NA tarde do dia
18 de Dezembro, realizou-se no nosso liceu
uma cerimónia comemorativa do Dia de Goa, com uma
palestra proferida pelo professor do liceu, Sr. Dr. José
Marinho Afonso Álvares.
A assistência, bastante numerosa, seguia com evidente interesse o
tema desenvolvido pelo Sr. Dr. Álvares, («A Projecção de Goa no
Mundo») que a seguir transcrevemos na íntegra:
1 – No mundo contemporâneo, Portugal encontra-se, em relação
ao
Ocidente, na mesma posição única e insubstituível que já teve no
começo de expansão: somos a última amarra da cristandade nas terras
do Oriente; estamos, no exercício da soberania legítima, mais ou
menos em toda a parte donde foi expulsa a presença europeia. Não
depende inteiramente de nós que nessas paragens nos considerem o
último dos inimigos a vencer, mas faremos do nosso lado, como até
aqui, tudo quanto cabe na política da boa vizinhança tradicional de
um
país que não faz agravo a ninguém, e estendemos a mão leal a todos
quantos são os nossos próximos pelo imperativo da geografia.
Sabemos, porém, claramente que a filosofia de agressão e conflito
ganhou muitos dos homens que influenciam de algum modo o
condicionalismo dos nossos interesses legítimos e, por isso, estamos
sendo o objecto gratuito de muita conspiração externa e dos ataques
mais desleais. Esta deslealdade e conspiração atingiram o seu ponto
mais alto no chamado «caso de Goa», que culminou com a brutal e
violenta agressão armada e a consequente ocupação deste território
ultramarino, onde a soberania portuguesa se vinha exercendo desde há 4 séculos.
2 – O «caso de Goa» tem o seu ponto de partida
com a criação da
União Indiana e dos outros Estados asiáticos após a última
Grande Guerra de 1939/1945.
O subcontinente indiano, durante
séculos e séculos fraccionado por
razões morais, rácicas, sociais, religiosas, linguísticas, encontrou
em
factores externos o pretexto para lutar por uma unidade política
que,
de resto, se revelaria inviável.
A presença de estrangeiros
– que sempre se mantiveram e sempre declararam querer manter-se como tais
– forçou os indianos a recolherem-se dentro de si próprios. Do facto resultou
aquilo a que
o primeiro-ministro Nehru chamou «a verdadeira descoberta da Índia».
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Mais por iniciativa e curiosidade dos estranhos do que por decisão
dos Indianos, o passado hindu foi investigado em todos os seus
ângulos. Foram trazidas à superfície as criações adormecidas da
civilização indiana. Escavações patentearam as grandes ruínas
clássicas; um novo estudo de velhos documentos revelou toda uma
cultura já recuada; e o mundo tomou conhecimento da filosofia do
mundo hindu, da sua técnica, das suas concepções científicas.
Entretanto, o Partido do Congresso, aglutinador das vontades do povo
indiano, lançava as bases dos desejos de independência. Sempre
por métodos pacifistas ou apresentados como tais, o Congresso lutou
em dois planos: de um lado, contra o domínio estrangeiro; do outro,
procurando reformar a orgânica social e a mentalidade do próprio
povo indiano.
De degrau em degrau, o Governo britânico viu-se forçado
a percorrer
o caminho da retirada. A campanha anti-britânica avolumava-se.
Entretanto, as condições políticas na Europa agravavam-se. A
Alemanha ressurgia, Hitler lançava o nacional-socialismo.
Com o findar da guerra, na
Europa e depois no Pacifico, a permanência britânica no Industão era claramente insustentável,
pelo menos sem um esforço que a Inglaterra não queria nem podia
talvez fazer. Por outro lado, o clamor exaltado de independência,
havia ganho uma nova faceta: já não era anti-britânico apenas: desde
1942 era sobretudo anti-ocidental. A propagando nipónica disseminada
durante a guerra – «A Ásia para os Asiáticos» – principiava a
produzir os seus frutos. E a Índia foi um dos primeiros
beneficiados. O Governo trabalhista de Atlee concedia-lhe a
independência soberana (1947), muito embora por conveniência prática
o país, transformado em república, permanecesse no quadro da
Comunidade Britânica.
A independência, porém, trouxe consigo
a partilha política: é que ao
lado da União Indiana criava-se o Paquistão. Os construtores da
independência tinham esquecido que a unidade territorial ou
geográfica não é suficiente para fundamentar ou determinar a
unidade política.
Esqueceram que só o poder político inglês provocara um sentimento
nacional colectivo e que, desaparecido aquele, a história reafirmaria os
seus direitos. Esqueceram que a noção de «pátrio indiana» não
coincidia com a noção de «pátria hinduísta»: aquela, além da
noção hinduísta, abrangia também a nação islâmica.
Mas a independência de um país nem sempre é sinónimo do seu
progresso, da sua prosperidade, do seu desenvolvimento. E porque a
independência não trouxe, como esperavam, progresso, prosperidade e
desenvolvimento, os chefes da independência, para aquietarem os
espíritos inconformistas e para dar às populações o sentimento de
estarem envolvidas numa grande tarefa, quiseram servir-se de Goa
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para ensaiar o seu nacionalismo exacerbado e o seu anticolonialismo
ressentido, além de que o «caso de Goa» seria um processo ideal
para desviar a atenção do povo indiano, dos inúmeros problemas criados e irresolutos no subcontinente da
Índia desde a
independência.
O grande número de actos, alguns dos quais internacionalmente
inúteis, mas espectaculares, que a Índia praticou não tem qualquer
significado senão dentro do quadro de uma difícil política interna
que não tem bases suficientemente sólidas.
3 – Quando, em 18 de Dezembro de 1961, se consumava
a ocupaç6o
militar de Goa e o mundo assistia a uma «agressão pacifista» com o
consenso de alguns Estados directores do mundo moderno, pensaram
muitos que o chamado «caso de Goa» estava terminado. Porém, perante
a surpresa dos cépticos e a admiração e espanto dos derrotistas,
verificou-se que era, paradoxalmente, a partir daquele dia que o
«caso de Goa», do plano nacional, transportava-se para o plano
internacional.
Perante a ocupação e domínio do estranho, os goeses recolheram-se
dentro de si próprios porque não havia nem existia qualquer espécie
de base para pactuar com o invasor. Os goeses, por isso, após os
momentos iniciais da confusão de espírito, iniciaram a sua ofensiva
ideológica.
Mas como é que se justifica essa ofensiva ideológica? Essa ofensiva
só se justifica pelo facto de «Goa» ter criado, nos 400 anos da sua
existência, uma paisagem cultural quase única na Índia e
rigorosamente delimitada pela fronteira. E essa sua
individualidade, ela deve-a a Portugal que revelou, muito
particularmente em Goa, «a maneira inteiramente diferente da
colonização dos povos latinos em comparação com a dos estados
nórdicos».
A meditação do caso de Goa impõe-se, hoje, mais do que nunca,
a
todos quantos desejem projectar o génio das respectivas culturas
sobre outros povos.
Goa constitui e oferece todas as condições para ser a mais poderosa
arma ideológica contra o avanço dos movimentos anti-ocidentais,
porque para ela estão voltados e atentos os olhos e os ouvidos da
cristandade da Ásia, talvez mais por causa dos mortos do que por
causa dos vivos.
Não importa a ocupação e o domínio estranho do território, porque
Goa prolonga-se no mundo, para além da sua minúscula posição
geográfica, através da cultura, de que são portadoras as «elites» goesas
espalhadas pelo território nacional e pelo território estrangeiro,
ocupando a cátedra, empunhando o báculo, exercendo as profissões
liberais. E esta presença e prolongamento de Goa, através das comunidades goesas, em território estrangeiro, perante mais um
serviço de Portugal à comunidade Ocidental, porque elas são, não só
a voz, mas
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também o exemplo de uma concepção de vida que se pretende jazer
subsistir. É este, a nosso ver, um exemplo notável de energia, de serenidade, de coerência e de autenticidade que
Goa deu e
continuará a dar ao Mundo.
Porém, como é que se explica o êxito do enraizamento da cultura
portuguesa em Goa?
Antes de mais, o êxito deve-se à autenticidade da acção portuguesa
no Oriente, isto é, a afirmação naquelas paragens do que constitui
realmente os valores ocidentais verdadeiros, o que nos levou ao
apostolado cristão e nos deu um sentido de tolerância quase único;
em segundo lugar, a independência da nossa acção, o que evitou que
aparecêssemos sempre confundidos com outros no intuito de explorar e
subjugar; em terceiro lugar, a ausência de preconceitos rácicos, o
que nos levou à miscigenação e à criação de comunidades luso-locais
distintas; finalmente, a capacidade de absorção e integração na vida
portuguesa, do que Goa tinha a oferecer, o que suscitou o sentimento
de uma colaboração bilateral em pé de igualdade, com benefícios nos
dois sentidos.
E foi, por isso, que um erudito indiano, nada suspeito de parcialidade
a favor do Português, afirmou que, «Goa, desde cedo se
transformara em centro de formação simbioticamente luso tropical de
europeus dispostos a darem suas vidas por aquela grande causa da
cultura cristã no Oriente», e o célebre poeta R. Tagore referira-se
a Goa e à sua cultura como sendo uma ponte entre o Ocidente e o
Oriente.
A fraternidade e comunhão das raças,
a fusão superadora de culturas,
a nova criação de formas justas de convivência política, foram os
ideais supremos de que os Portugueses se serviram para vencer todos os obstáculos.
Minhas senhoras e meus
senhores!
Recordar os mortos é um dever moral que se impõe aos vivos.
Mas, quando essas mortes constituem tragédia nacional, recordar as
suas memórias é uma obrigação e um acto de justiça.
É no cumprimento dessa obrigação e desse acto de justiça elementar
que estamos aqui reunidos.
Recordemos, por isso, os
que tombaram no solo da Índia em defesa
dos nobres ideais e não esqueçamos também os vivos que ficaram em
Goa, onde continuam a afirmar, com as armas do espírito, a
permanência indelével e eterno de Portugal e da sua cultura em Goa. |