Dos
muitos passeios que dei com o saudoso Dr. João Soares,
um houve que, pelo insólito, nunca mais o esqueço.
Fomos
de abalada, noite de gelo, até ao Convento de Salzedas,
perto de Lamego, mastodonte de pedra, fundado pela
viúva de Egas Moniz, a mesma senhora que foi aia dos
cinco filhos do nosso primeiro Rei.
Este
Mosteiro albergou os frades da Ordem de Cister, mas D.
Afonso III, por razões de ética, mandou-os pregar
moral para outro lado. Mais tarde ainda se tentou
restituir-lhe as funções para que foi construído, mas
em 1834 foi definitivamente encerrado, excepto a parte
destinada ao culto.
Aos
olhos de um estranho, como eu, o Convento de Salzedas,
tal como o vi naquela noite em inesperada aparição,
alumiado por altas labaredas de fogueiras que se
projectavam pelos claustros como infernos a arder, era
um antro de fantasmas a gerar medos apocalípticos!
Pois
foi ai, nessa Noite de Festa Natalícia, que vi pela
primeira vez um presépio humano, montado com esmero no
rés-do-chão duma arcada: lá estavam os três reis,
empertigados nas suas vestes meio - orientais - meio -
romanas, o “S. José” enrolado num cobertor de papa,
a ‘Nossa Senhora” representada por uma moçoila de
boas cores e fartos peitos, ao colo de quem, a
espernear, estava um rechonchudo e morenaço bebé, já
com uns quatro ou cinco meses de idade, a representar o
Menino-Jesus.
A
completar o cenário via-se um pacifico e sonolento
jumento, que se entretinha a mordiscar a palha, e um
vitelito desgarrado, que se desunhava a mugir pela mãe.
Ao fundo, meio encoberto pelo restolho daquele
improvisado palheiro, a portuguesíssima presença de um
volumoso cesto e o gargalo arroxeado de um garrafão!
Roçava
pelo sublime a dignidade artística de todos estes
actores, embora se notasse que os costumes e o calçado
estavam longe de se submeterem ao rigor histórico ~
exigido pelo Nascimento de Jesus Cristo.
Depois
destas reflexões, demos umas voltas pelo arraial,
comemos umas castanhas assadas e bebericámos um copito
de vinho, fraco e frio naquela noite de neve.
Às
tantas a festa estava vista e participada. A madrugada
trazia agulhas de gelo, embora o povo se acomodasse, a
comer e a beber, à volta das fogueiras.
Antes
do regresso ainda passámos pelo presépio. A cena era
tão insólita que não evitei um rotundo Oh!... de
espanto! Os três Reis mai-lo São José, sentados no
chão em roda fechada, a comer castanhas e a fazer
gorgolejar o garrafão de boca em boca! E a Nossa
Senhora e o Menino, um pouco afastados do grupo; ela
sentada nos tornozelos, com o menino enrolado numa meia
manta, a chegar-lhe à boca uma valente garrafa de
leite, que o miúdo chupava com «ímpos» de
sofreguidão!...Era a hora da ceia!