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«Com
estas palavras tão roídas
por toda a gente,
- como querem que eu faça
poesia só minha
de sangue inocente?»
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São
de J. G. Ferreira (Poesia V) estes versos; e, posto a sua mensagem seja distinta
e específica, devo confessar que me têm ocorrido à mente vezes e vezes, de há
anos, observando o aflitivo e frenético desempenho de alguns — muitos —
estudantes de Latim aquando, sobretudo, da prestação de provas escritas
integrando um texto latino cuja compreensão e tradução se solicita.
Da
mesma forma, as tarefas em torno da tradução em contexto de classe permitem
constatar a profunda lacuna de que são portadores os nossos alunos, mesmo em
fase mais avançada dos seus estudos, ao nível do conhecimento do léxico
latino. É este um factor desmotivante, pois que, além do mais, onera, em
termos de esforço e de tempo, qualquer tentativa de compreensão de um texto.
Não
será mesmo excessivo admitir-se que alguns alunos, conhecendo razoavelmente a
morfologia e a sintaxe latinas, incorrem, por vezes, em momentos cruciais, em
dificuldades e frustrações motivadas pela insuficiência do “corpus”
vocabular que puderam apreender.
Torna-se
então imperativo que as actividades em redor da lexicologia e da semântica —
um tanto descuradas — entrosem, com a morfologia e a sintaxe, os objectivos de
todas as aulas ou da sua maioria e sejam consideradas com a mesma continuada
solicitude que se consagra àqueles outros componentes dos estudos linguísticos;
e assim desde o início e sempre: “ab ouo” e "ad mala”. Tenho em vista um
trabalho dinâmico, continuado e escorado na reflexão, um percurso orientado
que pode transformar-se num excelente recurso de motivação para a disciplina;
é útil em termos imediatos e em direcções várias; é imprescindível,
porque uma língua não se realiza - logo não pode estudar-se - parcelarmente.
Por
outro lado, - e de novo peço vénia aos poetas, agora a Eugénio de Andrade,
para relembrar:
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São
como um cristal
As palavras.
Algumas, um punhal,
Um incêndio
Outras
Orvalho apenas.
Secretas
vêm, cheias de memória
Inseguras navegam
...................................
E, mesmo pálidas,
Verdes paraísos lembram ainda. |
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«São
como um cristal / as palavras» e «vêm ... cheias de memória» a revelar, no
seu próprio itinerário, o milenar itinerário do homem, na busca incessante do
seu espaço face aos outros homens e aos demais seres viventes, enfim dos seus
elos com o mundo que lhes vai servindo de berço e de túmulo: as suas crenças,
os seus medos, anseios, padrões, esquemas familiares, sociais, políticos. E as
palavras latinas, quantas delas! ensinam, “ab imis fundamentis” o roteiro
desse percurso em relação ao povo que as foi “roendo”. Temas da cultura e
da civilização dos Romanos que os programas contemplam explicitamente - e
outros que acontece ocorrerem no decurso das actividades lectivas - podem
encontrar na observação da etimologia e da evolução semântica de
palavras-chave um motivante centro de interesse. A descoberta torna aliciante a
aprendizagem e mais duradoiro e útil o conhecimento.
Concretizo,
exemplificando:
Os
substantivos pater, ris ”o pai" e mater, ris "a
mãe” são termos de uso recorrente nas aulas a partir de dado momento do
primeiro ano de frequência de Latim.
São
conhecidos dos alunos e ambos possuem um vasto e interessante leque de derivadas
dos quais apenas importa, neste contexto, considerar patrimonium, ii,
matrimonium, ii e um adjectivo derivado de pater: patrius,
a, um. A análise do conteúdo semântico destes vocábulos é
bastante elucidativa. Vejamos: matrimonium, ii designa o
casamento propriamente dito, que reconhecia à mulher os seus direitos como mãe
— a participação na praxis educativa dos filhos, a dignidade e a nobreza da matrona
"mãe de família", detentora de um conjunto notável de atributos
que dela faziam a companheira ideal, a guardiã fiel das tradições e valores
da família; enquanto isto, “patrimonium, ii” designa
“os bens da família”, o património familiar, isto é, os bens do pai, que
cabia ao pater administrar na condição de dono absoluto.
Quanto a patrius, a, um, o sufixo esclarece o significado:
“pertencente ao pai, como chefe da família”. Por patria potestas entendia-se
a autoridade paterna; a expressão patrium ius et potestas designava
os direitos e a autoridade do pai. O equivalente, linguisticamente possível, *matrius,
a, um não existe, simplesmente. Curioso e significativo, ao
considerarmos a organização da família romana, a sua extensão da gens
até à ciuitas como célula modelar da organização
da sociedade romana em termos sociais, económicos religiosos e políticos.
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