Uma vez sonhei que
era uma borboleta, esvoaçando por aqui e por ali como todas as
borboletas. Apenas estava consciente da minha felicidade enquanto
borboleta, desconhecendo que era eu próprio.
Em breve acordaria.
Aí estava, de novo,
o meu verdadeiro eu.
Agora, não sei se
era eu que sonhava ser uma borboleta ou se sou uma borboleta que sonha
ser eu.
Chuang-Tzu
(369? – 286 a.C.)
As obras de Joaquim Filipe apresentam um universo onde as formas
tangíveis coexistem com uma natureza translúcida na construção de uma
diegese, à partida, impossível.
A
apropriação de motivos barrocos, essencialmente de características
vegetalistas, constrói, dissimuladamente, uma tessitura sobre a qual
elementos retirados a um imagético marítimo ou passagens da existência
humana encenam narrativas insólitas que se mantêm em paradoxo constante
com o pretensamente real que enformam.
A
ambiguidade gerada não emerge, como é axiomático, dos elementos de que
Joaquim Filipe se socorre, porém é algo que resulta da encenação
combinada e simultânea de fenomenologias de carácter antagónico. A
dicotomia estabelecida é alargada ao modo com as técnicas de
representação são usadas. Os habilíssimos fundos em velaturas de
acrílico recusam sistematicamente a cor, elemento maior da pintura. Por
seu turno, o desenho, que impera particularmente nos óculos e aberturas
rasgadas sobre as paisagens, foge à herança canónica da linha para se
desenvolver através do uso de manchas em grafite. Paradoxalmente, a
monocromia resultante do uso do material, estabelece um pacto tácito que
confere às obras uma coesão invulgar. Neste sentido, os mundos criados
aparentam credibilidade.
A
estranheza suscitada surge do debate que a razão trava consigo própria
no reconhecimento dos objectos e nas tentativas de construção de uma
narrativa. O autor encena uma natureza de características antinómicas –
real/imaginário, credível/inacreditável, espontaneidade/regra,
racional/irracional – para promover uma discussão constante sobre a
possibilidade do real e a sua permanente subversão. Propõe-se ao
receptor um universo em que algumas categorias do real foram alteradas
provocando constantes reavaliações entre a aparência normal e a
pseudo-realidade apresentadas.
Nos
seus trabalhos, Joaquim Filipe procede por deturpação, escamoteia ou
altera dados necessários à decisão do destinatário procurando induzi-lo
a uma leitura tão vacilante quanto possível.
José Maria da Silva
Lopes – 2007
Professor – Faculdade de Arquitectura do Porto |