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O artista visto pelos outros

 

Isabel Rosete

 

JOAQUIM FILIPE — «CONSCIÊNCIAS E VISITAÇÕES»

 

«Se eu gritar, quem poderá ouvir-me, nas hierarquias dos Anjos? E, se até algum Anjo de súbito me levasse para junto do seu coração (...) Vozes, vozes ouve-as, ó meu coração, como outrora apenas os santos as ouviam...»

Rainer Maria Rilke

 

Habitamos um espaço de desigualdades e inalamos a atmosfera poluída de um mundo que vamos edificando mais ou menos à medida das nossas ambições, nem sempre pautadas pela harmonia das esferas celestes.

Vivemos num mundo onde, um dia, fomos lançados, por Deus, pela Natureza, pelo Destino..., por qualquer entidade que pressentimos que existe algures – quiçá num outro tempo e num outro espaço que não o nosso mas que, no entanto, não é captável pelo conhecimento imediato, pelas sensações habituais que nos colocam em contacto com os objectos quotidianos, ou por qualquer espécie de intuição. Sentimos uma certa aura inquietante, uma certa estranheza que, por vezes, nos visite. Escutamos outros sons, outras vozes, que nos transportam para outros lugares. Intuímos que algo de transcendente paira em nosso redor. Mas quem sabe realmente do que se trata?

Somos seres errantes, por natureza. Navegantes, por instinto. E sobre esta nossa condição parece não haver dúvidas. Vagueamos sem destino, ao mesmo tempo que desejamos tocar o Infinito e ascender à eternidade. Porém, sabemos que somos mortais, inevitavelmente mortais, mas não suportamos a dor deste estado passageiro. Afinal, e não obstante todas as nossas angústias, amamos a vida, mesmo quando imploramos pela morte, nesses momentos de desespero existencial que apagam da nossa consciência a essencialidade do humano. Eis o paradoxo da Existência que, desde sempre, em nós coexiste.

As telas que Joaquim Filipe agora nos apresenta, para deleite dos nossos olhos e visitação das nossas consciências – nem sempre despertas para o que realmente importa ver, escutar ou sentir – são a memória, a evocação eternamente viva de tudo isto. Falam dos nossos interiores, da nossa humanidade esquecida, das nossas expectativas mais recônditas. Falam simplesmente da Vida, da nossa própria vida e natureza específica, que, sabe-se lá porquê, deixamos frequentemente adormecer. Na sua presença, surge-nos o grande apelo: acordemos as nossas consciências; deixemo-nos visitar pelo próprio espectáculo do mundo, pelas linhas do destino; pelos "anjos da guarda" que sempre nos vigiam; pela beleza e sublimidade do eterno feminino, pela doçura dos rostos de mulher, pela fonte jorrante que são os seus corpos.

Espantemo-nos, tão-só, perante o mistério da existência de todas as coisas e vislumbremos, o reflectidamente, o futuro que hoje preparamos. Celebremos a Vida e os radicais desígnios da nossa natureza.

O título atribuído a esta exposição, «Consciências e Visitações», encerra em si mesmo o tema aglutinador, o fio condutor que perpassa todos os quadros, não obstante algumas variações, que passam obviamente pela subtileza técnica do pintor. Num tema como este, tão vasto quanto preciso, todos os pormenores são igualmente importantes. Nenhum detalhe pode ser descurado, aquando da interpretação de cada obra, que o artista fez nascer movido pelos traços de uma certa genial idade, envolvido por uma imaginação e perspicácia muito particulares, por uma extraordinária capacidade de mostrar a sua/nossa visão do mundo.

A pintura de Joaquim Filipe é para ser pensada, escutada, e não apenas vista ou fugazmente olhada. Cada tela é um texto escrito em linguagem icónica, figurativa, que carece da mais fina interpretação por parte do seu observador. Um texto que fala ao nosso ouvido., que visita a nossa consciência e interpela os nossos sentidos, através dos traços, das linhas, dos sombreados, da cor, da perspectiva. Enfim, através de todos esses elementos que técnica e esteticamente fazem dos seus Quadros verdadeiras obras de arte.


É a linguagem própria da Pintura, que diz o mundo muito para além do que as simples palavras conseguem descrever. E este dizer é, em qualquer dos casos, uma mensagem, que nos cabe, a nós espectadores/leitores deste conjunto de obras, simplesmente ler, interpretar, evocando a mais fina lucidez da nossa sensibilidade.

Mas devemos, também, ser capazes de escutar a Pintura. É a obra que nos fala, que nos diz ou indica o que nela é apresentado. É ela que nos chama a atenção para tudo isso que antes não fomos capazes de ouvir; que faz ecoar, à semelhança de uma peça musical, a harmonia dos acordes que nela estão em jogo. Enfim, é a obra que, enquanto mensagem icónica, nos fala de uma dada visão do Mundo, que não é apenas a do artista – sempre atento aos apelos mais secretos – mas também a nossa, simples mortais distraídos perante o que em nosso redor, mesmo em silêncio, se faz ouvir.

Notemos, de resto, e tendo naturalmente em consideração as obras anteriores de Joaquim Filipe, a viragem que esta exposição constitui no seio da sua já consagrada carreira artística. Não obstante alguns elementos comuns – os rendilhados de estilo barroco, apesar da ausência tradicional do dourado que os caracteriza, ou a presença de "naturezas mortas", para citar apenas duas das categorias estéticas de toda a sua obra – deparamo-nos, à semelhança do eternizado Miguel Ângelo, com o primado do desenho sobre a pintura, com a ênfase dado à perfeição dos corpos, de contornos objectivamente definidos, em virtude da firme subtileza dos traços e das linhas.

Porém, e diferentemente do pintor/escultor italiano, o que fascina Joaquim Filipe não são os atléticos corpos masculinos, imortalizados desde a época clássica, mas sensualidade e a delicadeza dos corpos femininos, sempre colocados em primeiro plano, quer pelas suas dimensões em relação aos restantes elementos que compõem o quadro – o nosso pintor infringe intencionalmente as tradicionais regras da proporção –, quer pelo seu posicionamento ou expressividade.

De qualquer modo, a influência desse génio renascentista, volta-se a sentir, quando damos conta da predominância do grafite sobre a cor – as obras de Joaquim Filipe são grafites sobre tela, com alguns fragmentos de cor – dos motivos humanos sobre a paisagem, da clara enfatização dos rostos, de expressões tão reais como os da fotografia. Todos os quadros são variações deste conjunto de elementos que, diferentemente dispostos e apresentados, conferem unidade temática à exposição.

Joaquim Filipe centra-se na figura feminina, o ponto-chave deste conjunto de obras, no corpo e no rosto de um ideal de Mulher envolvida numa aura ascendente, inteligível, exemplificadora, de todas as mulheres, quiçá, de todos os homens e, a limite, desse ideal de Humanidade, concebido na sua pureza originária, de que há muito permanecemos afastados. Cada corpo é em si mesmo um símbolo, uma metáfora que, assim exposta, se torna o ponto de partida e de chegada de todos os quadros.

Apesar do destaque que lhe é dado pelo pintor, cada corpo, mesmo que voltado para a sua própria interioridade, nunca está só, nunca é reduzido à sua estrita individualidade. Fixa-se ao mesmo tempo que se evade de um dado mundo também visitado por outras criaturas, bem delimitado pelas dimensões do espaço e do tempo que, a todo o momento tende a ultrapassar, nessa derradeira busca peja eternidade.

O corpo feminino está aí exposto no quadro, e o quadro é a representação desse mundo ao qual ele pertence e do qual, ao mesmo tempo, pretende sair, movido pelo eterno desejo de transcendência de si e de e de todas as coisas que nele já perderam o sentido ou a identidade. Cada corpo projecta-se, a seu modo, no infinito: os braços alongam-se acima das cabeças, sem nunca ser é determinado o seu fim; os cabelos esvoaçam em direcção incerta, mas, no entanto, sempre dispostos na vertical, até se esbaterem com o fundo da tela.

A todos os componentes do corpo é dado um começo determinado, mas nunca somos capazes de visualizar o seu terminus. São traçados por linhas verticais ascendentes, derradeiros símbolos da continuidade interminável do tempo e do espaço, à semelhanças dos elementos barrocos que sempre os rodeiam, desenhados em formas espirais, esféricas, acompanhados, de cornucópias e volutas, ou por grinaldas que se juntam a vasos que povoam um florido e encantado jardim imaginário, qual sinal da nostalgia de um Paraíso outrora perdido. Procuramos sempre um outro mundo, porque o nosso não é, com certeza, o melhor dos mundos possíveis. E mesmo que nada de real exista nesta ideia, consola-nos o simples facto de podermos viver uma tal ilusão.

No espaço télico iluminado pelo pintor com os elementos barrocos, repletos de gestualidade e de movimento, encontramos signos visuais que apelam para a exposição explícita do belo e, até mesmo, em certos momentos, do sublime, para o que nos encanta de imediato e deixa o nosso olhar preso ao quadro.

Da conjugação de tudo isto emerge a ideia da ciclicidade da Vida. Dos reiterados ciclos do nascimento e da morte. É o movimento natural de sucessão de todos os seres animados que aqui se espelha. E a mulher é o eterno símbolo da continuidade de todos os ciclos, a grande metáfora da criação. Só ela possui esse Dom de dar à luz outros corpos e outros espíritos, de doar ao mundo novos seres, novas vidas, outras esperanças que perpetuam os desejos ancestrais da Humanidade quanto à eternização da espécie.

Sempre mantivemos a pretensão de nos tornarmos semelhantes aos deuses. Sempre quisemos aceder à imortalidade, ultrapassar as fronteiras da nossa inevitável efemeridade, de seres condenados à morte, a única certeza absoluta de que realmente dispomos.

Mesmo quando desenhados horizontalmente, a postura dos corpos é dinamicamente ascendente. As linhas que os delimitam apontam, como as diagonais ascendentes de todos os outros verticalmente traçados na tela, para o espaço exterior ao quadro, como que anunciando um movimento perpétuo, que contrasta com a fixidez e temporalidade da paisagem, marcada por efeitos da perspectiva puramente figurativa. Assim encontramos em Joaquim Filipe essa outra reminiscência originalíssima da Renascença, onde a harmonia pictórica é conseguida pela ligação aparentemente desajustada de vários fragmentos.

Mas, cada quadro não é, no entanto, uma amálgama, uma mera junção, ajuntamento ou sobreposição de elementos dispersos. É uma composição. Todos se interligam e intersectam, formando a unidade conjuntural da obra, a sua coesão interna, onde se encerram as grandes mensagens: sejamos completamente humanos; façamos renascer em nós a pureza da nossa essência originária, essa qualquer coisa que faz de nós seres humanos e não simples animais, plantas ou pedras; abramos, finalmente, as nossas consciências a todas as visitações; sejamos capazes, pelo menos uma vez na vida, de mostrarmos o nosso único e verdadeiro rosto.

 

 

O rosto é também um dos pontos de enfoque da exposição de Joaquim Filipe, de tal modo que, em algumas telas, os corpos desaparecem completamente para dar lugar simplesmente à representação do rosto. E mesmo quando os corpos se presentificam, o rosto que neles está aposto é, invariavelmente, um elemento de destaque, até mesmo o elemento envolvente que confere expressividade directa à consagração do feminino, na sua natural beleza e perfeição, nessa envolvência de espiritual idade que se respira na unidade essencial de corpo e rosto.

Cada corpo suporta umbilicalmente um rosto marcado pela sublime expressão da felicidade, pela introspecção ou meditação levada até ao limite, pela positividade natural daqueles que amam a Vida. Meticulosamente desenhados, são o espelho da interioridade de uma alma pura, irradiando toda essa espiritualidade que invade o corpo sem o dizer expressamente.

Também são misteriosos, por vezes, até mesmo enigmáticos. Nunca escondem a aura do mais puro magnetismo, a exuberância ou a magnitude da sua expressividade, quando próximos de certos símbolos. Fixemos, por exemplo, o nosso olhar numa simples pena de pavão que decora o pano de fundo onde o rosto se inscreve. Sentimo-nos na presença do paradisíaco, que sempre habita a nossa memória, de uma particular excentricidade encantadora da dita "mulher moderna", protótipo de todos os corpos e de todos os rostos desenhados apenas a grafite pelo pintor.

A cor não é necessária para mostrar a sua essencial idade. Basta ao artista a força da expressão genialmente concebida pelos contrastes claro/escuro, opaco/transparente, sombra/luz que a grafite, assim utilizado, tão bem permite. De resto, se procuramos a cor teremos de penetrar na interioridade de cada figura, a limite, na nossa interioridade, na nossa consciência visitada, quando tranquila, pelos mais ofuscastes ou brilhantes raios de Sol, a estrela que tudo ilumina.

E é deste modo, tão simples quanto sofisticado tecnicamente, que Joaquim Filipe, pela força da expressão de cada rosto, nos apela para a reminiscência dessa paz interior; que há muito nos abandonou, para a necessidade de nos harmonizarmos de novo com a Terra, com as paisagens desabitadas, que outrora colorimos, de pisarmos, mais uma vez, os caminhos já sem rastos de qualquer pegada, de percorramos, outra vez, as estradas agora vazias de olharmos para as montanhas e contemplarmos, à tardinha, o pôr do Sol.

Os corpos, os rostos, presentificam-se assim na tela para que os contemplemos conjuntamente com a singularidade do que os rodeia, com particular intimidade: elementos paisagísticos dispersos, objectos pessoais, espaços da vida quotidiana, outras figuras de natureza não especificamente determinada.

Assim nos apresenta o pintor a sua singular mundividência, carregada de um refinado simbolismo, pelo qual nos mostra, com clareza e profundidade, as características mais marcantes do universo em que vivemos: a desertificação dos espaços naturais; o abandono e a consequente solidão dos ambientes ou objectos tipicamente humanos. As cadeiras da esplanada estão vazias e as mesas, em redor das quais estas se dispõem desalinhadamente, nada mais suportam sobre si mesmas. Do mesmo modo, a elegantes socas de senhora, tão femininas como os pés que um dia as calçaram e que com elas caminharam por entre os campos, estão aí, onde pela última vez foram deixadas; são mais um adorno, entre outros, que foi entregue à sua própria inutilidade.

Este cenário, este pano de fundo onde se recortam os corpos femininos, deixa-nos apenas vestígios da passagem do humano, ao mesmo tempo que mostra a inevitável necessidade de afastamento de um certo tipo de mundo: o da futilidade, o do "parecer-ser", o da materialidade e do puro comércio de corpos e de almas.

Em contra ponto, ainda e sempre o pintor exalta a sensualidade, a beleza, a "perfeição", a serenidade, o ideal e, de certo, uma aura de uma qualquer espécie de transcendência evocada pela expressão dos rostos e pela postura desses corpos de mulher semi-nus, que ultrapassa, para o pintor, as dimensões da pura sexualidade ou do eventual erotismo que, habitualmente, nos lança instintivamente para o outro – seja esse outro homem ou mulher.

A consagração do feminino, seguramente o grande mote desta exposição, faz "ver claramente visto", e este ponto é absolutamente central, a dimensão da espiritualidade que todo o corpo intrinsecamente encerra, para além de tudo o que se mostra num simples olhar de relance, ou no ver famigerado da ave de rapina.

Joaquim Filipe faz-nos reviver essa união indissociável entre o corpo e a alma, que constitui, aliás, a própria essência do humano. Faz-nos ver que o corpo não é só corpo, mas também, e fundamentalmente, espírito, que em nenhum momento da sua existência terrena se desencarna, concepções que o cinema, a publicidade, os medias, nos fizeram esquecer, em prol dos valores da comercialização. Afinal os corpos de mulher também são vendáveis, tão ou mais vendáveis do que qualquer outro produto, dependendo a respectiva rentabilidade tão-só da marca que os patrocina e do modo como, enquanto simples objectos de uso, são expostos.

 

 

Este forte apelo à espiritualidade do corpo marca também a sua presença, pela incursão no espaço existencial especificamente humano, de outras figuras, de outros corpos ou entidades, quiçá anjos, seres assexuados e puramente espirituais, quais mensageiros e profetas, anunciadores dos caminhos que devemos seguir, nessa tentativa de regresso a esse outro lado de nós mesmos, camuflado pela excessiva materialização do mundo moderno.

Mesmo desenhadas a um escala de proporções substancialmente inferiores, estas figuras assumem uma importância particular, entre todos os motivos que integram cada obra, por se relacionarem de uma forma ao mesmo tempo directa e enigmática com os corpos femininos, A partir delas o pintor traça um conjunto de linhas que emergem em várias direcções, mas que sempre se interseccionam com os múltiplos ângulos a partir dos quais podemos perspectivar cada corpo, ao mesmo tempo que o envolvem entre caminhos que nem sempre se bifurcam.

Joaquim Filipe inspira-se, quando desenha estas pequenas figuras pairantes, sempre em movimento ascendente ou descendente, nos "Anjos" de Rainer Maria Rilke (1875-1926), o consagrado poeta modernista alemão, autor de «As Elegias de Duino», e também na representação cinematográfica que delas é feita contemporaneamente por Wim Wenders, o realizador de as «Asas do Desejo» e «Tão Perto tão Longe», obras que nos falam igualmente de «Consciências e Visitações».

Os "Anjos" do pintor ilhavense são, a um tempo, os Anjos de Rilke e de Wenders, mas também os de Miguel Ângelo. Destas fontes colhe a ideia de que "não há um Aquém nem um Além, mas sim a grande Unidade", na qual estão à vontade OS "Anjos", seres que nos superam, situados entre o humano e o divino, mas que ao mesmo tempo acompanham todos os nossos passos e escutam a interioridade silenciosa do nosso ser.

 

 

A idealização destas entidades aladas, embora sem asas visíveis, é um misto da concepção do "Anjo" do céu cristão com as figuras angélicas do Islamismo, tal como aparecem expostas pelo dizer originário do Poeta alemão. O "Anjo" das «Elegias» de Rilke é, tal tomo o das telas de Joaquim Filipe, uma criatura em quem já se deu a transformação do visível em invisível que nós, humanos, ainda não conseguimos operar, pelo que ainda nos fixa mós apenas na pura contemplação da aparência dos corpos que nos surgem apenas na sua exterioridade existencial. Para o "Anjo", todas as torres e pontes da nossa existência material que ainda subsistem, são já invisíveis – como é invisível para o olhar comum, a espiritualidade que cada corpo feminino encerra – situam-se no exterior das triviais dimensões humanas do espaço e do tempo que, para nós, ainda têm uma duração corpórea, terrena.

Diferentemente dos humanos, o "Anjo" é aquela criatura à qual cabe reconhecer no invisível uma categoria superior da realidade. Por isso também é "terrível", ao mesmo tempo que é belo na singeleza da sua "perfeição", que nos quadros do nosso pintor está igualmente presente em cada mulher que da tela nos vê ou nos oculta o seu olhar.

Todos os mundos do Universo se precipitam nesse invisível a que os humanos ainda não foram capazes de aceder, como sua realidade próxima mais profunda, essa que não vemos por estarmos acorrentados às ilusões da visibilidade. Por isso é que algumas estrelas apenas brilham e se intensificam directamente, tal como perecem na consciência infinita dos "Anjos". Outras estão destinadas a seres que as transformam lenta e penosamente e em cujo terror e encantamento alcançam a sua realização. Os "Anjos" são ainda e sempre puros espíritos, que o pintor, tal como o poeta ou o realizador, faz contrastar com o materialismo que perpassa amiúde a existência humana. Dominam, por isso, sobre o visível e o invisível, sobre a vida e a morte. São o "Aberto" e reinam sobre o espaço interior do mundo. Afrontam a precariedade da condição natural da nossa humanidade. Denunciam o vazio da nossa civilização, extremamente repressiva, artificial, e, sobretudo, hipócrita e superficial. Espiam-nos a cada instante. Consolam-nos, amparam-nos, guiam-nos, indicam-nos, por traços diversos, os caminhos a seguir, mas também nos combatem.

 

«O Anjo que em meu redor passa e me espia,

E cruel me combate; nesse dia

Veio sentar-se ao lado do meu leito

E embalou-se cantando no seu peito»(1)

 

Tais criaturas que povoam o nosso imaginário desde a infância, presentes em todas as obras de Joaquim Filipe, pelo menos desde 1990, aparecem sempre em redor das figuras femininas como "observadores invisíveis e constantemente presentes". São apenas "espectadores, assistem a tudo aquilo que acontece", mas "sem a mais pequena possibilidade de poderem participar". Estão "simplesmente ali, invisíveis aos homens, vendo eles próprios, tudo", refere Wim Wenders.

Mas os "Anjos" não só vêm ou pairam sobre os nossos céus. "Ouvem também tudo, mesmo os pensamentos mais secretos" 2. Escutam e seguem a corrente em turbilhão dos nossos raciocínios. Para eles nada é confidencial. Escutam e vêm o passado, o presente e o futuro. E assim nos enviam as grandes mensagens.

Resta-nos, pois, estar atentos e fixar o deslumbramento invisível do mundo. Escutar todas as vozes que em nosso redor ecoam, mesmo quando não as ouvimos. Voltar à inocência das crianças, à infância e evocarmos a transcendência que sempre em nós habita, a espiritualidade que os nossos corpos encerram e que frequentemente, se desvanece.

Como toda a Arte, as obras de Joaquim Filipe transportam-nos para fora do habitual, ao apelarem para essa outra realidade, a verdadeira, a autêntica, a única, que se esconde por detrás das aparências que cegam os nossos olhos e tomam surdos os nossos ouvidos.

Isabel Rosete – 2002

(Doutoranda do Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro)

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1) - Sophia de Mello Breyner Andersen, "O Anjo", in «Dia do Mar», 1947.

2) - Cfr. Wim Wenders, "Primeira descrição de um filme verdadeiramente indescritível ", in «A Lógica das Imagens», 1990.

 

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