizer, num céu aberto e termos confiança
absoluta nos homens que nos governam, porque representam o expoente
máximo da política portuguesa, não devemos esquecer alguns vultos
eminentes e sobranceiros dos dois últimos reinados da monarquia. É certo
que eles arrastaram com a irredutibilidade dos seus processos políticos
a queda do regime, mas é preciso atender a que a sua honestidade, o seu
talento, a sua educação, os notabilizavam.
Dentre eles, o Conselheiro JOSÉ LUCIANO DE CASTRO, último
chefe do partido progressista, nado e criado na Quinta da Oliveirinha,
freguesia de Eixo, distrito de Aveiro, é uma figura notável que não
podia ficar no esquecimento. Teve ele agora o seu ressurgimento no
magnífico livro da sua biografia, pensado e escrito pelo Sr. Prof.
Doutor F. M. DA COSTA LOBO, que marca eruditamente a influência política
que ele exerceu no período constitucional de 1851 a 1910.
É portanto um livro histórico, escrito com erudição e com
sinceridade, porque, militando o autor no partido progressista e sendo
uma pessoa da confiança do seu chefe, privando na amizade e na consulta
de graves problemas interessantes ao
partido, descreve a sua vida política desde que este tomou conta. da
chefia, em 1885.
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Não me compete analisar a obra política do Conselheiro
JOSÉ LUCIANO DE CASTRO. Quem a quiser conhecer consulte o
livro do Sr. Doutor COSTA LOBO. Só me interessa a parte activa
dessa política depois do regicídio, isto é, depois do primeiro
Conselho de Estado realizado no reinado de El-Rei D. Manuel lI,
porque essa política visa especialmente meu Pai, o Conselheiro
JÚLIO DE VILHENA, seu antagonista, como chefe do partido regenerador.
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Retrato do Conselheiro José Luciano de Castro existente no Museu de
Aveiro
(pintura a óleo). |
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Todos devem saber que, após o regicídio de EI-Rei D. Carlos
se realizou no Palácio da Ajuda o primeiro Conselho de Estado
presidido por El-Rei D. Manuel lI. Vem no 2.º voI. do Antes da
República, do Conselheiro JÚLIO DE VILHENA, a descrição desse Conselho.
Literariamente, essa descrição é um primor de naturalismo. Eu posso ser acoimado de suspeito, no que digo, mas
críticos sinceros não duvidam pôr no mesmo paralelo de boa
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literatura a descrição da Última corrida de touros em Salvaterra, de
REBELO DA SILVA e o 1.º Conselho de Estado de El-Rei D. Manuel, de JÚLIO
DE VILHENA.
Aquela, por se desenrolar num cenário ao ar livre, tem mais cor; e por
ser um espectáculo pelo qual a raça portuguesa se movimenta e se
entusiasma, faz vibrar a nossa alma. Este, passado entre as quatro
paredes de uma sala, sob um ambiente convencional e protocolar, não pode
fazer-nos vibrar de entusiasmo, mas faz-nos vibrar de emoção, ao ver
que ali se debatia a segurança de um regime. A Última Corrida é uma
descrição que ocupa algumas páginas; o 1.º Conselho é um pedaço de prosa
para complemento de um capítulo e para prólogo do grande drama político
que se desenrolou em todo o reinado de El-Rei D. Manuel II,
meticulosamente observado e descrito por JÚLIO DE VILHENA.
Diz este no seu Antes da República (pág. 40) que o Conselheiro JOSÉ
LUCIANO, propondo o Par do Reino Ferreira do Amaral para chefe de um
governo de acalmação, ganhara a partida, porque não podendo ele governar
com um ministério progressista, por se achar impossibilitado por doença
incurável, não deixava que o partido regenerador, com um novo chefe que
levava na bagagem projectos de reformas, assumisse o poder; e como
aquele governo, em que o seu partido era representado, lhe dava ensejo
para dispor dos favores políticos, ele determinou que tudo seria como
havia pensado e resolvido.
Com esta solução, o país
foi singularmente surpreendido pela constituição
de um governo da presidência do almirante Ferreira do Amaral (COSTA LOBO,
pág. 245).
Esse governo, tendo feito as eleições das Câmaras Municipais, deixou que
os republicanos tomassem conta da de Lisboa. Outros actos censuráveis
foram consentidos, e quando o chefe
do partido regenerador, ao ver que a República caminhava a passos de
gigante, lhe deu a extrema-unção, foi acoimado de anti-patriota!
Mas quem foi o criador deste ministério? Quem não consentiu que JÚLIO DE
VILHENA assumisse uma presidência inteligente e distinta (COSTA LOBO,
pág. 245) ou que o fosse António de Vasconcelos Porto, ministro da
guerra do governo cessante,
(personalidade enérgica, de grande prestígio em todo o país)? (COSTA
LOBO, pág. 245). Quem foi?
Ao ministério Ferreira do Amaral sucedeu um ministério Campos Henriques.
Mais uma habilidade política do Conselheiro JOSÉ LUCIANO.
Como ele não podia constituir governo e como não queria que JÚLIO DE
VILHENA o constituísse, o que fez? Dava ao partido regenerador a
liberalidade de uma presidência de ministério de concentração, fazendo
com que Campos Henriques atraiçoasse o seu chefe, lançasse a discórdia
no seio do partido e o esfacelasse.
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62 / Mas quem foi que maquinou todo
este drama? Quem
foi que não viu que o esfacelamento de um partido histórico,
sustentáculo de tantos anos de uma monarquia, apressava o
desabar dessa monarquia? Quem foi?
Ao ministério Campos Henriques sucedeu um da presidência de Sebastião Teles. Mais outra lembrança do Conselheiro
JOSÉ LUCIANO. Mais outro castelo que o partido regenerador
deita abaixo, porque não consente que ele, com todas as qualidades para governar, seja desprezado e ludibriado. Pouco
tempo teve de vida. Apenas um mês. E como era preciso
afastar JÚLIO DE VILHENA e o partido regenerador, mais uma traição se
operou neste partido: Venceslau de Lima. Insinuação
de JOSÉ LUCIANO e aceitação pelo Paço. Valido, confidente, conselheiro do poder real. Oito meses durou esta comédia para
dar lugar a outro ministério presidido pelo progressista Veiga
Beirão, sempre sob a égide de JOSÉ LUCIANO. Pouco tempo também durou
este governo, porque os escândalos do Crédito
Predial o deitaram abaixo.
Vem depois o ministério Teixeira de Sousa, também tolerado
por JOSÉ LUCIANO.
Caminha-se para o aniquilamento de uma Monarquia secular.
Ela, que tanto havia custado a consolidar nos campos de
Ourique, Aljubarrota, Montes-Claros, cai com a inércia daquele
governo, com a deserção de uns e com a traição de outros no
círculo da Rotunda, no espaço de um dia.
Tiveram culpa deste desfecho a irredutibilidade política
dos homens que desde o regicídio não calavam no íntimo do
peito os seus ressentimentos, os seus rancores, as suas ambições.
Mas quem foi que apoiou este ministério e mais uma vez pôs
de parte JÚLIO DE VILHENA? Quem foi?
Eu, que vivia com meu pai, que ouvia, dia e noite, os seus
desabafos e os seus desalentos, que assistia às peripécias de
um combate travado entre os seus desejos de ser presidente
de um governo para manter a consolidação do partido regenerador de que era chefe; para mostrar ao país o que podia revelar o seu
talento de homem público com as reformas que
apresentasse; para defender as instituições de que ele desde
que fora deputado era estrénuo defensor, − e as intrigas, e as
insídias e as desconfianças e as suspeições dos seus partidários
insofridos e insatisfeitos, e dos seus adversários políticos, avaliava
bem o quanto ele sofria ao ver que todas as suas puras
ambições eram destruídas por um homem, cuja invalidez não
consentia que ele fosse presidente de um governo, e que ainda
em cima o acoimava de visionário e fantasista.
Quem ler com atenção os Documentos políticos encontrados
nos Palácios Reais, publicação feita pela República, verá, nas
cartas dirigidas a D. Manuel II por JOSÉ LUCIANO, que este tinha
duas chapas, com as quais ia mantendo a sua supremacia e
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destrói tudo o que não lhe agradava: − se o ministério era da sua
feição, dizia ao Rei que tudo ia bem; caso contrário, dizia ao Rei que a
República avançava a passos rápidos e assim manteve desde o regicídio a
sua influência no paço, e a autoridade de um sincero conselheiro que
era unicamente ouvido e acatado nas ocasiões de perigo iminente.
«Com esta finura, com este conhecimento dos homens que eu sou o primeiro
a admirar, porque constitui um notável predicado político, JOSÉ LUCIANO,
se não existisse Venceslau de Lima,
teria sido o árbitro absoluto dos destinos da Coroa! (JÚLIO DE VILHENA,
Antes da República, vol 2.º, pág. 396).
O acto final de toda esta tragédia política que se desenrolou desde
1908 a 1910, − a queda da monarquia − deu razão a tudo o que meu pai
dizia e fazia. Ninguém quis aceitar os seus serviços nem quis ouvir os
seus conselhos. E ele, que havia feito uma profecia cuja realização foi
o crime do regicídio, viu-se escarnecido, porque falava claro e
previdente.
E muitas vezes ele dizia, ao ver os cambiantes que a política tomava dia
a dia, que ela tinha sido muito bem simbolizada pelo lápis de RAFAEL
BORDALO como: a Grande Porca.
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Eu nunca conheci pessoalmente o Conselheiro JOSÉ LUCIANO.
Ouvia falar dele, via a sua figura reproduzida nos jornais ou nos
semanários de caricatura. Mas, uma vez tive a fortuna de o ver muito
perto e de lhe ouvir a voz doce e serena.
Foi o caso que, certo dia, quando no poder estava o ministério Venceslau
de Lima, meu pai precisou de enviar ao Conselheiro JOSÉ LUCIANO uma
carta confidencial que não podia ser entregue às incertezas do correio.
E porque o seu secretário particular não estava presente, fui eu o
encarregado de levar a carta e de a entregar em mão própria.
Penetrei no palácio dos Navegantes. Como eu tivesse anunciado que tinha
uma carta para entregar, uma Senhora tomou conta dela, pedindo-me que
esperasse, numa saleta, a resposta.
Essa resposta demorava-se. Pela porta entreaberta eu ouvia um confuso
ruído de vozes em discussão, e com aquela natural curiosidade de
surpreender um areópago de políticos
célebres, deslizei cautelosamente por entre os grupos e pude ver o
chefe, rodeado pelos seus súbditos, aconselhando-os, e assegurando-lhes
que tudo se havia de realizar como era sua vontade.
Eu estava tão perto dele que
ele me fixou durante algum tempo, como se
quisesse recordar quem eu era. Então retrocedi e tomei o meu lugar na
saleta de espera. E quando regressei a casa, não me lembrei da
autoridade do chefe nem da maneira
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convincente com que dominava os seus vassalos, superiores e
inferiores; lembrava-me somente deles, unidos no mesmo ideal,
confiantes na palavra suprema, dedicados sem pensamentos reservados, −
quão diferentes eles eram dos de meu pai, insofridos e insatisfeitos, intriguistas e ambiciosos
− e lamentei que
ele tivesse aceitado uma chefia de partido que muitos dissabores
e muitas desilusões lhe causou.
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Tem acontecido tanta coisa interessante neste Jardim à
beira-mar Plantado, nestes trinta e um anos de regime republicano, que os factos acima narrados perdem-se na longínqua
nebulosa do tempo e do esquecimento e podem ser considerados como fantasia de historiador.
Mas o que não esquece é a memória dos homens que,
apesar de tudo, concorreram para que Portugal fosse sempre
grande. E foi um deles o Conselheiro JOSÉ LUCIANO DE CASTRO.
Ouçamos o que sobre ele disse o Conselheiro
ADRIANO
ANTERO, sábio jurisconsulto e historiador:
«Foi um santo na sua vida particular, um génio e uma
verdadeira glória da pátria na sua vida pública.
A sua simplicidade espantava; apesar das situações
eminentes que atingiu, viveu sempre numa resumida modéstia, dando assim o exemplo frisante de uma honestidade
inconcussa.
Na sua alma de eleição nunca entravam as sombras
do ódio nem os assomos da vingança.
De uma vastidão de conhecimentos enorme, de uma
memória verdadeiramente assombrosa, de uma táctica parlamentar especial e finíssima, de uma elegância didáctica singular, fervente e cautelosa conforme as responsabilidades
da sua situação, de uma conciliação e prudência tão próprias para evitar e compor as dissensões intestinas como
para prevenir os embaraços externos, de uma energia
moral, severa, mas inquebrantável no meio das maiores
dificuldades e de uma aptidão de trabalho inexcedível para
todos os ramos, José Luciano de Castro foi certamente o
modelo brilhante de um estadista completo».
E o grande orador parlamentar, ANTÓNIO CÂNDIDO:
«Foi o mais perfeito conhecedor de homens que em
Portugal floresceu. Muitas vezes o ouvi predizer com
segurança a revolução social. Observações exactas e que
demonstravam a inteligência, a bondade e o espírito superior com que José Luciano de Castro encarava a marcha da
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[Vol. VIII - N.º 29 - 1942]
humanidade para o seu aperfeiçoamento. E porque era respeitador da
opinião pública, por isso testemunhava a sua grande consideração à
imprensa, pronto sempre a atender as suas justas reclamações».
E JÚLIO DE VILHENA, que não guardava ressentimentos e que
tinha sempre uma palavra indulgente para aqueles que o prejudicavam, com
aquela nobreza de alma que o caracterizava:
«O Conselheiro José Luciano de Castro pode ser considerado como
estadista, como orador parlamentar e como jurisconsulto. Ninguém expunha
com mais lucidez uma questão jurídica, ninguém relatava com mais
precisão um
processo complicado.
Ajudado por uma prodigiosa memória, a sua inteligência assimilava todos
os aspectos do assunto e analisando os textos legais, sem omissão de um
só, inclinava-se sempre para onde o bom senso jurídico fazia pender.
É um monumento o, relatório do seu projecto sobre a reforma da Carta».
JOÃO JARDIM DE VILHENA |