João Jardim de Vilhena, O conselheiro José Luciano de Castro, Vol. VIII, pp. 59-65.

O CONSELHEIRO

JOSÉ LUCIANO DE CASTRO

QUASE trinta e dois anos são decorridos depois que a República se estabeleceu em Portugal. Esse período pode ser dividido em duas épocas distintas: a que vai desde 1910 até 1927, governada por alguns políticos inteligentes, mas por vezes de um facciosismo tal que provocou a desordem e lançou o desalento da confiança em melhores dias, fazendo saudades dos tempos que eles chamavam ominosos, e a que decorre de 1927 até hoje, em que uma pleíade de homens, escolhida nas escolas superiores, sob o domínio espiritual e moral de SALAZAR, apurada no cadinho do patriotismo, surgiu na ânsia de salvar a nossa pátria, digna de todas as venturas, de uma fatal catástrofe.

Mas, apesar de vivermos, a bem dizer, num céu aberto e termos confiança absoluta nos homens que nos governam, porque representam o expoente máximo da política portuguesa, não devemos esquecer alguns vultos eminentes e sobranceiros dos dois últimos reinados da monarquia. É certo que eles arrastaram com a irredutibilidade dos seus processos políticos a queda do regime, mas é preciso atender a que a sua honestidade, o seu talento, a sua educação, os notabilizavam.

Dentre eles, o Conselheiro JOSÉ LUCIANO DE CASTRO, último chefe do partido progressista, nado e criado na Quinta da Oliveirinha, freguesia de Eixo, distrito de Aveiro, é uma figura notável que não podia ficar no esquecimento. Teve ele agora o seu ressurgimento no magnífico livro da sua biografia, pensado e escrito pelo Sr. Prof. Doutor F. M. DA COSTA LOBO, que marca eruditamente a influência política que ele exerceu no período constitucional de 1851 a 1910.

É portanto um livro histórico, escrito com erudição e com sinceridade, porque, militando o autor no partido progressista e sendo uma pessoa da confiança do seu chefe, privando na amizade e na consulta de graves problemas interessantes ao partido, descreve a sua vida política desde que este tomou conta. da chefia, em 1885. / 60 /

Não me compete analisar a obra política do Conselheiro JOSÉ LUCIANO DE CASTRO. Quem a quiser conhecer consulte o livro do Sr. Doutor COSTA LOBO. Só me interessa a parte activa dessa política depois do regicídio, isto é, depois do primeiro Conselho de Estado realizado no reinado de El-Rei D. Manuel lI, porque essa política visa especialmente meu Pai, o Conselheiro JÚLIO DE VILHENA, seu antagonista, como chefe do partido regenerador.

 

 
 

Retrato do Conselheiro José Luciano de Castro existente no Museu de Aveiro (pintura a óleo).

 

Todos devem saber que, após o regicídio de EI-Rei D. Carlos se realizou no Palácio da Ajuda o primeiro Conselho de Estado presidido por El-Rei D. Manuel lI. Vem no 2.º voI. do Antes da República, do Conselheiro JÚLIO DE VILHENA, a descrição desse Conselho. Literariamente, essa descrição é um primor de naturalismo. Eu posso ser acoimado de suspeito, no que digo, mas críticos sinceros não duvidam pôr no mesmo paralelo de boa / 61 / literatura a descrição da Última corrida de touros em Salvaterra, de REBELO DA SILVA e o 1.º Conselho de Estado de El-Rei D. Manuel, de JÚLIO DE VILHENA.

Aquela, por se desenrolar num cenário ao ar livre, tem mais cor; e por ser um espectáculo pelo qual a raça portuguesa se movimenta e se entusiasma, faz vibrar a nossa alma. Este, passado entre as quatro paredes de uma sala, sob um ambiente convencional e protocolar, não pode fazer-nos vibrar de entusiasmo, mas faz-nos vibrar de emoção, ao ver que ali se debatia a segurança de um regime. A Última Corrida é uma descrição que ocupa algumas páginas; o 1.º Conselho é um pedaço de prosa para complemento de um capítulo e para prólogo do grande drama político que se desenrolou em todo o reinado de El-Rei D. Manuel II, meticulosamente observado e descrito por JÚLIO DE VILHENA.

Diz este no seu Antes da República (pág. 40) que o Conselheiro JOSÉ LUCIANO, propondo o Par do Reino Ferreira do Amaral para chefe de um governo de acalmação, ganhara a partida, porque não podendo ele governar com um ministério progressista, por se achar impossibilitado por doença incurável, não deixava que o partido regenerador, com um novo chefe que levava na bagagem projectos de reformas, assumisse o poder; e como aquele governo, em que o seu partido era representado, lhe dava ensejo para dispor dos favores políticos, ele determinou que tudo seria como havia pensado e resolvido.

Com esta solução, o país foi singularmente surpreendido pela constituição de um governo da presidência do almirante Ferreira do Amaral (COSTA LOBO, pág. 245).

Esse governo, tendo feito as eleições das Câmaras Municipais, deixou que os republicanos tomassem conta da de Lisboa. Outros actos censuráveis foram consentidos, e quando o chefe do partido regenerador, ao ver que a República caminhava a passos de gigante, lhe deu a extrema-unção, foi acoimado de anti-patriota!

Mas quem foi o criador deste ministério? Quem não consentiu que JÚLIO DE VILHENA assumisse uma presidência inteligente e distinta (COSTA LOBO, pág. 245) ou que o fosse António de Vasconcelos Porto, ministro da guerra do governo cessante, (personalidade enérgica, de grande prestígio em todo o país)? (COSTA LOBO, pág. 245). Quem foi?

Ao ministério Ferreira do Amaral sucedeu um ministério Campos Henriques. Mais uma habilidade política do Conselheiro JOSÉ LUCIANO.

Como ele não podia constituir governo e como não queria que JÚLIO DE VILHENA o constituísse, o que fez? Dava ao partido regenerador a liberalidade de uma presidência de ministério de concentração, fazendo com que Campos Henriques atraiçoasse o seu chefe, lançasse a discórdia no seio do partido e o esfacelasse. / 62 / Mas quem foi que maquinou todo este drama? Quem foi que não viu que o esfacelamento de um partido histórico, sustentáculo de tantos anos de uma monarquia, apressava o desabar dessa monarquia? Quem foi?

Ao ministério Campos Henriques sucedeu um da presidência de Sebastião Teles. Mais outra lembrança do Conselheiro JOSÉ LUCIANO. Mais outro castelo que o partido regenerador deita abaixo, porque não consente que ele, com todas as qualidades para governar, seja desprezado e ludibriado. Pouco tempo teve de vida. Apenas um mês. E como era preciso afastar JÚLIO DE VILHENA e o partido regenerador, mais uma traição se operou neste partido: Venceslau de Lima. Insinuação de JOSÉ LUCIANO e aceitação pelo Paço. Valido, confidente, conselheiro do poder real. Oito meses durou esta comédia para dar lugar a outro ministério presidido pelo progressista Veiga Beirão, sempre sob a égide de JOSÉ LUCIANO. Pouco tempo também durou este governo, porque os escândalos do Crédito Predial o deitaram abaixo.

Vem depois o ministério Teixeira de Sousa, também tolerado por JOSÉ LUCIANO.

Caminha-se para o aniquilamento de uma Monarquia secular. Ela, que tanto havia custado a consolidar nos campos de Ourique, Aljubarrota, Montes-Claros, cai com a inércia daquele governo, com a deserção de uns e com a traição de outros no círculo da Rotunda, no espaço de um dia.

Tiveram culpa deste desfecho a irredutibilidade política dos homens que desde o regicídio não calavam no íntimo do peito os seus ressentimentos, os seus rancores, as suas ambições.

Mas quem foi que apoiou este ministério e mais uma vez pôs de parte JÚLIO DE VILHENA? Quem foi?

Eu, que vivia com meu pai, que ouvia, dia e noite, os seus desabafos e os seus desalentos, que assistia às peripécias de um combate travado entre os seus desejos de ser presidente de um governo para manter a consolidação do partido regenerador de que era chefe; para mostrar ao país o que podia revelar o seu talento de homem público com as reformas que apresentasse; para defender as instituições de que ele desde que fora deputado era estrénuo defensor, − e as intrigas, e as insídias e as desconfianças e as suspeições dos seus partidários insofridos e insatisfeitos, e dos seus adversários políticos, avaliava bem o quanto ele sofria ao ver que todas as suas puras ambições eram destruídas por um homem, cuja invalidez não consentia que ele fosse presidente de um governo, e que ainda em cima o acoimava de visionário e fantasista.

Quem ler com atenção os Documentos políticos encontrados nos Palácios Reais, publicação feita pela República, verá, nas cartas dirigidas a D. Manuel II por JOSÉ LUCIANO, que este tinha duas chapas, com as quais ia mantendo a sua supremacia e / 63 / destrói tudo o que não lhe agradava: − se o ministério era da sua feição, dizia ao Rei que tudo ia bem; caso contrário, dizia ao Rei que a República avançava a passos rápidos e assim manteve desde o regicídio a sua influência no paço, e a autoridade de um sincero conselheiro que era unicamente ouvido e acatado nas ocasiões de perigo iminente.

«Com esta finura, com este conhecimento dos homens que eu sou o primeiro a admirar, porque constitui um notável predicado político, JOSÉ LUCIANO, se não existisse Venceslau de Lima, teria sido o árbitro absoluto dos destinos da Coroa! (JÚLIO DE VILHENA, Antes da República, vol 2.º, pág. 396).

O acto final de toda esta tragédia política que se desenrolou desde 1908 a 1910, − a queda da monarquia − deu razão a tudo o que meu pai dizia e fazia. Ninguém quis aceitar os seus serviços nem quis ouvir os seus conselhos. E ele, que havia feito uma profecia cuja realização foi o crime do regicídio, viu-se escarnecido, porque falava claro e previdente.

E muitas vezes ele dizia, ao ver os cambiantes que a política tomava dia a dia, que ela tinha sido muito bem simbolizada pelo lápis de RAFAEL BORDALO como: a Grande Porca.

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*     *

Eu nunca conheci pessoalmente o Conselheiro JOSÉ LUCIANO.

Ouvia falar dele, via a sua figura reproduzida nos jornais ou nos semanários de caricatura. Mas, uma vez tive a fortuna de o ver muito perto e de lhe ouvir a voz doce e serena.

Foi o caso que, certo dia, quando no poder estava o ministério Venceslau de Lima, meu pai precisou de enviar ao Conselheiro JOSÉ LUCIANO uma carta confidencial que não podia ser entregue às incertezas do correio. E porque o seu secretário particular não estava presente, fui eu o encarregado de levar a carta e de a entregar em mão própria.

Penetrei no palácio dos Navegantes. Como eu tivesse anunciado que tinha uma carta para entregar, uma Senhora tomou conta dela, pedindo-me que esperasse, numa saleta, a resposta.

Essa resposta demorava-se. Pela porta entreaberta eu ouvia um confuso ruído de vozes em discussão, e com aquela natural curiosidade de surpreender um areópago de políticos célebres, deslizei cautelosamente por entre os grupos e pude ver o chefe, rodeado pelos seus súbditos, aconselhando-os, e assegurando-lhes que tudo se havia de realizar como era sua vontade.

Eu estava tão perto dele que ele me fixou durante algum tempo, como se quisesse recordar quem eu era. Então retrocedi e tomei o meu lugar na saleta de espera. E quando regressei a casa, não me lembrei da autoridade do chefe nem da maneira / 64 / convincente com que dominava os seus vassalos, superiores e inferiores; lembrava-me somente deles, unidos no mesmo ideal, confiantes na palavra suprema, dedicados sem pensamentos reservados, − quão diferentes eles eram dos de meu pai, insofridos e insatisfeitos, intriguistas e ambiciosos − e lamentei que ele tivesse aceitado uma chefia de partido que muitos dissabores e muitas desilusões lhe causou.

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Tem acontecido tanta coisa interessante neste Jardim à beira-mar Plantado, nestes trinta e um anos de regime republicano, que os factos acima narrados perdem-se na longínqua nebulosa do tempo e do esquecimento e podem ser considerados como fantasia de historiador.

Mas o que não esquece é a memória dos homens que, apesar de tudo, concorreram para que Portugal fosse sempre grande. E foi um deles o Conselheiro JOSÉ LUCIANO DE CASTRO.

Ouçamos o que sobre ele disse o Conselheiro ADRIANO ANTERO, sábio jurisconsulto e historiador:

«Foi um santo na sua vida particular, um génio e uma verdadeira glória da pátria na sua vida pública.

A sua simplicidade espantava; apesar das situações eminentes que atingiu, viveu sempre numa resumida modéstia, dando assim o exemplo frisante de uma honestidade inconcussa.

Na sua alma de eleição nunca entravam as sombras do ódio nem os assomos da vingança.

De uma vastidão de conhecimentos enorme, de uma memória verdadeiramente assombrosa, de uma táctica parlamentar especial e finíssima, de uma elegância didáctica singular, fervente e cautelosa conforme as responsabilidades da sua situação, de uma conciliação e prudência tão próprias para evitar e compor as dissensões intestinas como para prevenir os embaraços externos, de uma energia moral, severa, mas inquebrantável no meio das maiores dificuldades e de uma aptidão de trabalho inexcedível para todos os ramos, José Luciano de Castro foi certamente o modelo brilhante de um estadista completo».

E o grande orador parlamentar, ANTÓNIO CÂNDIDO:

«Foi o mais perfeito conhecedor de homens que em Portugal floresceu. Muitas vezes o ouvi predizer com segurança a revolução social. Observações exactas e que demonstravam a inteligência, a bondade e o espírito superior com que José Luciano de Castro encarava a marcha da / 65 / [Vol. VIII - N.º 29 - 1942] humanidade para o seu aperfeiçoamento. E porque era respeitador da opinião pública, por isso testemunhava a sua grande consideração à imprensa, pronto sempre a atender as suas justas reclamações».

E JÚLIO DE VILHENA, que não guardava ressentimentos e que tinha sempre uma palavra indulgente para aqueles que o prejudicavam, com aquela nobreza de alma que o caracterizava:

«O Conselheiro José Luciano de Castro pode ser considerado como estadista, como orador parlamentar e como jurisconsulto. Ninguém expunha com mais lucidez uma questão jurídica, ninguém relatava com mais precisão um processo complicado.

Ajudado por uma prodigiosa memória, a sua inteligência assimilava todos os aspectos do assunto e analisando os textos legais, sem omissão de um só, inclinava-se sempre para onde o bom senso jurídico fazia pender.

É um monumento o, relatório do seu projecto sobre a reforma da Carta».

JOÃO JARDIM DE VILHENA

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