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farol n.º 26 - mil novecentos e sessenta e seis ♦ sessenta e sete, págs. 7 e 9.

CONTO DE NATAL

Ana Maria Valente
(7.º ano)
 

Era uma verdadeira noite de Inverno... Lá fora a neve caía silenciosamente. As árvores, nuas e tristes, arrepiavam-se com o vento gélido, cortante, que deslizava por entre os ramos.

Os bancos estavam desertos. Desertas estavam as áleas, a avenida principal, deserto tudo o que estava lá fora. Da janela via-se, ainda que mal, porque a neve caía cada vez mais densamente, o jardim, em tempos tão animado, e que não era mais que um esqueleto da Primavera. Os esqueletos são todos, todos feios, horripilantes; os jardins desertos, numa noite de Inverno como aquela, são também todos feios e horripilantes. E tão tristes... tão tristes que transmitem a sua tristeza a quantos se atrevem a passear os olhos na sua aridez.

Ninguém na rua. Nem sequer um pobrezinho. Seria talvez mais poético, mas menos real. Os pobres não saem quando a neve cai. Encolhem-se no seu canto – seja ele o mais miserável – e não se atrevem sequer a dar um passo.

A cortina da janela baixou-se lentamente. Alguém tinha abandonado o seu posto de observação. Dentro havia uma braseira que parecia tudo querer consolar com o seu calor, tanta era a força das brasas. Bastava uma leve vista de olhos e imediatamente se notava o conforto, o aspecto acolhedor daquele compartimento. Mas sobre tudo isso pairava uma enorme solidão que tirava todo o encanto às coisas mais belas. Sentou-se junto à braseira, olhos entrelaçados nas brasas, mãos caídas no regaço, abandonadas. Conforto, calor, para quê? Se era mais pobre que o mais pobrezinho... Se não tinha ninguém a quem dizer: « Olha como a neve cai!...» Se naquela noite, a quem todos chamavam de Natal, não compreendia o significado dessa palavra, não acreditava nessa criança que – diziam – tinha nascido há muito, num lugar chamado Belém. Crenças sem fundamento; nada havia de certo, se não o que realmente existe. Que fundamento, que provas tinham para acreditar em tais coisas? Como poderia acreditar que existia esse Deus?

Os olhos continuavam fitos no além. De tudo, uma única coisa era certa: estava só, e por isso, sentia-se a pessoa mais infeliz da humanidade. Preferira ser um humilde pobrezinho queixando-se das agruras do Inverno, / 9 / enganando a fome com uma côdea de pão, sorrindo e conversando com os seus, acreditando que aquela era a noite de Natal.

Levantou-se. Foi novamente até à janela. Afastou a cortina e mais uma vez contemplou o jardim. Deserto sim, mas tão diferente... As árvores já não tremiam, o vento não uivava e os ramos projectavam esguias sombras sobre o pavimento. A neve cessara de cair e o céu estava límpido, maravilhosamente ornado de estrelas que brilhavam como diamantes. Havia uma serenidade.., um silêncio... Abriu a janela. Já não estava frio, não se sentia pelo menos. Três mendigos passaram conversando as suas vidas. Olharam para a janela, acharam estranho aquela figura que nela se recortava e um arriscou: «Uma esmolinha por amor do menino que nasceu.» Ouviu-se tilintar algo lá em baixo e depois um sorriso cheio de agradecimentos. Fechou a janela, voltou à braseira e de novo, olhos entrelaçados nas chamas, compreendeu então que Alguém muito importante nascera, pelo menos na sua alma. Até a natureza tinha mostrado alegrar-se com o nascimento do Menino, tinha procurado mostrar um semblante mais acolhedor.

Abriria, pois, também a sua alma, para que nela penetrasse a luz da Estrela e o cântico do Anjo.

Seria uma noite maravilhosa... Já não estaria só. Menino Deus, quantos viriam festejar junto daquela braseira a sua primeira noite de Natal!...

 

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09-06-2018