No dia 17 do mês
corrente, a convite do Rotary Club local,
discursou no Grémio do Comércio o conhecido
crítico Prof. Dr. Hernâni Cidade.
O tema versado foi Bocage.
Seguindo uma linha paralela
à vida do poeta, o insigne orador tentou
restituir Bocage à realidade libertando-o do
mito de que o povo o rodeou.
Inicia a conferência analisando a época em que Manuel Maria viu
a
luz. Era um
período de graves convulsões
internas, o desabar do mundo clássico e o nascimento dum outro das ruínas daquele. Em suma, duma vida essencialmente social passa-se
para um
egocentrismo e individualismo totalmente opostos.
Hernâni Cidade justifica em seguida
a primeira deserção do poeta:
só no mundo,
(a mãe morrera quando ele tinha dez anos; o pai pouco tempo passava
em casa), sonhando com a fama, viu-se atraído para o sucesso fácil
que os aplausos do Agulheiro dos Sábios, do Nicola e do Botequim das Parras proporcionavam
à sua veia repentista.
Mas podemos dizer que
ele verdadeiramente não desertou, pois que conseguiu o grau de
guarda-marinha, que vai exercer na Índia.
Razões desta sua súbita partida: a atracção para um mundo
fantástico, como era a Índia, representada na mente dos jovens da época, o
desejo de
heroísmo, para se valorizar perante a mulher amada, Gertrúria.
O orador referiu-se então à página imortal que W. Beckford escreveu
sobre ele, salientando pela característica indiferença inglesa que ali se mutou numa arrebatadora
homenagem.
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A longa viagem provocou-lhe
uma reacção melancólica, que
transparece nos seus poemas, ao mesmo tempo que começa a descrer da
sua amada.
A Índia decepcionou-o. Já com o posto de tenente deserta de novo. A
justificação, segundo o Dr. Hernâni Cidade, pode encontrar-se no
seu irrequietismo, a ânsia do inesperado, acrescida do desencanto
pela Índia e de dor pungente de desconfiança na sua Gertrúria.
Assim tudo o que o
levara à Índia ruíra: o amor e a heroicidade.
De novo em Portugal é convidado para
a Nova Arcádia. Aceita, mas o ambiente desta jamais o satisfez. Sente-se atrofiado perante
liliputianos colegas.
E foge para o café, para
a boémia, deixando atrás de si os longos
discursos, tecendo elogios mútuos, a mediocridade poética, a
hipocrisia.
Livros proibidos, gazetas proibidas, tudo transite pela sua mão,
proveniente de França. O seu ardor atraiçoa-o e os «moscas» de Pino
Manique encerram-no no Limoeiro. Aqui, devido aos horríveis tratos
que lhe são infligidos, permuta o erro político pelo religioso. É
assim que o vamos
encontrar nos cárceres da Inquisição e mais tarde com os
Oratorianos, tentando redimir-se. Aqui trabalha como nunca o tinha
feito: revê o seu francês, o seu inglês e o seu italiano e faz traduções sobre traduções.
Ao sair está outro Bocage. Forma um lar onde sustenta uma irmã viúva
com o seu trabalho. A prova de que era um novo Bocage é esta: José
Agostinho de Macedo, há muito seu rival, ataca-o em versos
provocadores e achincalhantes; pois Bocage responde com um soneto
excepcional, pleno de dignidade.
O trabalho em excesso mina-o lentamente. Cai à cama e
aí processa-se a sua reabilitação, que há muito se adivinhava. Reconcilia-se com inimigos e
até com o próprio Deus: «Já Bocage não sou».
Mas deveria ter dito: «Já Bocage torno a ser!»
Em Bocage reúnem-se dois
aspectos opostos; por um Iodo ele é um clássico, como se nota na estrutura da sua obra, mas por outro representa de maneira
elevada as novas ideias, a efervescência sentimental
comunicada sem pejo ao papel. E não só isso. Surge também o anseio
sádico pela dor, o anseio pela perturbação.
Assim, o valor de Bocage é
acrescido, pois que consegue ser ao
mesmo tempo romântico e clássico.
E isto é a perfeição, que só no fim da vida conseguiu tornar
completa com a contrição da sua vida pessoal.
Jorge Abreu |